O MISTÉRIO DA CRIAÇÃO

 

 

A Cabala e o Taoísmo

 

Deus- a Existência Negativa, o polo negativo da Energia dos Princípios – não criou o universo propriamente dito. Ele manifestou a Existência Positiva dele para servir de polo para que a sua Potência pudesse ser transmitida. O seu Desejo de Compartilhar precisava de um Desejo de Receber. Essa é a ideia que a Cabala nos transmite para justificar a criação do universo físico por um ato de Vontade de Deus.  Essa também foi a intuição de Lao Tsé, o filósofo fundador do chamado taoísmo, religião que a antiga China disseminou pelo mundo, e que é expressa por uma combinação entre duas forças opostas, (yin e yang), que em suas atuações, produzem o universo físico. Por isso, ao falar do Tao, a energia que Lao Tsé entendia estar na origem de todas as coisas ele diz: ‘Existe algo obscuro, mas completo antes da existência do céu e da terra; tranquilo e calmo, que existe sozinho sem alteração, movendo-se sem correr riscos. Poderia ser a mãe de tudo. Não sei o seu Nome e chamo-o Tao.”[1]

Segundo a ótica cabalista o recipiente para receber a Luz – o vazio cósmico- foi o único ato criador do Eterno Deus. Todo o resto foi produzido pelo Desejo do recipiente de recebê-la, conceito que pode ser entendido como a polaridade negativa necessária para que a Potência Divina pudesse ser manifestada.

Esse é o entendimento que a Cabala nos passa a respeito do ato criador e o pensamento taoísta não difere dessa informação. “O Tao possui realidade e clareza, mas nenhuma ação ou forma. Pode ser transmitido, mas não criado. Pode ser atingido, mas não visto. Existe por si e através de si. Existia antes do céu e da terra, na verdade, por toda a eternidade. Ele é a razão da divindade dos deuses e da criação do mundo. Está acima do zênite, mas não lhe é superior. Está abaixo do nadir, mas não lhe é inferior. Embora mais velho que o mais idoso, não é velho[2]

 

Lao Tse, como Shimon Ben Yochai, o codificador da Cabala, ao tratar da Criação, se referem a ela, não como ato criador em si, mas como um desejo manifesto do Criador. “O Santo Nome”, diz Ben Yochai, “encerra um grande segredo: quando o Mistério dos Mistérios quis manifestar-Se, Ele criou um Ponto, que era o Pensamento Divino. Neste Ele delineou todo tipo de imagens e gravou todo tipo de figuras. Então Ele também gravou a Lâmpada, que é o mais santo de todos os mistérios, a mais profunda emanação do Pensamento Divino. Esse foi o princípio do edifício que existiu antes de qualquer outra coisa existir e que é conhecido como parte do nome MI (Quem? que significa: Ele nunca será conhecido de fato).[3]

 

            O Mistério da Criação

Esse, portanto, é o grande mistério da Criação, descrito nos primeiros versículos do Gênesis: Um Desejo do Criador em compartilhar a sua Potência. E para isso concentrou-se em um ponto luminoso de extrema densidade energética. Esse ato aconteceu antes do Big Bang. Foi o processo que a Cabala chama de TsimTsum (em hebraico צמצום), expressão que o cabalista Isaac Lúria criou para explicar o processo de criação do universo. TsimTsum significa a contração da Luz Infinita de Deus em um espaço vazio chamado halal  ( חלל) formando um Ponto Único, a partir do qual todas as coisas foram geradas.

        O Zhoar se refere a esse fenômeno da seguinte forma: “Mas quando Deus quis ser conhecido de maneira mais plena,  Ele pôs uma vestimenta preciosa e criou ELEH (que significa toda a criação). E esses dois juntos fazem o nome ELOHIM, que significa o Sagrado Ponto Embaixo. (...). O Sagrado Ponto projeta uma luz em quatro direções e ninguém pode suportar o seu brilho. Só os raios que emanam dele podem ser contemplados. Mas como todas as coisas criadas estão plenas de um profundo desejo de se aproximar dos raios que emanam do Sagrado Ponto, formou-se em seu polo extremo outro ponto de luz, conhecido como O Sagrado Ponto Embaixo: ELOHIM. No entanto, ELHOIM é composto da mesma luz que o Sagrado Ponto em Cima, o qual é Ein Soph...” [4]

                                                                   

Portanto, Deus criou o espaço cósmico para que ele fosse o recipiendário da sua Luz Infinita. Porém, como ensina o rabino Berg, o recipiendário recebeu a Luz, mas não tinha com quem compartilhá-la. Sem compartilhamento, o recipiendário não podia transmiti-la. Ele, que era efeito, queria tornar-se causa também. Pois só sendo capaz de transmitir a Luz recebida ele seria capaz de criar, ou seja, cumprir o papel para o qual fora manifestado.[5]

 

A Luz foi feita, a Luz seja dada ao neófito

 

Essa é a expressão usada pela Maçonaria ao recepcionar um novo Irmão. No caso da Criação, o neófito é o próprio universo. Ele só nasceu quando a Luz lhe foi dada. Isso é o que diz a locução bíblica.

A Luz Infinita de Deus (Ein Soph) é o veículo criador. Se ela não puder ser transmitida não há Criação. Esse foi o grande problema encontrado pelo recipiendário (o vazio cósmico), para cumprir o papel para o qual foi manifestado. Ele não tinha a quem transmiti-la. Daí a razão pela qual o Ente Supremo colocou sobre o recipiente as dez cortinas que a Cabala chama de Árvore Sefirótica.

As Sefirot agiram como se fossem “cortinas” que obstruíram a Luz Infinita do Criador (Ein Soph) e a fizeram recuar para um ponto ínfimo dentro do vazio cósmico. Esse “ponto único” é o que os antigos astrônomos egípcios e caldeus chamavam de “ovo cósmico” e a moderna ciência chama de Singularidade. A Cabala a chama de Kheter, a Coroa da Criação.

Foi esse “ponto único”, ou Singularidade, que explodiu dando origem ao fenômeno que os cientistas hoje chamam de Big Bang. Por isso a Cabala ensina que Deus “não deve ser comparado ao homem, que vem do pó e está destinado à morte. Ele está acima de todas as criaturas e é maior que todos os seus atributos. Nem atributo, nem imagem, nem corpo; assemelha-se mais às águas, sem forma e sem limites. Entretanto, quando as águas estão espalhadas na terra somos capazes de concebê-las e falar sob variadas formas; primeiro, há a fonte, depois o rio que brota dela e espalha suas águas sobre a terra; depois a bacia, para a qual fluem as águas, formando o mar. Então (forma-se) o mar, de onde as águas correm em sete canais, fazendo dez formas no total. Mas se rompessem essas formas, as águas escapariam e retornariam à sua fonte original, enquanto as formas em que estavam contidas cairiam em ruínas. Dessa maneira foram criadas as dez sefirot.”[6]      

                                                             

A metáfora de Adão e Eva

 

Mas depois de ter manifestado os céus e a terra, pela explosão luminosa do Big Bang, como dizem os cientistas, ou pela ação de Deus tirando a Luz das trevas, como diz o Gênesis, Deus viu que o Desejo que Ele tinha de Compartilhar a sua Potência, ou seja, ser conhecido pelos seus atributos, não aconteceria se simplesmente o cosmo fosse preenchido por matéria bruta. Por isso Ele inoculou nela a semente da vida. E dentro do fenômeno da vida, ele escolheu uma das espécies vivas para ser o principal recipiendário da sua Luz: esse recipiendário foi o ser humano.

O homem, segundo a Cabala, foi criado como um ser espiritual, feito à própria imagem física do Criador, que é o universo. Quer dizer, a “Imagem” de Deus, que a Torá atribui à figura humana, não era a imagem Dele, pois segundo a própria Bíblia, Deus não a tem. A imagem à que a Bíblia se refere é a do universo criado, ou seja, a conformação física que Ele pensou dar ao mundo, com todos os seus atributos e formas. A Cabala chama essa forma de Adam Kadmon, ou seja, o Homem Universal. Foi essa forma que serviu para a produção do molde do homem da terra, que está descrito no Gênesis como Adão, o pai da humanidade.                                               

Adão, o homem da terra deveria refletir no universo da vida a Luz do Criador. Para isso foi feito. E para isso lhe foi dado como companheira a mulher que a Torá chama de Eva. A criação do homem, que a Torá diz que foi tirado do barro da terra, e da mulher, que teria sido tirada da costela dele, claramente, é uma metáfora que a Cabala explica como sendo uma aplicação do principio que rege toda a existência cósmica. 

Essa metáfora se refere à necessidade que a Energia tem de encontrar dois polos para manifestar a sua potência. A filosofia do Taoísmo é o que melhor explica essa metáfora. “Conhecendo o masculino e conservando o feminino, a pessoa se torna uma corrente universal. Tornando-se uma corrente universal, não sente separada da virtude eterna”.[7]

Esse conceito resume o principio da polaridade, necessário para que a Energia faça o seu trabalho. Isso significa que Deus percebeu que o homem, por si, só não conseguiria refletir a sua Luz criadora sozinho. Isto é, depois de criado o homem, Deus viu que seus atributos não seriam conhecidos se as coisas criadas e o homem, especialmente, que era a coroa da sua criação, não fossem capazes de transmitir a sua própria Luz, ou seja, o seu próprio poder de criar. Para isso seria preciso dar a ele um polo para que a sua própria Luz se manifestasse em atividade criadora.

Eva, a mulher, foi esse polo. Por isso o antigo pensamento chinês, expresso no Taoísmo, define esse conceito na ideia do yin-yang, positivo e negativo. Mas para os taoístas, esse conceito não encampa a ideia de oposição ou conflito, como acontece em outras doutrinas, onde a polaridade foi confundida com a ideia de luz e escuridão, vida e morte, bem e mal. Essa confusão fez com que a cultura ocidental, principalmente, visse nessa metáfora uma necessidade de cultivar o positivo eliminando o negativo, o que, para o pensamento chinês, e cremos, também o cabalista, é o maior erro da maioria das doutrinas hospedadas pelos povos do Ocidente.

Pois não há corrente energética sem os polos positivo (+) e negativo (-). Isso significa que não haveria prazer sem dor, sucesso sem fracasso, riqueza sem pobreza, saúde sem doença, bem sem mal. Os dois polos fazem parte de um sistema, o qual não existiria sem essa polaridade.  

 

O pecado de Adão

 

Segundo a Torá, o homem desobedeceu a um comando do Criador para que ele não comesse o fruto da Árvore do Conhecimento. Essa também é outra metáfora que precisa ser bem compreendida para não gerar falsas interpretações que trazem consequências funestas para a nossa própria vida. Essa metáfora diz respeito ao Desejo de Receber e o Desejo de Compartilhar.

Adão era um recipiendário da Luz do Criador. Ele, juntamente com a sua companheira constituíam os dois polos pelos quais deveria fluir essa Energia, dando como resultado uma Humanidade perfeita, capaz de refletir, no mundo físico, os atributos de Deus. Essa ideia confirma, inclusive, a teoria de Platão quando intuiu o seu mundo de formas ideais, que segundo ele, vinham de um mundo superior, formatado pelos deuses e refletido no pensamento humano na forma dos arquétipos que moldavam a sua espiritualidade.

Adão era um ser angelical, que fora vestido de uma capa etérea de espiritualidade, própria para receber a Luz do Criador. Ele não era, a rigor, um ser humano, sujeito a todas as vicissitudes do animal. Tanto que o Eterno Deus, ao verificar que ele e sua companheira haviam comido do fruto do conhecimento (metáfora que significa a aquisição da capacidade de reflexão, e por consequência, de um Ego) fez para eles túnicas de pele, para que eles as vestissem para cobrir sua nudez. Essa nos parece uma metáfora bastante clara: ao vestir a pele do animal, o casal adâmico passou a ser simplesmente humano, perdendo a sua aura angélica. E a partir daí, como todas as espécies animais, teria que ganhar a vida com o suor do rosto e parir seus descendentes com dor.

 

Os mundos anteriores

 

Essa alegoria bíblica está inserta na polaridade que a Energia necessita para poder fluir, E essa polaridade, por sua vez faz parte da própria estratégia do Criador para exercer o seu poder criador. É a estratégia que a Cabala chama de Desejo de Receber e Desejo de Compartilhar.

Só podemos compreender essa formidável intuição cabalística se a trouxermos para a nossa própria realidade cotidiana. Se aceitarmos o pressuposto de que todas as nossas necessidades nascem de um desejo do nosso ser de receber, poderemos encontrar uma boa porta de entrada para essa sabedoria. Isso quer dizer: se nascêssemos e morrêssemos plenamente satisfeitos não teríamos desejo por nada. E se temos desejo por alguma coisa é porque, em algum tempo, de alguma forma, ainda que seja meramente virtual, nós já experimentamos uma realização desse desejo. Pois ninguém pode desejar algo que não conhece, nunca viu, nem experimentou. Por isso a tradição cabalística se refere à uma plenitude que o homem já viveu, em algum tempo ou dimensão, talvez não como ser humano, mas como um ser angélico, projeção arquetípica celestial do homem terrestre, ou seja, o Adão cósmico, que a Cabala chama de Adam Kadmon: “Existiram mundos antigos que foram destruídos  ̶  mundos sem forma, que eram como faíscas de fogo, pois assim faz o ferreiro ao bater o ferro, lançando faíscas em todas as direções. Mas eles não puderam existir porque o Ancião dos Dias ainda não havia tomado forma  ̶  o trabalhador ainda não estava em sua tarefa. E também porque o homem ainda não havia sido formado,” diz o Zhoar. [8]

Na Bíblia a existência desses mundos anteriores está registrada na curiosa metáfora dos cinco reis que reinaram sobre a terra de Edom e que lutam contra quatro reis, inclusive os de Sodoma e Gomorra.[9]A referência a esses mundos antigos, que foram destruídos, significa que antes da atual forma do universo, muitos outros foram criados, mas nenhum deles subsistiu porque o equilíbrio energético entre o positivo e o negativo não havia ainda sido estabelecido. Isso porque, segundo diz o Zhoar, o homem ainda não havia sido criado, e ele é que dá a forma definitiva ao universo.

De fato, e a física quântica confirma essa hipótese, como veremos no decorrer deste trabalho, o mundo físico só toma conformação através da consciência humana. Isso quer dizer que nós, seres humanos, só existimos porque somos parte do universo. E o universo só existe porque temos consciência dele. Isso não significa que se o ser humano deixar de existir, o universo real também desaparecerá com ele. Apenas ninguém saberá que ele existe. E se ninguém sabe que determinada coisa existe, então ela não existe. Esse é um correspondente neurológico do famoso axioma atribuído a Descartes: penso, logo existo.

 

(Exerto do capítulo cinco do livro "ESTRELA FLAMEJANTE",- UMA INTRODUÇÃO À CABALA FILOSÓFICA", NO PRELO PA RA PUBLICAÇÃO)

 

 

 


[1] Alan Watts. Tao- O Curso do Rio- Ed. Pensamento-São Paulo-1975- Na imagem, o filósofo Lao Tsé, fundador do Taoísmo-

[2] Idem, pg. 71

[3] O Zhoar-Passagens selecionadas pelo rabino Ariel Benson-Ed. Polar, São Paulo 2018.pg 84

[4] Idem pg.72

[5] O Poder da Kabbalah, op. Citado, pg 53

[6] Idem, o Zhoar, pg.83- Na imagem a Arvore da Vida com a dez sefirot

[7] Tao Te´King, verso 28-

[8] Zhoar, op. Citado, pag106- O Ancião dos Dias é uma expressão cabalística para designar o tempo. Quer dizer, o tempo ainda não existia quando esses mundos foram criados. E o equilíbrio entre o positivo e o negativo, necessário para o surgimento e fixação da energia na matéria e na vida só aconteceu depois do Big Bang, ou seja, a manifestação positiva da Energia do Criador no mundo real.

[9] Gênesis 14: 1 a 5.