Ode ao Oblívio
Eu nunca tive medo de morrer. Acredito piamente que, assim como não tenho memórias de sofrer temores e gozar de prazeres antes de nascer, também há em mim uma convicção pura e profunda – daquelas que simplesmente existem e são, sem necessidade de se provar –, de que não vou me deleitar ou ser atormentado depois de partir. Pior seria, na minha visão, viver eternamente e não poder sequer conseguir um descanso depois de tantas quedas e tropeços em tão desgastante jornada que é a vida.
Não obstante, tenho sim meu medo sinistro e inevitável. Mais sombrio que a morte é o esquecimento, afinal. O oblívio é implacável, o esquecimento derradeiro e em última instância. Não sei se pode haver algo mais apavorante do que a noção de que daqui um milhão de anos não vai sobrar ninguém para se lembrar de mim, de quem eu amei, de quem odiei, das coisas que fiz e das que não tive coragem de fazer. Ainda que houvesse a imortalidade, nada pode ousar ser páreo para a expansão do Universo e a morte das estrelas. O Oblívio a tudo apaga, a tudo leva, e é tão puramente simples de entender quanto sua perspectiva é esmagadora. Não há o que fazer, a perca de todas as coisas que fazem sentido para uma alma que se chama humana é concreto e definitivo.
Sobre o fazer e o se arrepender, é baseado na consciência e no medo do esquecimento absoluto que tenho assumido cada vez mais atitudes ousadas nos últimos anos. Ainda assim, acredito também que atos covardes são inerentes ao ser humano. Acho que nunca vamos ter todas as coragens para todas as loucuras que passam por nossas cabeças, e sempre vai haver um “Grande Talvez”, como François Rabelais disse logo antes de seu próprio fim. Essas dúvidas, quase tão implacáveis quanto o Oblívio, têm me acompanhado por toda a vida, e também acho que sempre vão. Acho que aceitar isso é doloroso e bonito ao mesmo tempo, se quer saber. Não se pode fugir do passado, afinal, e estamos sempre deixando mais e mais caminhos para trás.
Muitos dos meus arrependimentos, ainda sobre isso, têm a ver com o amor. É complicado, esse negócio de amar, não é? Acho que a gente aprende desde nossos berços a amar, das mais variadas e repetidas formas. Aos pais, aos irmãos, aos amigos, aos amados. Se apaixonar, sofrer na alma as mazelas e desfrutar das delícias desse sentimento, tudo isso muda profundamente alguém. Me mudou profundamente. Do mais radiante dos dias, quando tudo que havia sobre mim e alguém mais era um céu azul sem fim e risadas bobas, até a mais sombria das noites, quando percebi que fui ferido, e que também posso causar muitos ferimentos. Acho que uma das maiores dores que carrego, aliás, é a consciência da capacidade de machucar que eu tenho, assim como todos os outros. Se fosse para definir mais uma característica do ser humano, acho que é que está nas nossas raízes, machucar e ser machucado. É inevitável.
Mesmo com tudo isso, acho que ainda vale a pena. Afinal, o que é uma vida sem amor? Uma vida sem coração batendo forte, sem estômago embrulhado ao olhar pra alguém, sem conversas que te fazem se perder no tempo. Uma existência inteira sem partilhar uma música, sem falar sobre arte, sobre o trânsito, sobre o clima, sobre as pessoas (e entenda: quando eu digo falar, quero dizer conversar de verdade, levar tudo ao cerne enquanto sustenta o clima leve, algo que é extremamente difícil de conseguir com qualquer um). Um destino desses parece quase tão terrivelmente desesperador quanto o Oblívio, ou uma vida de falso imortal.
E ainda vou além nesse pequeno devaneio. Acho que todas essas memórias, pensamentos e reflexões, talvez estejam mesmo armazenadas em um grande “palácio da mente”, como muitos pensadores já disseram por aí. E, se a mente é um palácio, sinto que o meu está em chamas. Um verdadeiro incêndio, algo que consome a tudo, mas que também queima as sombras e a escuridão, arrebenta as gavinhas sinistras da maldade; um fogo quase sagrado, quase místico, que vem desapropriar a tudo para depois deixar espaço para uma nova construção. Talvez, afinal, a destruição seja mesmo uma forma de criação.
Por isso, ainda que tenha muito mais o que falar, faço dessa pequena peça de minha loucura uma Ode ao Oblívio. Que não esqueçamos jamais do derradeiro apagamento de toda a esperança, memória e sentido e que, por isso, no curto tempo que ainda temos, façamos da existência a maior algazarra e balbúrdia, de alegria, amor, choro, derrota, vitória. Só os sentimentos e experiências, vividos ao máximo e em sua plenitude, podem fazer tudo isso ter pelo menos algum sentido.
Felipe Diniz, 07 de abril de 2023.