A mediana e o jornalismo econômico
Quando o Boletim Focus do Banco Central se torna objeto da notícia no jornalismo, não raro aparece o termo “mediana” em leads. Numa rápida explicação do método de pesquisa da autoridade monetária, o redator normalmente menciona que as estatísticas apresentadas no relatório são fundamentadas na “mediana das previsões”. Porém, não fica claro para o leitor leigo o que seria mediana. Até para o leitor com uma noção básica de estatística pode ser um pouco complicado. E por quê? Ele pode se perguntar, por exemplo, por que é a mediana que é usada e não a média.
A mediana aparece em jornais e revistas especializadas. No entanto, também não é tão raro encontrar esse termo em jornais com temas gerais. Pode parecer algo irrisório, mas mencionar a “mediana” sem deixar claro do que se trata e por que ela é o melhor método para identificar tendências no mercado financeiro é esquecer aquela regra mais básica do jornalismo: colocar-se no lugar do leitor.
O uso de termos matemáticos abstratos no jornalismo econômico é indício de uma “superespecialização” da atividade jornalística. O jornalista cobre tanto o Banco Central e a Política Monetária que naturalmente acaba absorvendo os jargões, categorias e conceitos. O problema é quando ele acredita que os mesmos jargões estão incorporados no cotidiano das pessoas e que, por causa disso, todo mundo entende. Ele acaba escrevendo para investidores, economistas e técnicos, não para o público geral.
No artigo intitulado “Por trás das cifras e balanços há pessoas responsáveis e várias interpretações”, publicado no livro “Formação & Informação Econômica (Summus Editorial, 2006), o jornalista Alexandre Calais deu uma relevante lição (p. 65): “O que o setorista não pode esquecer nunca é que continua sendo um jornalista, não importando a sua área de atuação. E seu objetivo principal é o leitor”.
Mas há uma questão que emerge quando se reflete a respeito do jornal impresso: limitações impostas pela diagramação e edição. Antes de dizer diretamente uma das principais limitações, uma explicação. O Banco Central compila previsões feitas por economistas do mercado financeiro. Ao comparar os dados, por exemplo, sobre a expectativa da inflação, os pesquisadores podem observar valores discrepantes que poderiam distorcer uma média significativamente. Exemplo: economistas podem estimar 5% da inflação em 2023. Mas pode haver respondentes que estimem 10%. A mediana é a melhor ferramenta por causa disso.
Sobre a questão mencionada no parágrafo anterior. O redator poderia explicar tudo isso que foi dito antes. O problema é que isso tomaria espaço e poderia impedir que o fato mais importante apareça. É possível que o jornalista explique o conceito, porém ele e/ou o editor também segue a regra da pirâmide invertida e, desse modo, o esclarecimento pode ser colocado no último e/ou nos últimos parágrafos, sendo cortado pela edição por questão de espaço. No texto online, entretanto, não há tal justificativa.
O (quase) socioleto na imprensa
Na obra “Dicionário de Semiótica” (Cultrix, 1979), os linguistas Joseph Courtes e Algirdas Julius Greimas explicam o conceito de “socioleto”. Basicamente, é o uso de expressões e palavras específicos em uma determinada área ou profissão. Jornalistas de economia acabam usando desses itens léxicos para explicar e analisar a realidade sociopolítica.
“Esse quase-socioleto está caracterizado pelo uso de dezenas de palavras que pouco ou nada significam para o público leitor e que por isso tornam também a leitura do texto de Economia excessivamente hermética e elitista”, explica o jornalista Aylé-Salassié Filgueiras Quintão, na sua excelente obra intitulada “O jornalismo econômico no Brasil depois de 1964”.
(Alguém pode propor a seguinte objeção: mediana pode ser aprendida na escola, pois faz parte da matemática básica. De fato. Todavia, a sua aplicação em sondagens no mercado financeiro envolve um entendimento além daquele que se encontra em livros didáticos de matemática do ensino médio.)
O (quase) socioleto é um obstáculo para a plena atividade jornalística. O termo “mediana” expressa uma linguagem tecnocrática. Todavia, é preciso se perguntar: é necessário tal conceito matemático no texto jornalístico? Será que evitar citar a “mediana” implicaria numa distorção da informação jornalística?
Compare o leitor os seguintes trechos: 1) “a pesquisa é baseada em previsões feitas por economistas na sondagem do BC”; 2) “a pesquisa é baseada na mediana das previsões feitas por economistas na sondagem do BC”.
Será o que trecho 1 é menos informativo que o trecho 2? A meu ver, parece que a palavra “mediana” é supérflua. Esse é um exemplo de categoria do jornalismo econômico que o jornalista absorve, mas desnecessariamente cita e que, também desnecessariamente, torna o texto jornalístico um pouco mais complicado ao leitor.
Filgueiras Quintão explica que essa linguagem burocrática tem relação com a chamada “tecnocratização do jornalista”. Ao examinar as atividades de profissionais do jornalismo nos anos 1970, ele observa que “os jornalistas são [...] atraídos para os cursos de treinamento e informação” que são “promovidos pelas instituições econômicas e financeiras”. “Esse pessoal, altamente especializado no exterior ou na atividade econômica, opera com discurso ritualizado nas teorias e práticas e análise da Economia, que se expressa numa linguagem eivada de categorias ou conceitos econômicos, palavras estrangeiras, neologismos, jargões, siglas e índices [...]”, diz (p.101).
Na obra “O Conhecimento do Jornalismo”, o jornalista Eduardo Meditsch diz que “bons cientistas não são bons jornalistas”. Da mesma forma, bons técnicos e conhecedores de jargões econômicos não são, necessariamente, bons jornalistas. Na verdade, muitas vezes é o oposto.
“A especialização que se faz necessária é aquela em torno do objeto Jornalismo, sem perder de vista sua relação dialética com os processos humanos mais amplos, mas igualmente sem se perder neles”, diz Meditsch (p. 88). O uso do termo matemático “mediana”, de forma supérflua e/ou sem esclarecer adequadamente o leitor, expressa um desvio desse foco no “objeto Jornalismo”. Trata-se de uma abordagem puramente técnica e não-jornalística dentro de um texto jornalístico.
O aspecto “quase-socioleto” da linguagem presente na imprensa econômica será superado quando aquele imperativo mais básico do jornalismo for prioridade: pensar, antes de tudo, no leitor. Como diz o jornalista Alexandre Calais: “é preciso traduzir, explicar, fazer-se entender, atingir todos os leitores. Sem distinção”.