Hegel e as sombras - breve ensaio
Hegel, numa de suas definições sobre a Arte, diz "o reino da arte é o reino das sombras do belo". Mas o quer dizer "o reino das sombras" quando, acostumamos a identificar as sombras como algo a se temer, a se evitar, pois, ao estar nas sombras, não se sabe o que é. Assim, estar nas sombras, indica algo que se ignora e, por isso, não se sabe o que significa, nem o que traz. É mistério. É não conhecido; combater o desconhecido é igual a se aventurar a saltar de uma montanha na certeza que ao seu pé exista um lago, porém, sem saber se de fato ele existe. É jogar -se no vácuo do espaço, apenas porque se acredita que ao fim exista algum aparato de proteção. Estar nas sombras também desperta a curiosidade do que seria estar à mostra. Estar às sombras não significa que o advém de sua exibição pode ser mais tenebroso do que estar às escondidas? Não, é claro que não. Nada é mais tenebroso, mais suspeito, mais inconcebível do que estar às sombras. Às sombras é o oculto. Às sombras é a impossibilidade de defesa, do conhecimento. Às sombras é a surpresa do assalto ao dobrar a esquina. É o soco no escuro, tão logo se adentre no quarto ocupado por forças clandestinas a serviço do Estado espião. No mito das cavernas, às sombras (a ignorância) impedem que se chegue à luz, ao conhecimento. No tempo da inquisição, às sombras significava que o poder, de condenação e morte, cabia à igreja. Ditaduras agem às sombras contra opositores, às sombras grupos se articulam para propagarem mentiras e promoverem o caos, contra governos eleitos. Às sombras é tudo que denota mistério, escondido, dissimulado. É o imponderável, o inaudito, o inesperado. Às sombras é a possibilidade do ataque sem anúncio, é a truculência que se mostra contra grupos vulneráveis, em nome dos bons costumes, em nome da lei e da ordem, e tudo se justifica. Às sombras é o monstro do lago no inconsciente, é o impulso descontrolado. É o pavio aceso ao lado do estopim, do tanque de gasolina, da lenha na fogueira.
Mas... o que Hegel quer dizer ao afirmar que "o reino da arte é o reino das sombras do belo"?
A arte é, segundo Hegel, voltada ao espírito. Por ser predominantemente destinada ao sensível, isto é, destinada ao sentido que a arte pode provocar, dizer que ela é o reino das sombras do belo, é dizer, em contraponto ao natural, ao produzido pela natureza, que ao contrário deste, a arte se perpetua no espírito. É assim, porque estando o natural sujeito às intempéries do tempo, por isso mesmo, não se mantém; ao contrário. A finitude do natural, ou seja, uma planta, um animal, são perecíveis, se deterioram e desaparecem. A arte, aqui o exemplo é a pintura, se cristaliza no quadro ou na tela. É claro que nunca será igual ou superior ao natural, são manifestações que se diferenciam já no próprio ato que se manifestam. A pintura, por exemplo, mesmo de uma paisagem, não é a paisagem. É a representação idealizada de uma parte, no caso, somente o que o artista quis mostrar. Assim, não será exagero dizer que a forma com que o a arte assim se expressa, tem por destino a vista e que, portanto, é apenas uma aparência do que o artista mostra. Daí, se dizer, que uma pintura, por mais fiel ao objeto retrato, nunca será o objeto; será, tão somente, um simulacro, um recorte idealizado do objeto retratado. Isso se complica ainda mais se se debruçarmos sobre a música. A música, outra forma de manifestação da arte, se destina ao ouvido. É pela escuta harmoniosa dos sons que ela se torna agradável e se torna fonte se sensações que se despertaram no espírito. Noutras palavras, a arte da música está noutro campo dos nossos sentidos, porém, assim como a pintura que desperta em nosso espírito sensações iniciadas na visão (ou no tato como auxiliar da visão), é possível dizer que a arte tem por objeto e objetivo nos fazer, humanos que somos, seres diferentes de outros animais, exatamente, porque produzimos arte como um mecanismo de superação de nossa vida condenada ao existir sem considerar, e impulsionar, nossa capacidade de inventar e reinventar outras possibilidades de vivências.
Então, e por fim, o que Hegel quer dizer ao afirmar que "o reino da arte é o reino das sombras do belo"?
Penso que, ao dizer que a arte é o reino da sombras do belo, quer nos ensinar que a arte nunca atingirá o Belo como algo absoluto, irretocável. Penso que, quer dizer que da impossibilidade de se chegar ao Belo, o que dele temos consciência são apenas sombras, ou seja, o Belo, impossível de se mostrar em sua plenitude, se apresenta por sombras, como janelas abertas que permitem a entrada de sutis, quase imperceptíveis raios de sol. Por se encontrar envolto por sombras, atingir o Belo será, tão somente, a busca, que jamais se alcançará, só possível pela arte. Que, uma vez ciente dessa impossibilidade, cabe à arte o trabalho de provocar, no espírito, centelhas de contentamento que fazem do espírito repositório de sensações e sentimentos humanos. No mais, resta-nos, em apoio ao que a arte pode suscitar de belo, a contemplação e saciamento do espírito com o que dele advém. Nesse sentido, as sombras, ao contrário do que acostumamos a entender o que elas significam, adquirem outro sentido, bem mais agradável.