NÃO FORAM OS TATUADOS, MAMÃE!
Reflexões de uma “ex-detenta, cristã-conservadora”
*Por Antônio F. Bispo
*Jurema Pintada, 63 anos, presa em 8 de Janeiro de 2023 por atos de vandalismo e atentado violento ao Estado Democrático de Direito.
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Mãe, lembras tu de quando disseste-me que as más companhias corrompem os bons costumes?
Lembra de quando em minha adolescência, infância e juventude, me apontastes quem ou qual pessoa me seria uma má influência? Tu disseste que se assim eu o fizesse, jamais estaria em problemas.
Nesta época me fizestes crer que pobres eram pessoas inferiores; Que negros eram amaldiçoados por Deus e que ciganos, judeus e orientais não eram pessoas dignas de confiança.
Também me eram vetados qualquer tipo de contato com gays, lésbicas ou mulheres recém-separadas. Teu olhar era fulminante, quando até um bom dia eu disparava contra “esse tipo de gente”.
A mãe solteira que com muito esforço e dignidade criava seus rebentos; O filho do padeiro, aquele pobrezinho que todos os dias passava e de longe me acenava com a mão e as crianças da rua de baixo também estavam nesta lista, lembra-se?
Até a filha da “graxeira”, aquela de minha idade, cuja a mãe trouxe uma ou duas vezes para brincar comigo às escondidas por que eu pedi... A senhora ficou sabendo e a despediu por conta disso.
Tu disseste que não queria que eu me misturasse com a ralé. Disse que “essa gente” me traria grandes prejuízos no futuro, recorda-te?
Tu dizias sempre: “cuidado com os comunistas. Essa gente do demônio quer subverter nossos valores e bons princípios”!
A tua maior preocupação era com os tatuados...
Um milhão de vezes tu dissestes: “minha filha, jamais mantenha contato com gente tatuada! Gente que paga para fazer desenhos na própria pele não pode ser do bem. Estes são marginais. Alguns são bandidos. Deus não gosta destas coisas. Com certeza o diabo já os possuiu...Muito cuidado minha filha”!
A tua irmã, a minha tia, aquela beata do convento, reforçava com veemência esta última fala. Acho que era por influência dela que tu martelavas tanto esta citação.
Se fosse homem, tatuado e usasse brinco...Aí era o pacote completo do diabo!
Se este ainda possuísse um cavanhaque e um cabelo preso em rabo-de-cavalo, estaria ali o próprio satã em pessoa, segundo a sua concepção.
Tu dizias que se algum dia, alguém entre nós viesse a ter problemas com a lei, seria por conta de alguém desse tipo, que por indução ou manipulação nos levaria ao caminho do abismo.
Gente rica, branca, limpinha, de bons modos e morador da zona franca: estas eram as tuas recomendações para meus relacionamentos e amizade.
Me dissestes que todos estes eram “pessoas boas e de coração puro”, pois todos eram como nós, puritanos, “gente de classe”, pessoas de bons intentos, que tinha Deus no coração!
Tudo isso eu segui.
Tudo isso eu fiz em obediência a ti e praticamente tudo isso ensinei aos meus filhos e netos, acreditando que assim, jamais “comeria farelo com os porcos”, como tanto dizias.
Nos orgulhávamos de sermos caucasianos, católicos, conservadores, de classe média e de termos em nossa lista de amigos, as pessoas mais influentes da cidade.
Meu pai (que há muito falecido), também se orgulhava de mim, por eu seguir à risca as tuas recomendações. Que Deus o tenha!
Você, principalmente você, nunca escondestes o quanto era racista, preconceituosa e xenofóbica. Tinha isso como qualidade, não como defeito.
O modo como desprezava os mais pobres e a classe trabalhadora em geral, era percebido à distância. Tu dizias ter prazer quando “punha os pobres no chinelo”.
Para ti, estas não eram coisas para se ter vergonha, sim orgulho.
Dizias que de certo modo, gente como nós tinha sido escolhida por Deus para tais privilégios, enquanto os demais estavam por algum motivo, recebendo suas devidas punições por feitos presente ou do passado!
Tu até dizias que ao tratar um desvalido com desprezo, estava executando uma vontade divina, como se por meio de ti o sagrado se manifestasse para castigar tais indivíduos.
A vossa forma de ver o mundo era tão estranha, mamãe...
Só agora, depois de 6 décadas é que vim perceber, depois de 40 dias de cana, vendo o sol nascer quadrado, tendo que dividir espaço com quase 200 outras “mulheres de bem”, presas pelo mesmo motivo.
Caso ainda não saiba, mamãe, estive presa! Para meu espanto, para vosso assombro.
Mesmo tento cumprido à risca todas as tuas recomendações e não me misturando com “gentalhas”, fui parar no xilindró!
Que vergonha mamãe, não sei o que dizer. Nem sei como explicar!
Foi inacreditável. Fiquei absorta!
No início do corrente ano, no dia 8 de Janeiro, fui levada para um presídio e passei mais de 40 em cela comum, acusada de atos terroristas e outros artigos do código penal brasileiro.
Até hoje me custa crer em tudo o que fiz e até que ponto minhas atitudes me levaram.
Se não fosse pelas gravações de vídeo feitas e os milhares de compartilhamento que fizeram de minha imagem, voz e ações, até eu mesmo diria que tudo fora um pesadelo, uma grande mentira, criada por “essa gente que não quer ver o nosso bem”!
Mamãe: Não foram os tatuados!
Não foi por conta destes “marginais” que cheguei a este ponto.
Também não foi por causa da filha da faxineira, nem do negro, do cigano, do judeu ou pedreiro pobre.
Também não foram os comunistas, mamãe!
Dá para acreditar que não foram eles os mentores e executores de tais badernas?
Meu mundo caiu ao me dar conta de onde tinha me metido e do que tinha feito, mas já era tarde. Somente lá, esfriando a cabeça é que “caí na real”!
Tive tempo o bastante para refletir.
Levei quase 8 meses para tomar coragem e te contar.
Pensei em não abalar sua saúde com tais deméritos, mas ao mesmo tempo, pensei em falar-te que tuas (nossas) percepções de mundo, estavam erradas, querida mãe.
Foi por conta de “gente de bem” me meti nesta enrascada, mãezinha.
Pastores evangélicos, militares, alguns padres, gente rica, branca, alguns privilegiados (outros não), políticos de direita, gente nobre, “gente de família” como nós...
Mamãe dos céus! Toda essa gente santa, gente pura, gente de bem, gente escolhida por Deus... Todos eles estavam lá, quebrando vidraças, cortando estofados, destruindo patrimônio histórico de incalculável valor, vandalizando tudo, mostrando a bunda e até vangloriando-se de “cagar no banheiro do Xandão”.
Meu pai do céu, valei-me minha Nossa Senhora!
Acredita que aquela idosa, a que ficou conhecida como “a cagona de Tubarão”, sabia que fomos colegas de acampamento?
Isso mesmo mamãe, acampamento, como se soldados fossemos!
Como se realmente estivéssemos alistados em um grandioso exército, ficamos por meses acampados.
Como se em causa celestial estivéssemos lutando, permanecemos por meses em barracas, comendo qualquer coisa e dormindo de qualquer jeito, velando em vigílias até altas horas, invocando no nome do Jair e saudando a todo instante, qualquer militar que aparecesse em nossas tabernas montadas.
Ali em frente aos quarteis, correndo todo tipo de risco sanitário e de vida, fizemos muitos amigos. Alguns destes eram nossos conhecidos. Outros, colegas de infâncias, mentores e políticos estimados.
Como em um frenesi juvenil, batíamos continência à qualquer tonto trajando verde-oliva. A maioria nem era militar. Apenas estavam fantasiados. Só sabíamos dias depois.
A estes (incluindo os abilolados) impetrávamos bênçãos, chamando-os de heróis, tentando manipulá-los para que pudessem tomar o poder em nosso nome e ao nosso favor.
Venerávamos qualquer um que fazendo da bandeira do brasil uma capa para as costas, travesseiro ou assoalho, fosse também capaz de falar qualquer bobagem motivacional em nome do Mito.
Tínhamos sede de aparecer nas redes sociais como heróis, por isso idolatrávamos e obedecíamos cegamente à qualquer um que fizesse bom (ou mal?) uso da palavra e nos expusesse ao ridículo, como se celebridades fôssemos.
Para sermos notados, cultuamos até um pneu usado de caminhão.
Abrimos alas para o “megatron da shoppee” e com e com ele, na comunhão de todos, “rezamos o hino nacional na presença do Deus vivo”.
Nossa gente bloqueou estradas, fechou vias importantes, negou acesso à aeroportos e danos incalculáveis causamos. Fomos causas pela morte de algumas pessoas e prejuízos irreversíveis às centenas de outras. Na ocasião, tivemos orgulho disso.
À todo instante éramos enganados com a falsa prisão dos ministros do supremo.
Comemorávamos com louvores e júbilos.
Minutos depois nos decepcionávamos por saber que era tudo um trote.
Dias depois caíamos no mesmo golpe e nem por isso deixávamos de ser tontos.
Era uma emoção atrás da outra. Aquilo nos fazia sentir vivos outra vez. Era um dos poucos meios de se achar útil no meio dessa sociedade hipócrita que despreza os idosos.
Até uma homenagem ao Rei Pelé foi interpretada por alguns de nós como sendo a queda da Democracia e instauração de uma Ditatura Cristã-Conservadora, com nosso Mito no poder.
Minha mãe...foram 4 anos de instigações, propagandas políticas ininterruptas e mensagens subliminares de apoio ao caos.
Éramos por 24 horas alimentados com desinformações e manipulações de todas as formas, oriundas de todas as fontes, até das mais confiáveis.
Isso deu no que deu.
Então fomos presos e abandonados.
Servimos de mulas, porém fomos responsabilizados como autores originais desse nefasto e atabalhoado atentado à democracia.
Nosso mito foi para a Disney e como patetas fomos tratados!
O Cid, nem na “Era do Gelo” passou “tanto frio”.
Havia dezenas de “revolucionários de apartamento” nos estimulando. O Constantino “original” teria vergonha do nosso atual Constantino por usar o XPTO de forma tão abilolada.
O que poderia ser uma conquista lendária tornou-se um tormento eterno.
Um-a-um, todos os mentores e incentivadores se esquivaram, desdisseram ou fizeram uma releitura de suas próprias citações.
Fomos abandonados.
Cada um dos que se precipitaram no abismo estão tentando sair de lá com recursos próprios.
O imbroxável, broxou e fugiu!
Inelegível está “Cavaleiro do Apocalipse”!
Os que por ele foram duramente provocados, tentam agora “comer sua carne”, mesmo tendo dito ele ser “incomível”.
Nem o “Ungido de Dubai”, o “Filho do Sol”, o “Zé Carioca” ou até mesmo o Aristides podem salvá-lo agora.
Em um cadáver ambulante ele se tornou.
Suas piadas de c# já não fazem tanto sucesso.
Elas só faziam sentido, quando em sã consciência a “bancada-da-bala-evangélica” podia usá-las como moeda de troca, para que a imagem do profano fosse sacralizada mesmo em meio aos tantos impropérios.
Os jornalistas não mais temem “ao furo”, nem ao duplo sentido que uma mente pervertida possa dar a essa linguagem técnica.
Como um rebanho sem pastor o rebanho está disperso! Algumas “ovelhas” estão sendo literalmente devoradas por conta de tantas coisas horrendas que fizeram ou disseram durante o reinado do “idolatrado”.
Foram tantas ocorrências em tão poucos meses, que até os historiadores terão dificuldades de enumerá-las no futuro, quando narrarem toda essa patifaria que fizemos ou apoiamos.
Mamãe, nunca mais levarei à risca tudo o que me dissestes à cerca das “pessoas de bem e cheias de Deus”.
Por conta destas vivi o inferno.
Por falta de conselhos não foi.
Meus filhos bem que me alertaram.
Meus netos até hoje estão em tratamento psicológico por contas das imagens que viram estampadas nos jornais e revistas.
Eu estava lá, “quebrando tudo”, rodeada de desordeiros, agindo como gente má, mesmo dizendo ser do bem.
Ah mãezinha...Aos 85 anos, sei que não esperava ouvir isso de tua filha tão bem criada.
Fui recatada e do lar.
Durante todo o matrimônio jamais fui leviana.
Em todos os meus dias fui obediente aos teus preceitos e às tradições de nossa igreja.
Iludida fui, recomposta estou.
Minha visão de mundo e das “coisas santas” mudaram um pouco.
Vivo agora em constante estado de alerta quanto as “pessoas de bem” e dos “ungidos de Deus” quero distância.
Que os seus dias finais sejam de paz e descanso, ôh minha doce mãe!
Fiques tu sabendo, que “os tatuados desse mundo” não são nossos maiores problemas.
Boa parte dos “desenhos negros” de sua pele foram pintados por nós, que os rotulamos com dizeres profanos por conta de nosso preconceito.
Alucinada Jurema fui (como meu próprio nome sugere).
Pintada do rubor causado por minhas más ações fiquei.
Me despeço de ti dizendo desejando estar protegido da maldade de gente boa.
Até breve!
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Texto escrito em 30/7/23.
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.
*Jurema Pintada é um personagem que criei para este conto. Os relatos e citações também são aleatórios, tirados de reportagens e vídeos abundantes sobre o tema.
Qualquer semelhança com local ou pessoa acima descrito será mera coincidência.
Por sua característica alucinógena, associei o personagem a essa planta (Jurema), abundante no Nordeste Brasileiro e rica em alcaloides.
Julgo ter sido todo o processo de “aquartelamento” que sucederam o “grand finale”, bem como outros instantes de caos dos últimos 4 anos como sendo um grande estado de êxtase coletivo.
Todos nesse perfil pareciam estar sendo ou “consumindo jurema” durante os dias vassalagem. Alguns ainda parecem estar em transe, apesar dos pesares.