TRAGAM JÁ A MINHA LITEIRA!

Crítica à certos hábitos sociais que disfarçam ou incentivam a escravidão moderna

Monólogos de uma “alma sebosa”!

*Por Antônio F. Bispo

-Alô? É do serviço de entrega? Ok, quero duas pizzas tamanho G com 4 sabores diferentes. Quero também uma porção de mariscos frescos e duas garrafas de água mineral da marca tal. Quanto tempo? Quarenta minutos? Ah, certo. Estou enviando o Pix. Avaliarei seus serviços assim que a entrega for efetuada. Mesmo endereço, oK? Boa Noite!

...

Desligo o telefone e já começo a pensar em todas as grosserias que direi e humilhações perniciosas que farei ao motoboy.

Ainda que eu tenha todo o tempo do mundo, que não esteja fazendo nada de importante antes ou depois da entrega, exigirei rapidez só para sentir-me no controle da situação. Minha pequenez de espírito me obriga ser assim.

Na verdade prefiro isso. É um dos poucos meios que os medíocres encontram de sentir-se um deus. Estou neste patamar e certas relações nos permitem extravasar esse lado ruim sem sermos notados.

Em um simples delivery como este por exemplo, gosto de pôr em maus lençóis aqueles (que por vezes pobres e coitados), costuram o trânsito, tomam chuvas, cortam caminhos por vielas perigosas e põem em risco suas próprias vidas só para atender as urgências do meu querer.

Eles o fazem não apenas para ganhar o próprio sustento, mas acima de tudo para ter uma estrelinha, uma avaliação positiva em sua ficha pessoal do aplicativo, medalhas estas, dadas por clientes como eu. Não lhes sairá barato essa recompensa.

Por mais que eles façam, ainda direi que não foi bom o bastante apenas para vê-los sucumbir e mentalmente implorar por misericórdia de minha parte.

Eles já me conhecem!

Não é a primeira e nem será a última vez que os avacalho.

Gosto de ver a tensão nos olhos deles, o medo no tom de sua voz e a obediência servil quando me trazem o que pedi. Temem uma avaliação ruim. Até o sorriso é forçado. Tudo isso para parecer forte e gentil, mesmo por estando arrasados por dentro pelo labor diário.

Em sua própria concepção eles precisam daquelas notificações tanto quanto algumas criancinhas do maternal esperam receber do professor a estrelinha do bom comportamento para que seus pais os amem ainda mais.

O sistema os cega. Um algoritmo os controlam e eles nem percebem.

O dever os chamam. Por vezes a necessidade fala mais alto e tudo passa à ser suportável, mesmo quando não deveria. O medo da fome ou do despejo são os principais motivos de sua subserviência aos clientes e abusos dos fornecedores indelicados.

Tiro proveito disso. Não sinto culpa alguma.

Pessoas como eu podem mudar para o bem ou para o mal a vida, as finanças ou o pelo humor de um simples entregador como este.

Claro que irei dificultar as coisas! Por que não?

A sociedade me permite isso.

Mesmo em tempos modernos, posso ser maligno e ainda smo assim ser visto como uma pessoa do bem, uma pessoa de Deus ou coisa do tipo. É só saber disfarçar.

Por trás da telinha ninguém sabe quem realmente sou quais são as minhas intenções ou perversões, a menos que eu mesmo me revele ou seja exposto de modo furtivo.

Ainda quem saibam...ah, tanto faz! Depois de qualquer ato de luxuria, violência, desamor ou barbárie, basta postar nas redes socias uma imagem qualquer seguida de algum versículo bíblicos e tudo se resolve.

Cara de pau não passa vexame nunca, a menos que queira.

Amo esse estilo de vida.

Tenho boa saúde, dois braços, duas pernas, uma mente sã e tudo que muita gente gostaria de ter para ser feliz. Apesar disso não sou! Por isso, um pouco de prazer que consigo na vida é justamente infernizando os que julgo ser menos favorecidos que eu. Jamais faria isso com gente à minha altura ou acima de mim. Não sou besta!

Minha geladeira e despensa tem comida o suficiente para um mês inteiro se preciso for.

Eu poderia cozinhar para mim e minha família, porém sempre crio uma desculpa para não fazê-lo.

Entre o prazer cozinhar e a “liberdade de ofender alguém”, fico com a segunda opção.

Ainda que a entrega esteja do jeito que pedi e no prazo que esperava, farei de tudo para constranger o serviçal. Essa é a melhor parte da “novela”. Posso até exigir aquilo que não está no acordo, somente para encher o saco e ter do que reclamar.

Sei que as minhas exigências não ficam prontas em menos de 30 minutos. Sei também que outros 30 minutos serão necessário para que se chegue ao meu endereço. Sei ainda que imprevistos podem acontecer durante o percurso...mesmo assim, forço o atendente a concordar com um tempo menor, digo que tenho pressa e ainda aponto o pior caminho para ser chegar ao destino só pra ver a pressão subir.

Do que anotou o pedido, o que preparou a receita, o que embrulhou o pacote e o despachou, até o coitado do porteiro do meu prédio que nada tem a ver e mesmo assim me avisa da entrega...é apreensão geral!

Isso me excita tanto! Sou maligno mesmo. E dai?

Enquanto espero a encomenda, pego na estante um livro e folheio algumas páginas.

Vejo numa foto antiga alguns pobres ou escravizados conduzindo os seus senhores numa LITEIRA.

É uma carroça de luxo conduzida por duas ou mais pessoas, cujo figura suspensa em condução deve tratar-se de algum fidalgo da sociedade imperial.

Por um instante penso ser aquele burguês!

A pessoa ali sentada, mesmo tendo duas penas ou saúde o bastante para movimentar-se por si mesma, prefere ser levada nos ombros dos outros.

Ela o faz não apenas para não sujar-se ou ficar suada nas ruas empoeirada da grande colônia.

Acimda de tudo ele o quer, por que ali na LITEIRA, erguida por mãos e braços que não sejam os seus, ela torna-se uma pessoa de destaque entre as demais.

Naquele assento e naquela posição, não há como não ser vista por todos.

Os transeuntes, os comerciantes, as pessoas notórias e até mesmo outros burgueses que do varanda de seus aposentos põe-se a admirar, também se porão a falar de sua magnitude (ainda que sua única “virtude” seja a de ser “rica”).

Á frente e ao fundo desta carruagem humana, geralmente está um ou alguns serviçais. Geralmente negros.

Olho pra figura. Aponto o dedo e digo comigo mesmo:

-Que abuso, que gente folgada! Não poderiam eles mesmos descerem e ir a pé...?

Quando digo isto, lá no fundo minha própria consciência retruca:

-Este justamente o seu autorretrato! O modo exato como você e outros membros da sociedade moderna tratam seu compatriotas. Alguns dentre vós só não pedem comida na própria boca por que receiam a discriminação. Pior ainda: enquanto no passado o ricos, realmente ricos oprimiam os pobres, hoje são vocês, os pobres que se oprimem e se exploram uns aos outros sem piedade alguma, tudo em nome de uma pressa estúpida e mau uso dos meios de comunicação e transportes.

Ao ouvir isto, afasto-me do livro.

Ahhh...saí pra lá! Minha consciência querendo me corrigir! Quem já se viu? Se meus genitores não foram capazes, se meus professores também não, logo esta vem tentar me alertar? Não vai mesmo!

Bem que me disseram que essa coisa de buscar conhecimento pode confrontar aquilo que realmente somos. Não quero entrar choque comigo mesmo! Não estou disposto a mudar uma vírgula se quer para o bem ou paz dos demais. Este é o único alento que tenho. Minha vida seria um tédio sem essa diversão.

Sou apenas um assalariado e moro numa casa normal ou num apartamento. Não resido em um palácio como os figurões dos livros. Não sou donos dos meios de produção e nem possuidor de um grande capital.

Também vendo meus serviços para ganhar a vida.

O que há de errado em ferir alguém tão sofredor quanto eu?

Será que nem nisso posso ter um pouco de prazer?

Ganho tão pouco quanto a pessoa que me serve todos os dias, mas por trás de uma telinha de cristão líquido ou por meio de um sinal de telefone, me sinto um rei impiedoso controlando diversos súditos.

Penso ser um deus, um ser digno de toda veneração e respeito, por pelo menos 2 horas.

Meu curto reinado dura somente entre o horário em que o pedido fora feito até o momento que avalio com o peso do meus dedos, a empresa, o atendente, o cozinheiro, o entregador...

Ahhhh...que delícia...

Praticamente, em instantes assim estes tenho o mesmo poder daquela madame que mora numa cobertura chique. Tenho vontade de gritar:

-TRAGAM JÁ A MINHA LITEIRA! Quero ser visto e admirado por todos. Que os serviçais me carreguem e reclamem do meu peso em seus ombros!

Entre mim uma celebridade milionária em instantes assim não há nenhuma diferença. É o que penso.

Tenho o poder em minhas mãos.

Posso ser cruel e insano e ninguém notará, a menos que alguém nos grave e exponha nas redes sociais a minha altivez.

Se o fizer, posso fingir demência ou dizer que estava sob efeito de drogas, álcool ou algum remédios tarja preta que nunca tomei.

Por outro lado, terá sempre um profissional da lei pronto a me ensinar como sair pela tangente, para que o lixo que há em mim possa permanecer causando aflição aos outros.

Sei que em certos casos, profissionais assim não são nossos amigos ou inimigos. Não estão contra ou à favor de quem quer que seja. Estão apenas vendendo seus serviços como qualquer um outro profissional o faz.

Também não quero a simpatia deles ou de mais ninguém, até por que, quando eles me defendem em meus devaneios propositais, me sinto ainda mais poderoso e honrado, por quê posso pagá-los, não por quê se preocupam comigo. De certa forma, eles estarão igualmente ao meu dispor.

Minha alma sebosa exprime do fundo do meu ser:

-Alguns serviçais são diplomados e outros não!

Outro modo furtivo de me esquivar do que faço é sendo parte de um grupo religioso.

Esse nunca falha! É gratuito e em certos casos mais eficaz que a contratação de um profissional da lei.

Basta que eu diga que no meu momento de fúria o diabo me cegou ou usou o “misero entregador” para me agredir ou gravar em meu momento de fragilidade!

Sempre terceirizando a culpa.

O “povo de deus” vive disso ou para isso.

Sempre funciona, principalmente se minhas doações estiverem em dia com o chefe da igreja.

Nesse caso, além de me safar, todos irão apiedar-se e orar por mim, para que deus me abençoe e me guarde sempre.

Nutrirão uma simpatia ainda maior por minha pessoa se eu fizer caras e bocas e chorando contar que estou sendo vítima de magia negra ou de um grande plano diabólico. Ofendido logo vira o ofensor e pela “clac santa” será perseguido.

É batata! Há centenas de exemplos cotidianos assim.

Minha alma sebosa regozija-se com esta hipótese grita outra vez:

-Tragam já minha liteira!

Como eu gosto disso...para ser hipócrita nem preciso ser rico! Basta ser “esperto” e fazer como muitos “ricos ou santos” fazem.

Deus entende a todos nós e do alto de sua complacência nada faz.

A balança da justiça comumente penderá para o lado de quem pode pagar mais ou mente melhor para se defender!

Que vida mágica!

Mesmo sendo um b8sta, serei aplaudido por outros m8erdas iguais a mim, que são como sou, compactuam com o meu modo de ser ou agir ou que foram iludidos pelo meu fingimento, quando estou encurralado pelas circunstancias que eu mesmo provoquei.

Quando meu ego pediu outra vez por sua liteira, ouvir uma voz estranha e diferente dizer:

-Cuidado! A diferença entre uma liteira, uma maca e um caixão se difere apenas pela posição do corpo! Em todos os casos será necessário duas ou mais pessoas para transportar o indivíduo. Uma o leva ao seu culto pessoal. Outra o levará à um hospital público ou particular e esta última ao descanso eterno desse corpo que a tudo consumia a tantos atacava. Neste mesmo local, reúne-se todos os outros que um dia também foram tomados pela arrogância, prepotência e descuido. Neste mesmo recinto jazerá os corpos dos inocentes e molestados pelos que se achavam grande. Um serviçal, um coveiro pouco letrado (ou não) vigiará à todos. Neste recinto, toda pressa ou preguiça se acabará e toda “grandeza” de alguém caberá num epitáfio de poucas palavras!

...

Revejam Seus Conceitos!

Saúde e Sanidade à Todos!

Texto escrito em 20/5/23.

*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.

Ferreira Bispo
Enviado por Ferreira Bispo em 20/05/2023
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