CALIBRE 66

*Por Antônio F. Bispo

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Então, O´Meliante aproximando-se dele, apontou-lhe uma arma e vociferou:

-Perdeu mané! Passe logo os dez por cento de tudo o que tu ganhou esse mês. Se reagir eu atiro!

O’Néscio estava indefeso.

Encurralado e sob a mira de um instrumento “contundente”, comumente usado para tortura e manipulação de pessoas pobres e de pouca escolaridade, ele se viu obrigado a permanecer ali, inerte, de joelhos, com cabeça baixa, olhos fechados e mãos levantadas para cima.

A princípio, quando o convidaram a ir à frente daquele púlpito, disseram-lhe que aquilo era um sinal de rendição ao dono daquele recinto e ele o fez, achando ser esta, uma entidade metafísica santificada, como diziam as propagandas.

Só depois percebeu que não!

Soube da pior maneira que o dono daquele lugar era alguém de carne e osso e com muita sede de dinheiro fácil.

Era este o mesmo dono do CNPJ, cujo nome de fantasia estampado na porta do recinto fazia remeter a um outro significado, não aquele expresso de modo covarde e violento qual estava sendo submetido.

Percebeu tardiamente que naquele lugar o medo, o preconceito e ódio eram explorados ao extremo e as falsas promessas eram vendidas como se fossem mercadorias de extremo valor.

Tudo ali custava um preço: quem não podia pagar com dinheiro deveria pagar com subserviência irrestrita ao líder do recinto ou aos seus comparsas...para sempre!

A vida útil de todo associado era desperdiçado diariamente com ações fúteis e repetições vãs. Gastavam a maior parte do tempo correndo atrás do vento e simulando relações abstratas com seres do imaginário coletivo, enquanto punham em atrito constante e de modo desnecessário suas interações com seres reais, inclusive com os de mesmo credo.

Rotular um ao outro às escondidas com deboches e deméritos, era o que de melhor conseguiam fazer para manter o grupo coeso.

Demonizavar coisas, comidas, objetos de arte ou qualquer pessoa que não fosse tida como “santa ou escolhida” também fazia parte desse algoritmo. Consideravam isso uma virtude, uma ordenança vinda do alto comando espiritual.

Fingiam ser o que não eram, iludindo-se mutuamente, professando coisas que não entendiam e que de fato não acreditavam, já que viviam praticando justamente o oposto do que pregavam. Modos como estes eram etapas natural da “evolução de um remido” até chegar a estatura de um varão perfeito, segundo eles próprios.

Do controverso ao absurdo. Do profano ao bestial...Tudo poderia ser venerado ou aborrecido, a depender do contexto, da ocasião ou dos propósitos de lucros dos donos da casa. Cada casa tinha suas próprias regras apesar de dizer seguirem todas à um mesmo mandamento.

Ali era um lugar que a razão, a lógica e a sanidade eram demonizados com estardalhaços enquanto que a hipocrisia e a vigarice serviam de farol no labirinto da paranoia.

Era tarde demais.

O’Néscio havia caído numa arapuca e só agora se dera conta. Desejou naquele instante nunca ter estado ali. Almejou voltar no tempo e recusar o convite do amigo que ali o trouxera. Percebeu que este, o seu estimado colega também fazia parte do bando. Presumiu que ele também era uma vítima daquele nefasto sistema.

Toda sociedade humana que tinha o espólio como meio principal de vida, costuma agir de modo semelhante: um neófito outrora enganado, agora adestrado, se ver coagido a trazer outros membros para que de igual modo possam ser exploradas pelos donos da seita assim como ele o fora. Desse modo eles nunca se sentirão como únicos iludidos e ainda terão poder sobre os iniciados. Assim o processo se repete até o infinito.

A expansão dos segmentos que exploram a fragilidade e carência humana costumam crescer por meios sórdidos como estes.

O’Meliante percebeu que O’Néscio apresentava resistência e que seus pensamentos divagavam naquele embate. Viu que a sanidade ainda não o havia deixado. Era preciso ser mais incisivo.

Pressionou-lhe então a pistola ainda mais forte sob sua cabeça e repetiu as ameaças:

-Bora logo irmão. Tá pensando que eu não tenho coragem de atirar? Você não sabe do que sou capaz! Já estou nesse negócio há muito tempo e sei quando alguém tá de fingimento!

O’Néscio gelou!

Sentiu o miolo do cano em formato quadrático encostar em seu crânio e o cheiro de papel envelhecido, misturado com naftalina, sovaqueira e mãos ensebada de todo tipo de suor e odor desagradável exalar daquele objeto.

Logo percebeu que se tratava da temida PISTOLA CALIBRE 66.

Era o modelo mais usado pelos protestantes nos últimos 200 anos.

Era a mais temida e venerada de todas as armas pelos ocidentais e que por séculos tem sido usada para intimidar, coagir e constranger pessoas, principalmente os menos favorecidos de dinheiro, cultura e personalidade própria.

Esta arma, assim como as outras de MODELO 73 e suas outras versões aprimoradas “com purpurina”, tem servido ao mesmo propósito nas mãos de gente ensandecida há quase 2 milênios.

Assim como uma simples faca de mesa pode ser letal nas mãos de um malfeitor, aquele volume por si só, era apenas uma coleção de livros de outros povos, de outras épocas com estórias e conselhos e todos os tipos.

Porém, nas mãos de pessoas malignas, aquele exemplar poderia literalmente matar, roubar ou destruir a vida de qualquer pessoa sob sua mira. Poderia ser usado para construir também, mas isso vai contra o propósito dos oportunistas, do próprio senso comum da religião.

O’Néscio moveu a cabeça e lentamente tentou abrir os olhos, visualizando assim o seu opressor, ainda que por entre os cílios semicerrados.

Ali estava ele.

Vestido de paletó preto e camisa branca, suando igual a um pano de cuscuz, com voz rouca devido a tantos gritos e ameaças que já havia feito durante aquele ritual, ele permanecia ali imóvel, apontando-lhe a arma e esperando deste uma confissão de subserviência eterna, além dos 10% mensais obrigatórios, que era a base principal para que toda estrutura do sistema continuasse funcionando.

Esta era métrica que fazia pipocar em todos os bairros, principalmente nas periferias, todo tipo de gente (principalmente os malandros), tentando “abocanhar por direito, segundo às escrituras, esse percentual pré-definido desde os inícios dos tempos”!

Receber dez por cento do faturamento de todos ali presente, durante toda a vida, sem precisar fazer nada...Só mesmo algo “divinamente planejado” para ser tão bom.

Era preciso apenas olhar para um fiel, fazer um tom ameaçador, apontar o dedo para um único versículo, escrito num livro antigo, para um outro povo, de uma outra época, sob outras circunstancias e dizer: “O senhor mandou”! Quem não queria? Que delícia...

As línguas dos lobos salivam só de ouvir falar deste “direito divino de exploração”!

Vale lembrar que junto à posse deste percentual, está atrelado também o direito (obrigação?) de meter-se em todos os campos da vida dos “fregueses”, bem como aplicar-lhes todo tipo de abuso moral, sexual, financeiro, etc, etc, etc...

Eram infinitas as possibilidades de interpretações que uma mera citação aleatória poderia ofertar contra os incautos.

Do teólogo com formação acadêmica até zé ruela que finge estar lendo a bíblia (de cabeça para baixo); do realmente íntegro ao ex-alguma-coisa-ruim: todos invocam “com razão” ao direito sagrado de apropriar dos bens alheios segundo a fé e ainda receber nomes pomposos, segundo às escrituras.

É um “direito sagrado” tão antigo que perde-se com as areias do tempo.

Entre os marginais de alta periculosidade por exemplo, já não se usam mais apelidos como “zé droguinha” ou alcunhas como as de “chefe do tráfico”.

O termo usado agora é “pré-evangélico” ou “futuro ungido do senhor”!

A irmandade pira com tipos assim!

Um “tesão profano”.

Uma libido avassaladora parece brotar nas partes mais imundas destes que ficam “espiritualmente excitados” quando escutam estórias macabras e cavernosas em seus rituais de culto, ao invés de prezarem pelas instruções daqueles qual dizem ter sido o messias morto num madeiro.

Absorto em arrependimentos, O’Nescio foi sacudido outra vez por O’Meliante.

Agora, além da mira apontada em sua testa, ele o chacoalhava pelo ombro dizendo:

-Ou me passa os 10% ou eu atiro!

Nervoso e com ar de desespero, ele alegou que não havia nenhum dinheiro consigo.

O’Meliante sabia que ele estava mentido. Falou então com mais dureza:

-Você tá pensando que me engana? Seu colega de trabalho afirmou que você recebeu dinheiro da firma ontem e que ainda sobrou um pouco no bolso!

Ele tentou encarar o “amigo” que o havia levado, porém envergonhado este outro desviou o olhar para os próprios pés.

O’Meliante perdeu a paciência. Rapidamente começou a engatilhar sua arma.

Abriu-a rapidamente, tirou uma fita em vermelho para marcar o lugar da munição e com arma em punho começou a dispara dizendo:

-Maquias 3.10; Malaquias três e dez; Malaquias capitulo 3 e versículos dez....

O’Meliante atirou 3 vezes contra o indefeso.

O estampido fora ouvido quatro quarteirões de distância dali.

O microfone estava ligado à toda altura.

Ele parecia querer intimidar outros “doadores”, além de atingir em cheio o alvo já rendido.

O’Meliante chiava, rodopiava, batia com os pés no chão com muita força, falava umas línguas esquisitas e vociferava como uma besta tonta. Tudo fora de harmonia e sem propósito algum.

Dizia-se que entre eles, isto era um ritual de intimidação no intuito de mostrar uns aos outros quem mandava mais no pedaço.

Diziam que toda aquela firula era por conta de a entidade ter baixado no recinto e incorporado em alguém, no caso, daquele que visivelmente fazia o maior espetáculo (barato).

O’Néscio não resistiu. Os tiros lhe causaram grandes estragos.

Sua sanidade foi abalada e o medo da exposição ao ridículo diante dos presentes o fizera ceder.

Todos ali haviam se tornado profissionais em rotular de modo medíocre, quem dentre os visitantes não caísse ao primeiro apelo.

Demonstrar resistência era sinal de burrice ou encorparão do próprio capeta.

Ferido e debilitado O’Néscio não podia revidar.

Colocaram diante dele um “coador de café gigante” e com olhar persuasivo fizeram com que ele entregasse todas as suas reservas, o restante que sobrara para que ele pagasse almoço e passagem para o trabalho durante todo o mês seguinte, até o próximo pagamento.

Aquele era ainda o sexto dia útil do mês.

Havia menos de 24 horas que ele havia recebido o seu soldo. De depois de quitar todos os compromissos do mês anterior, 300,00 era o único valor que lhe restara.

Arrependia-se amargamente por ter negado horas antes um simples brinquedo à sua filha que em lágrimas lhe pedira.

Agora estava sendo subtraído por aquela gente que alegava arrecadar dinheiro para um ser invisível, intocável, atemporal e desprovido de qualquer tipo de necessidade que o dinheiro ou poder humano possam suprir.

Recobrando um pouco de fôlego que ainda lhe restava, O’Néscio olhou para o seu carrasco e murmurou baixinho, com receio de outras pessoas ouvirem:

-Mas não foi isso que eu pedi. Não foi essa proposta que aceitei! Quando me chamaram para vir à frente receber oração, disseram-me que eu estaria aceitando a um deus invisível e que somente a ele eu deveria servir e obedecer. Não foi isso que escolhi.

O’Meliante deu uma gargalhada alta. Rio da cara do coitado ali prostrado sem misericórdia alguma.

Aquilo que fora dito baixinho e em segredo, O’Meliante fazia questão de dizer bem próximo ao microfone pra todo mundo ouvir. Desse modo podia intimidar também os que jaziam ali há algum tempo amordaçados e que por acaso pensavam em fugir.

O’Meliante fez cara de deboche, depois virou-se para O’Néscio e disse:

-Então você achou mesmo que ao aceitar o dono da igreja você estaria aceitando a um ser virtual, uma entidade celestial? O dono da igreja sou eu, somos nós, todos os ministros, proprietários fiscais ou representantes legais autorizados pelas conversões nacionais, estaduais e municipais. Nós somos os donos, nós mandamos, nós fazemos e acontecemos e nada nem ninguém pode nos deter...Tem sido assim desde sempre!

Como se não bastasse, O’Meliante completou a humilhação:

-Que mandamentos você espera que ensinemos aqui? Os de algum ser superior para evolução individual ou coletiva da humanidade? Tá de brincadeira, não é? Acha que somos trouxas? Aqui apresentamos dogmas e ensinamos usos e costumes que para nada servem, apenas para deixar ainda mais abestado os que se auto intitulam como donos da verdade. Além disso exigimos lealdade irrestrita à toda uma cadeia de ministros bem como às suas esposas, filhos e familiares direto. Aqui mandamos e vocês obedecem. Entrou aqui por quê quis, otário (quer dizer, vaso)!

O’Nescio juntou um pouquinho da lógica que ainda lhe restava e tentou argumentar usando partes do próprio livro que a comunidade venerava contra aquele que tentava subjuga-lo. Pensou estar levando vantagem, quando uma avalanche de versículos soltos e desconexos lhe foram disparados como se por uma metralhadora:

-Inferno; perdição; lago de fogo e enxofre; sofrimento eterno; doenças terminais; desemprego; blasfêmia contra o espírito santo, blá, blá, blá...

O’Meliante descarregou um “pente inteiro” naquele pobre homem, enfatizando as palavras acima citadas ou assuntos que correlacionassem misérias e desgraças ao fato de alguém “sair dos caminhos santos” ou “desobedecer a um ungido”.

Os congregados ali jubilavam. Ovacionavam o nome daquele qual diziam sacralizar.

O’Néscio se contorcia da dor da humilhação e chorava ao ser chamado publicamente de “pecador”, “perdido” e “filho das trevas”.

Tudo isso era dito pela boca de um cidadão de vida fácil, que ganhava a vida apontando uma bíblia para os outros e ameaçando-as de modo vil, apontando-lhes a morte e condenação eterna aos que a ele não se submetessem.

Logo ele, que apesar de pouco inteligente, era um pai de família exemplar, bom marido, bom filho, bom funcionário, bom cidadão...Uma pessoa que se auto regulava para que ninguém o fizesse.

Estava ali agora sendo escorraçado por uma pessoa que se escondia atrás de um livro de capa preta para surrupiar os bens, a paz e o tempo de vida útil dos outros...

Não havia nada mais insano que isso. Aquela aberração estava bem ali em sua frente. Derramando gostas de suor e perdigoto enquanto dizia estar fazendo uma oração final para a salvação da alma daquele “perdido” e seu ingresso naquela “família de santos”.

Seu tormento estava apenas começando.

CONTINUA....

Texto escrito em 26/8/23.

*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.

Ferreira Bispo
Enviado por Ferreira Bispo em 26/08/2023
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