::: OS DEVANEIOS DO PENSAMENTO LIVRE :::
“Dê-me uma regra e tu roubarás minha alma presa. Mas, dê-me uma razão e eu lhe darei a minha alma livre” (Ygor Ditão, in Diálogos no rio).
Não, não é no cume parlamentar e nas canetas Mont Blanc que a liberdade de expressão morre. Não direi mais sobre as demais liberdades porque todas elas só existem enquanto existir a primeira, então, é indubitável que a liberdade de expressão não morre em uma decisão sofística da Suprema Corte ou invenções delirantes de parlamentares pouco preocupados com o mundo real do homem que tem fome e persiste com fome porque precisa deixar de comer para que seu filho o faça. A liberdade de expressão não morre nas mãos poderosas das oligarquias quixotescas embebidas em sua demagogia circense que se sustenta apenas sob o pálio sanguinolento da violência e da desumanização do ser enquanto ser, convertendo-o, doravante, em estar.
Como a música que não desaparece porque o pianista perde sua mão, assim é a liberdade de expressão: a música que existe na alma humana que atravessa a existência com seus tempos e contratempos e convive tranquilamente com bons e maus músicos, porque apenas o ruído e o barulho incauto iluminam o caminho da liberdade de expressão. Apenas no espaço em que o intento frustrante do músico relapso, indisciplinado e inconstante se manifesta é possível eclodir sinfonias maravilhosas de compositores como Bach, Chopin e Tchaikovski. Ou seria demais imaginar que se os erros desastrosos não fossem livres existiria alguma obra colossal? Talvez sim, afinal, os gênios são incomparáveis. Mas e os bons músicos? Não os gênios ou brilhantes, mas aqueles que emergem no frio aço do treino diário, sepultamento imediato?
A música precisa conviver com os ensurdecedores ruídos das construções, das buzinas dos carros, dos palavrões violentamente bradados por dois imbecis disputando quem tem menos razão, do pai descontrolado em face da esposa ou do filho, do aluno no fundo da sala que reclama hipocritamente do sistema de educação... o ruído, esse ser inóspito e constante, mas irregular, precisa reverberar seus golpes brutais de incoerência para que nossos ouvidos destreinados e tolos entendam no dedilhar contraditório, mas harmônico, de duas teclas - uma grave e outra aguda - que a presença permanente da diferença é possível e se realiza apenas na diferença que torna sincrônico a orquestra caótica da alteridade, fazendo-nos deleitar no piano, no violino, na flauta e nos movimentos que não entendemos do maestro a sincronia fantástica do infinito das notas que se diluem no espaço.
Gosto de lembrar de dois textos maravilhosos de Norberto Bobbio. É-me impossível parafraseá-lo perfeitamente de memória - como nasce este ensaio sem qualquer retorno ou correção -, mas é possível guardar a essência desses dois textos que aparecem, agora, nesses momentos de escura solidão, como as duas notas grave e aguda tocadas ao mesmo tempo pelo Maestro, desta vez: Norberto Bobbio. Salvo engano, no livro "Política e Cultura", advertia-me: é preciso ter coragem de ser cinza! De ser cinza onde tudo é preto ou branco! Porque um mundo preto e branco está morto por já está divido entre os espólios daqueles mesmos tolos citados acima de disputarem no grito quem tem menos razão. Noutro belíssimo trabalho, novamente sob o risco de errar o nome da obra, "Elogio da Serenidade", Bobbio arremata: não se vence o veneno, apenas se converte em vacina se souber utiliza-lo na dose exata: acima da quantidade necessária, torna-se o mesmo veneno; abaixo, serve-nos de nada. Dizia-me, assim, que pode até parecer conveniente reprimir juridicamente a intolerância (parece icônico que é nas velhas Torres de Marfim dos juristas que nascem as teorias mais inconcebíveis), no entanto, é politicamente ignóbil enfrentar intolerância com intolerância, afinal, concluía o maestro: poderia no reino da intolerância multilateral emergir tolerância? Ex nihilo nihil fit.
Dessa forma, torna-me inequívoco: não é no parlamento, nas mãos do presidente ou de um chefe da Suprema Corte com as manias sempre pernósticas do poder (como tive a oportunidade de refutar noutro estudo sobre o culto pueril feito à decisão da Suprema Corte dos EUA contra o separatismo racial, do qual, ela mesma, a Suprema Corte fora cúmplice quase um século antes) que morre a liberdade de expressão. Ela morre na sala em que leciono quando suscitado o debate sobre as intensas divergências políticas que permeiam o tecido social, vê-se a truculência e a violência gratuita e infantil eclodir ou, ainda nessa mesma sala, três mulheres trocarem socos violentos sob a égide de uma violência senil fruto da perda constante da capacidade de utilizar a palavra falada. Ah, liberdade! Tu morreste! Faz tempo demais até! Eu que vivo sob seus espólios, ouço, neste momento, as sonatas lúdicas de um piano escondendo-me diariamente de falar o que penso, o que sinto e até o que vejo porque, ao final e ao cabo, os exércitos atrozes dos intolerantes determinarão, até mesmo, o que vi!
Condene-me de covarde, mas perdoe-me! Faço por amor inaudito aos meus filhos e esposa, que em terra de escravos deixarão de ter o que comer, teto e verão seu pai e esposo preso e perseguido por não concordar com as mentiras constantes vivificadas de maneira leviana entre nós e, assim, resta-me cultua-la, Oh! Liberdade! nos recônditos indômitos do meu coração e do meu lar: local em que vive em paz com minha esposa católica e eu presbiteriano; minha esposa corintiana e eu palmeirense; minha esposa apaixonada por samba e pagode e eu por música erudita e rock. Sei que participei de seu enterro, Liberdade! Todavia, como os romanos cultuando seu ancestral doméstico, meu lar deixa aquela vela acesa no canto com a esperança que um dia ela se converta no incêndio mais lindo do mundo: como a sarça ardente que queima sem queimar e jamais se apaga.
Enquanto isso ela segue morta nas redes sociais em que ninguém é capaz de enfrentar o argumento do outro, mas, diariamente, a trabalhar constantemente para ofender gratuita e deliberadamente quem pensa diferente no culto acéfalos de homens no poder que são tão falhos, mentirosos e incautos quanto seus eleitores. Segue sepultada nos dedos e línguas incapazes de lidar com alteridade e impedir, assim, o nascimento de vias alternativas no espaço bipolar das esquizofrenias suicidarias de uma sociedade autofágica. Eu vivo no mundo real: em um mundo cujo único prazer e intento da massa é consumir até esvair-se. Uma sociedade que precisa segundo após segundo publicar absolutamente tudo que faz nas redes sociais porque perdeu a capacidade da palavra falada e escrita e não consegue exprimir o denso vazio que perambula dentro do próprio peito. Uma sociedade permeada por literatura efêmera de autoajuda que serve apenas para enganar a si mesmo, reverberando nas teias de uma internet castrada o monólogo da imensidão: onde todas falam e ninguém escuta! O Cristão que ignora o ditame da modéstia e da humildade e publica diariamente sua alegada santidade; o aluno que publica diariamente seus estudos, mas persegue os meandros da cola, do plágio e da repetição sem pensamento; o professor que, ironicamente, diz na sala dos professores que "filosofia é coisa de maluco", mas, em seguida, reclama que seus alunos estão cada vez mais fracos e rasos intelectualmente; o retórico da fraternidade e da caridade que nunca deu um centavo ou, quando o deu, necessitou fazer isso em um vídeo disponibilizado no youtube, instagram e facebook; uma ONG apaixonada por direitos dos animais ignorando as crianças morrendo de fome embaixo de uma ponte; os pais infantis que destroem seus filhos no império do egoísmo que chamaram de casamento; os profissionais que publicam seus vídeos diários (médicos, advogados, jornalistas, fisioterapeutas etc.) com a postura hermética de ensinar a todos, mas procuram e querem apenas vender-se à todos com o sonho incansável de adquirir mais consumidores/clientes; leitores que preferem livros de assassinos ou serial killers do que Shakespeare, Kafka ou Machado de Assis; os incansáveis narcisistas que prestigiam casamentos e aniversários, mas todas as fotos e vídeos têm apenas a si mesmos em seus vestidos e ternos de gala, apesar de publicarem elogiando outrem; os cursos sem fim de como ficar rico em semanas e, claro, a minha descrição favorita dos dias atuais feita do Benjamin Barber: homens viciados em Viagra e mulheres em silicone e botox... As atrocidades não têm fim!
Parece irônico que eu, deficiente auditivo, seja tão apaixonado por ouvir. No entanto, os demais gozando da plena saúde de seus tímpanos seguem ignorando até a própria voz, porque apenas a surdez absoluta faz entender as intensas contradições dos discursos autofágicos dos hipócritas cultores de déspotas e ídolos que incendeiam uma nova Guerra Santa substituindo Maomé, Jesus e Moisés por chefes de partidos políticos que mentem, roubam e destroem na mesma medida, mas para esses idólatras acéfalos apenas seu ídolo de estimação é irretocável apesar da repetida contradição de seus salvadores iluminados cometerem as mesmas (e talvez piores) atrocidades que seu opositores. E, por isso, não suportando o indômito peso da sua própria contradição, que desnuda o pequeno tirano que existe dentro de si, faz reinar nos lábios o pútrido fel da intolerância. Intolerância que sufoca a liberdade diariamente sob o gládio demagógico de violação dos direitos e proteção dos desvalidos, esses mesmos desvalidos que se mostram ingênuos e frágeis, mas se aglutinam em uma quadrilha inexorável de violência para matar, sufocar, agredir e destruir tudo e todos que pensam de forma diferentes a si mesmo procurando, no final, aniquilar o cinza intermediário que coloca em xeque a existência do Preto e do Branco, pois já nos fazia indubtiável George Orwell em 1984 que o Preto e o Branco não têm o interesse de aniquilar o outro, mas apenas fingir essa disputa no velho teatro da intolerância. Esses mesmos frágeis e protegidos contra as fake news se aglutinam nos estádios de futebol, nos shows e nas liquidações e nesses espaços que, apesar de sua beleza, não representam a completude do mundo, vê-se emergir a corja alucinante e incompreensível de protestos pelo desempenho de um time de futebol (que por mais apaixonado que seja é tão útil quanto o desenvolvimento do desenho da Turma da Mônica que minha filha assiste) com socorro, até mesmo, à violência, ameaça e perseguições; vê-se emergir uma corja alucinada pelo celular novo de cada dia agarrar-se nas televisões atrás de mais um Xerife do Consumidor para conseguir sempre e o mais rápido possível um novo produto de consumo que amanhã será lixo no mar ou, ainda, filas colossais que duram semanas para assistir um espetáculo de música ruim e desagradável similar ao que meu filho faz quando brinca aleatoriamente no piano de brinquedo dele que tem no seu quarto.
São 10:26 da manhã e já estou escrevendo este ensaio por tempo demais... As cenas são infinitas e a epopeia contra a liberdade não cessa. Exemplos não faltam, alguns inclusive indizíveis. Todavia, fica em mim apenas uma dimensão de cunho um pouco mais filosófica: a grande e mais mágica característica do ser humano (ontológica, deontológica e epistemologicamente) é sua capacidade de pensar e fazer-se perceber seu pensamento pelo manuseio da palavra falada ou escrita. Uma capacidade que tenho uma admiração incontável e um prazer indescritível de, ao final do dia, sentar-me na minha varanda ou no final de ano sentar-me na areia e tentar compreender as convulsões incalculáveis do mundo em meus sentidos, sensações e experiências. Ficam ali, na areia, perguntas como o sentido da vida, a natureza do amor, o destino do ser e o bom viver entre os homens. Imagino-me, nessa quarta-feira, sob as roupas conspurcadas de um intolerante: pode o convencimento do erro ser imposto? A pena de prisão, a perda dos bens ou até a pena de morte converterá esse ser em um paladino da tolerância? Imagino-me, ali, sentado sob o sangue vicejante do ódio que tantos carregam nos braços (apesar de lábios sofistas que invocam o benfazejo amor), seria possível, então, que mais ódio converter-me-ia em um ser angelical como a iluminação repentina de Saulo, O Perseguidor em Paulo, O Apóstolo? Tudo parece me provar absolutamente o contrário (inclusive historicamente quando o diabólico III Reich utilizou-se das mesmas ferramentas de controle para perpetuar seu poder e, antes, para justificar teorias conspiratórias e transformá-los em mártires), pois, ao final e ao cabo, não consigo imaginar como a violência estatal poderá mudar aquilo que é mais intrínseco ao Homem: seu pensamento sem que, para tanto, precise destruí-lo por completo a ponto de finalmente desumanizá-lo.
Parece inequívoca a razão do meu orientador que "Hay que hablar con libertad" (Victor Gabriel Rodríguez).
Gostaria que todos fossem bons músicos e, assim, nossa sociedade convivesse melhor e mais organizadamente. No entanto, diariamente convivo com músicas ruins, músicos despreparados e falta de harmonia. Mas enquanto o homem não quiser aprender a tocar o instrumento mais brilhante que a natureza lhe deu nada poderá transformá-lo em um músico de talento. Assim, Liberdade, digo-lhe nesse seu cotejo fúnebre que esse texto duro, ruim e frágil, é a única que posso fazer em seu favor, para não me tornar idêntico aos párias que critico, pois a intolerância deles não será respondida com intolerância e, assim, apesar as violentas chamas dos déspotas, já me diria Heidegger que entre o ser e o ente fica aqui minha pergunta: pode o coração humano ser domado como a boca de um cavalo?
"O coração humano é um velho espião" (Victor Hugo)
São Paulo 03 de maio de 2023.
Prof. Me. Ygor Pierry Piemonte Ditão