EXISTE UMA POESIA INFANTIL?
Existe uma poesia infantil?
*Leo Barbosa
Até o século XVIII, no Ocidente, não havia uma concepção de infância como a temos hoje. A criança era vista como um adulto em miniatura. Só a partir do século XIX, com o surgimento da família nuclear, passou-se a ter a preocupação com a infância. Ainda, no final do século XIX e início do século XX, poucas obras destinadas ao jovem leitor e/ou ao leitor-iniciante foram publicadas no Brasil. Com o desenvolvimento do sistema educacional e os incentivos dados pelo Governo, considerando-se a literatura/leitura o instrumento mais indicado para o desenvolvimento intelectual, viu-se a necessidade de produzir obras para os neófitos.
As primeiras obras publicadas que tinham como alvo o público infantil apareceram no mercado livreiro na primeira metade do século XVIII. Antes disso, apenas durante o classicismo francês, no século XVII, foram escritas histórias que vieram a ser englobadas como literatura também apropriada à infância: as fábulas, de La Fontaine, editadas entre 1668 e 1694, por exemplo. (BIASIOLI, 2007. p. 97)
Quanto à poesia infantil, Olavo Bilac foi o precursor do gênero em nosso país. Com a Proclamação da República, torna-se necessário modernizar a rede pública de ensino. Engajado nesse projeto, Bilac preocupou-se com o aspecto educacional. Dessa forma, nota-se a inviabilidade de tratar a poesia infantojuvenil brasileira sem antes contextualizar a formalização da escola no Brasil. A poesia infantojuvenil surge, então, como instrumento da pedagogia, sendo frequente o conteúdo moralizante e patriótico desses poemas. Observe o poema abaixo:
A CASA
de Olavo Bilac
Vê como as aves têm, debaixo d'asa,
O filho implume, no calor do ninho!...
Deves amar, criança, a tua casa!
Ama o calor do maternal carinho!
Dentro da casa em que nasceste és tudo...
Como tudo é feliz, no fim do dia,
Quando voltas das aulas e do estudo!
Volta, quando tu voltas, a alegria!
Aqui deves entrar como num templo,
Com a alma pura, e o coração sem susto:
Aqui recebes da Virtude o exemplo,
Aqui aprendes a ser meigo e justo.
Ama esta casa! Pede a Deus que a guarde,
Pede a Deus que a proteja eternamente!
Porque talvez, em lágrimas, mais tarde,
Te vejas, triste, desta casa ausente...
E, já homem, já velho e fatigado,
Te lembras da casa que perdeste,
E hás de chorar, lembrando o teu passado...
- Ama, criança, a casa em que nasceste!
Nota-se o apelo da poesia bilaquiana para que a criança permaneça em seu lar – “O filho implume, no calor do ninho!...” (2º verso). É inevitável inferir que o poeta faz alusão à parábola bíblica do Filho Pródigo . Para tanto, o poeta utiliza a figura do passarinho para representar a vulnerabilidade do filho, pressupondo que a criança se identificará com este. Considerando-se que é um poema destinado às crianças, é iminente o risco de usar pretextos moralizantes como forma de “adestrar” o leitor, pois sabe-se que é na infância que se constroem o caráter e a personalidade de um ser humano.
Essa função utilitário-pedagógica é a grande dominante da produção literária destinada à infância, e isso desde as primeiras obras surgidas entre nós. Nada mais do que atender a uma exigência da própria estrutura da cultura ocidental em relação a seu tradicional conceito do ser infantil. (Palo & Oliveira, 2006, p.7)
Em contrapartida, encontramos na poesia contemporânea (70 anos depois de Bilac), aspectos que a tornam menos comprometida com o didatismo, com princípios educativos, seja ela de caráter estético ou conteudístico. Adota-se um prisma próximo ao da criança. Não predomina a imagem da criança como um ser em formação, mas como aquele que tem peculiaridades. A infância nesses poemas apresenta-se de forma mais centrada, não mais impregnada com a visão de como o adulto gostaria que a criança se portasse, mas voltada aos objetos presentes no seu cotidiano e no seu imaginário. Observe-se o poema também intitulado A casa, de Vinícius de Moraes:
A CASA
de Vinicius de Moraes
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela, não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número Zero.
Agora nota-se a exploração do lúdico. O texto passa a ser mais sugestivo que determinista. Em A casa, de Vinicius de Moraes, o fascínio é causado pelo estranhamento, como o fato de uma casa não ter teto, chão, parede, penico, mas ainda assim “era feita com muito esmero”.
Ao utilizar “era uma casa”, o leitor aciona imagens conforme a concebe em seu imaginário. Rememora algumas histórias que já foram contadas a partir da expressão “Era uma vez” e põe-se a construir a imagem dessa casa, que depois vem a ser destruída pela ausência de elementos fundamentais para que o lar se constitua dentro da naturalidade. Mas isso não impede a compreensão do poema. Quem quando criança não se lembra das aulas de desenho quando a professora polivalente pedia para que desenhássemos uma casa, mas nos dava um modelo? Se fizéssemos de maneira diferente, era considerado errado. A casa, então agora, não é motivada por um mundo real, mas por um modelo que a desconstrói, cedendo ao espanto de não sê-la como a concebemos, geralmente, por isso que ela “era uma casa muito engraçada”.
O poema de Vinicius de Moraes aparece como forma de ilustração em contraste da poesia com preocupações pedagógicas, como a de Bilac. Outros poetas também poderiam ser citados no lugar daquele, a saber: Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Mário Quintana, José Paulo Paes, Sérgio Caparelli, Elias José, entre outros. Estes produziram e produzem poemas de caráter mais lúdicos.
Escrever boa poesia para crianças não é nada fácil. Além de enfrentar limitações quanto a vocabulário, assuntos, alusões e referências, o poeta tem de descobrir o tom certo para interessar seus pequenos leitores. Um tom que seja ligeiro sem ser vulgar ou adocicado, que seja aliciante sem ser sentimental ou moralizador. (Paes, 1996, p. 70)
Ou seja, não adianta falsear um discurso como se fosse uma criança. Aliás, nenhuma criança quer ser tratada como tal, apesar de seu universo ser marcado por aspectos pueris. A criança quer novidade, quer se apropriar das possibilidades do texto. Não quer ser repreendida pelo moralismo, até porque, geralmente, ela já o recebe através dos pais, oralmente.
Os assuntos também são difíceis de ser trabalhados porque urge a necessidade de conhecer a fundo o leitor a que o escritor se dirige. É claro que há assuntos que interessam mais a uma criança que a outra, para não falar em estado emocional que o leitor-mirim pode estar no momento em que recepciona o poema. Pode ocorrer que uma mesma pessoa leia um poema e não goste, mas noutra situação ter por ele um grande apreço. Isso, evidentemente, não vale apenas para a poesia infantil, e ousa-se dizer para qualquer tipo de texto. Entretanto, considera-se também que não será o tema que frustrará o leitor, mas a abordagem.
Além disso, as referências no mundo se modificam rapidamente, e a poesia infantil, como qualquer outra obra /gênero, precisa manter algo que seja atemporal para que continue a conquistar leitores. Do contrário, apenas marcará uma época. Por isso, faz-se necessária uma poesia desvinculada de apelos morais, dogmas, sermões. O tom adocicado pode ser promovido pelas terminações em “inho”, mas isso soa piegas e falso, a criança se sente como desprovida de capacidade intelectual para compreender o que lhe está sendo dito.
Campeiam a imbecilização das formas verbais com diminutivos e adjetivações profusas e construções frasais canhestras; a apresentação desavergonhada de absolutos duvidosos e irretorquíveis sobre o real, desestimulando a reflexão e a crítica; a censura aos aspectos menos edificantes da conduta humana e, sem especial, a vontade desbragada de ensinar, sejam atitudes morais ou informações tidas por úteis, como se a obra devesse substituir os manuais de ensino e a ação educadora de pais e professores. Assume-se que a criança não entende palavras novas e limita-se o vocabulário à moeda miúda da comunicação diária. (BORDINI, 1986, p. 7)
Assumir essa postura redutora a um vocabulário simples constitui um empobrecimento e é de tal ignorância, porque todos sabem que uma das maiores contribuições da leitura é desenvolver o vocabulário, logo a expressão e, em seguida, o conhecimento extralinguístico. Além disso, não é a poesia moralizadora, quase dogmática, que fará a criança se aproximar desse gênero literário. Descrever hábitos de higiene pessoal, enaltecer a nação e os pais, glorificar o índio – tudo isso há de ser um mero versejar que frustrará o leitor, se não for transmitido de forma lúdica, sem autoritarismo.
Contudo, não basta apresentar textos de qualidade. Os mediadores envolvidos nessa tentativa de aproximar o leitor-mirim à poesia infantil devem mostrar entusiasmo. Como transmitir o gosto pela leitura quando não o tem? É preciso preparo e essa disposição dar-se-á não meramente com conhecimentos teóricos, mas num exercício de sensibilização, observando-se a estrutura interna e externa do poema. É necessário também considerar as leituras possíveis que o texto suporta para não reduzi-lo a uma leitura superficial e única. Do contrário a criança será tolhida quando manifestar uma leitura diferente, mas não necessariamente errada, da propagada pelo adulto.
Se existe uma poesia infantil, antes de tudo, evidentemente, deve-se considerar o público-alvo: as crianças. Compreender o seu universo, os gostos, a cognição e o que estes indivíduos esperam deste mundo. Indubitavelmente, elas, as crianças, são sedentas por conhecimento, porque ainda não adentraram no pragmatismo tão presente no mundo contemporâneo.
Diante do exposto, pode-se concluir que, se existe uma poesia infantil, esta está pautada pelos jogos verbais, a saber: sonoridade, ritmos, cadências e às sonoridades que nos remetem a aspectos mais concretos do mundo, como a onomatopeia. Não que essas figuras de linguagem sejam recursos exclusivos da poesia infantil, mas estes são mais recorrentes na poesia infantil.
As crianças precisam da novidade e essa novidade acontece na construção da linguagem. Eis é um dos pontos que será abordado num texto próximo.
*Professor, escritor, poeta e revisor de textos.
Referências
BIASIOLI, Bruna Longo. As interfaces da Literatura Infanto-juvenil: Panorama entre o Passado e o Presente. In: Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos literários. Vol 9. P91- 96, 2007.
BILAC, Olavo. Poesias infantis. 18ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952.
BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Ática, 1986.
MORAES, Vinicius. A Arca de Noé: poemas infantis. 21ª Ed. Rio de Janeiro: José Olypio. 1990.
PAES, José Paulo. Quem, eu? Um poeta como outro qualquer. São Paulo. Atual, 1996
PALO, Maria José. OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil: voz de criança. Ed. 4ª. São Paulo, Ática, 2006.