A FILOSOFIA SELVAGEM DE SCHOPENHAUER
1-
Arthur Schopenhauer escreveu em vários de seus escritos muitas considerações pessimistas e , porque não dizer, realistas sobre a vida, sobre o universo, sobre a intelectualidade de seu tempo e sobre as nossas escassas capacidades da grande maioria dos seres humanos de suportar a solidão (que para ele é a condição de nossa felicidade e liberdade) e de vencer o tédio. No entanto, não deixou de apontar maneiras de vencer a nossa condição.
Eis aqui uma apresentação da filosofia selvagem de Schopenhauer. Sem dúvidas, uma filosofia pessimista, metafisicamente falando; mas que não deixa de proporcionar certo otimismo prático, especialmente no que diz respeito a sabedoria advinda de uma moral ascética e de uma vida contemplativa.
O filósofo de Dantzig, antiga Prússia, escreveu algumas obras como Metafísica do amor e da morte, Aforismos para a sabedoria de vida e O mundo como vontade e representação. Mas foi quase no final de sua vida, com uma obra extensa chamada Parerga e paralipomena, que ele ganhou notoriedade. Nela estão presentes diversos assuntos, como ética, teoria das cores, teoria do direito e da política, sofrimento do mundo, religião, suicídio, lógica e dialética, etc.
O seu pensamento tem influências profundas do cristianismo primitivo, do hinduísmo e do budismo. Mas também de Kant, de Goethe, dos estoicos e de Platão. É desse intercâmbio de ideias e de doutrinas que ele contrói uma filosofia original, cujo tema principal é a vontade e o sofrimento que a sua onipotencia gera na vida dos indivíduos, pois segundo ele: "A vida humana, pois, passa-se toda em querer e em adquirir. O desejo, por sua natureza, é dor: sua realização traz rapidamente a saciedade: o objetivo não era mais que uma miragem; a posse mata todo encanto; o desejo ou a necessidade de novo se apresentam, sob nova forma: se não, é o nada, é o vazio, é o tédio que chega".
Ao contrário de uma vontade de potência tal como seu contemporâneo Nietzsche defendia, numa postura de auto-afirmação e de um sim a vontade de viver, Schopenhauer tinha uma postura de negacão; o mesmo via a vontade como uma força cega, irracional e que gera um apetite insaciável em todos os seres. Para ele, vivemos num mundo em que só existe um combate incessante pela sobrevivência e, por fim, que traz a inevitabilidade da morte; num mundo fulminado por desejos insaciados e intermináveis (cada ser vivendo numa ânsia constante).
Na segunda parte desse ensaio, exponho a filosofia de Schopenhauer com base no seu livro mais importante, O mundo como vontade e representação. É claro que nesse livro nem todos os assuntos estão presentes. Por exemplo, nos ensaios "Metafísica do amor e da morte", o autor esmiúça o tema do amor sexual, um assunto tão importante à psicanalise por tratar dos nossos instintos que objetivam a perpetuação da espécie; e, como o título da obra sugere, sobre a morte e sua relação com a indestrutibilidade de nosso ser em si, falando especificamente sobre a inspiracão da morte para o nosso filosofar e a nossa consciência sobre a finitude.
2-
Na obra principal, enriquecida de apêndice e de complementos, Schopenhauer sistematiza o seu pensamento filosófico, trazendo para a cena contemporânea o niilismo e a metafísica da força vital chamada vontade, a própria coisa em si kantiana.
Marco Luchesi, a respeito do livro célebre do filósofo, nos traz a dimensão da importância dessa obra para o nosso tempo: "Schopenhauer escreveu uma obra-prima, de estilo ao mesmo tempo claro e elevado, áspero e suave, frio e apaixonado, diante do qual é impossível não sentir uma forte emoção. Temos uma sinfonia sobre o nada e seus terríveis simulacros. Uma sinfonia sobre a condição humana, ferida pela vontade. E as pedras. E os mares. E os planetas. Schopenhauer trouxe de volta o nada para a cena contemporânea e demonstrou que o cosmo não é senão o véu de Maia. E dele surgiram- por vias transversas- Nietzsche e Freud, Sartre e Cioran, para a consolidação de novos domínios".
De fato, o nosso pensador em questão não só influenciou tais autores, como também cientistas como Jung e muitos outros filósofos. Ele influenciou, principalmente, artistas e poetas, até porque sua obra traz uma contribuição e uma consideração toda especial a arte, a genialidade, ao sublime, a beleza e aos conteúdos artísticos.
Ora, é importante ressaltar, que o pensador alemão desenvolveu sua filosofia a partir dos pensamentos filosóficos provenientes de Platão e de Kant, pensadores que o inspiraram a desenvolver uma visão de mundo dicotômica, embora ele tente minimizar o dualismo, ao tornar mais cognoscível e perceptível a essência do universo, bem como o princípio originário de nossa dor e de nosso sofrimento. Mais adiante, ele não deixou de apontar caminhos de alívio e redenção da nossa condição, seja através da contemplação artística, seja através da ética da compaixão e da negação da vontade de viver.
Do primeiro filósofo, ele extrai a concepção das ideias e de sua inteligibilidade, que para o filósofo alemão está na própria manifestação do belo nas artes. Ou melhor dizendo, o filósofo concebe a ideia platônica como objeto de apreciação desinteressada do belo nas artes e do sublime. Pelas artes, portanto, vemos a representação ou o fenômeno da ideia da própria vontade ou de forma mais imediata e direta, a representação desta. Tudo vai depender de qual manifestação fazemos referência.
Na terceira parte de sua obra principal, o filosofo elucidou justamente um ponto de vista com o foco na representação independente do princípio da ração, cuja finalidade é falar sobre a ideia platônica como objeto da arte e também da contemplação das ideias mediante as mais diversas formas de arte, desde a arquitetura, passando pelo teatro e pela poesia, até a música: a mais perfeita manifestação artística, justamente porque ela representa a própria vontade e sua essência.
Na introdução das obras escolhidas de Schopenhauer, Rubens Rodrigues explica a importância das artes para sua filosofia, servindo como via ou forma de aliviar o sofrimento e a dor: "Num primeiro momento, o caminho para a supressão da dor encontra-se na contemplação artística. A contemplação desinteressada das ideias seria um ato de intuição artística e permitiria a contemplação da vontade em si mesma, o que por sua vez, conduziria ao domínio da própria vontade. (....) A atividade artística revelaria as ideias eternas através de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica, e, finalmente, pela música".
Do segundo filósofo, Schopenhauer se aprofunda no que o pensador de Koninsberg entendeu por mundo fenomênico e por coisa em si, chegando a se distanciar de sua filosofia no campo ético e moral. Kant, por exemplo, diz que não podemos ter acesso a coisa em si; não podemos, portanto, conhecer a essência das coisas, mas apenas os fenômenos, que não são a totalidade da realidade. Sim, só podemos perceber aquilo que está submetido ao tempo, ao espaço e a causalidade e, portanto, só conseguimos conhecer apenas um aspecto limitado da realidade
Ao contrário de Kant, que dizia que é impossível o acesso a essa coisa em si, no qual só podemos pensar e não conhecer, Schopenhauer diz que não só é possível, mas que também podemos apreendê-la através de nós mesmos, ou seja, por meio de nosso corpo: fonte de nossas vontade e desejos. Na visão do pensador: "Visto que todo corpo pode ser considerado fenômeno de uma vontade, e que a vontade se apresenta necessariamente como uma tendência, o estado primitivo de todo corpo celeste condensado em esfera não pode ser o repouso, mas o movimento, a tendência para progredir sem paragem e sem alvo, no espaço infinito".
Nesse mesmo capítulo, ele também vai dizer: "A coisa em si é unicamente a vontade; nesta qualidade, ela não é de maneira nenhuma representação, difere dela toto genere; a representação, o objeto, é o fenômeno, a visibilidade, a objetividade da vontade. A vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de cada coisa particular, como do conjunto; é ela que se manifesta na força natural cega; ela encontra-se na conduta racional do homem; se as duas diferem tão profundamente, é em grau e não em essência".
O filósofo alemão sistematizou muito bem os conceitos de representação, de um lado, e vontade, de outro lado, unicamente no seu livro principal "O mundo como vontade e representação", no qual traz quatro pontos de vistas distintos um dos outros, ou melhor, dois pontos de vista da representação e dois da vontade. Nessa obra-prima, ele aborda sobre epistemologia ou teoria do comhecimento; metafísica e filosofia da natureza; estética ou filosofia do belo e, por fim, no seu próprio ponto de vista, a disciplina da filosofia mais importante de todas: a filosofia moral e ética.
3-
Schopenhauer inicia a sua principal obra do seguinte modo: "O mundo é minha representação. – esta proposição é uma verdade para todo ser vivo e pensante embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado, pode-se dizer que nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas olhos que veem este sol, mãos que tocam está terra; em uma palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem".
Nessa primeira parte da obra, como se vê, há uma preocupação em desenvolver um ponto de vista que diz respeito a teoria do conhecimento, na qual a representação está submetida ao princípio da razão suficiente, sedo esta o objeto da ciência e da experiência, como está escrito na abertura do livro.
Na segunda parte do mesmo livro, o autor muda o seu ponto de vista, dessa vez sob a perspectiva da vontade e de sua objetivação. A vontade, como uma força cega, irracional e poderosa, é a própria raiz metafísica da vida que conhecemos, a essência de todo o universo e da natureza. E também fonte de todos os sofrimentos dos seres e, especialmente, do ser humano que sempre quer mais, numa insaciedade quase sem trégua e incessante.
Como bem Marco Luchesi disse no prefácio do livro do filósofo alemão: "Para atenuar o abismo kantiano, Schopenhauer define primeiramente a vontade como coisa em si, reconsiderando-a, pouco mais tarde, como raiz de todos os fenômenos- e, por isso mesmo, abordável. Volta-se de modo especial, para a vontade de viver, entendida como força obscura e cega, como impulso terrível e dramático, que move os indivíduos de forma dolorosa e brutal. Não a vontade temperada pela razão (boúlesis), mas o desejo rude e irrefletido (a thélêma), condicionado pelo instinto de conservação".
Na quarta parte de seu livro apresentado aqui, Schopenhauer aborda sobre a vontade de viver e de sua negação, cujo foco principal é na ética e na moral, sem pregar qualquer conduta adequada, mas tão somente apontar uma forma mais cabível de supressão e vitória sobre o egoísmo da vontade de viver através da compaixão e, posteriormente, pela via da santidade que transcende a condição humana ferida pela vontade, num caminho de redenção mediante o ascetismo que implica a negação da vontade de viver.
Quase no final de sua obra Magna, Schopenhauer resume muito bem a proposta de seu trabalho, que por sinal traz um teor profundamente niilista sobre a vida, marcada por um combate sem trégua, oscilando entre a dor e o tédio.
Eis aqui, para finalizar a explanação dessa filosofia selvagem, um trecho extenso que nos dá a dimensão de sua concepção pessimista do mundo: "Quanto a nós, que nos mantemos escrupulosamente no ponto de vista da filosofia, devemos contentar-nos com a noção negativa, felizes por ter podido chegar à fronteira onde começa o comhecimento positivo. Constatamos, portanto, que o mundo era em si a vontade. Reconhecemos em todos os seus fenômenos apenas a objetividade da vontade. Seguimos essa objetividade desde o impulso inconsciente das forças obscuras da natureza até a ação mais consciente do homem. Chegados a este ponto, não nos furtaremos às consequências de nossa doutrina: da mesma forma que se nega e que se sacrifica a vontade, todos os fenômenos têm igualmente que ser suprimidos: suprimidas tanto a impulsão como a evolução sem objetivo e sem termo que constituem o mundo em todos os graus de objetividade, suprimidas essas formas diversas que seguiam progressivamente. Da mesma forma que o querer, suprimida igualmente a totalidade de seu fenômeno; suprimidas, enfim, as formas gerais do fenômeno, o tempo e o espaço; suprimida a forma suprema e fundamental da representação, a de sujeito e de objeto. Já não existe nem vontade, nem representação, nem universo".