INTRODUÇÃO

Sobre este livro

 

Este livro é um estudo sobre as inspirações que os mestres cabalistas que escreveram o Sefer Há Zhoar tiveram com a leitura e interpretação dos chamados mistérios contidos na Bíblia e sua conexão com práticas espiritualistas modernas, como a Maçonaria e o Espiritismo. Não é, como se perceberá ao longo dos textos aqui elencados, uma incursão mais profunda nesse volumoso repertório de metáforas e visões que as mentes privilegiadas dos místicos rabinos de Israel elaboraram com essa finalidade, mas sim um conjunto de intuições particulares que nós tivemos ao ler o Zhoar e os comentários de que dele fizeram os diversos autores que se debruçaram sobre esse inspirado poema gnóstico.

O Zhoar, como sabem os estudantes dessa estranha doutrina que convencionou-se chamar de Cabala, é um livro que interpreta a Bíblia de uma forma mística e transcendente, fugindo das exegeses tradicionais, lógicas e conservadoras que se fazem desse formidável legado que os sábios de Israel proporcionaram à humanidade. Nele, toda a obra de Deus na construção do universo nos aparece na forma de metáforas, imagens, visões e alegorias que uma mente treinada na racionalidade tem dificuldade para entender, mas para quem tem sensibilidade para sentir a grandiosidade da Obra do Criador parece simples e natural, como a leitura de um poema de Dante, uma estória das Mil e Uma Noites ou um conto de Jorge Luiz Borges.

É que a grande maioria dos ocidentais não está acostumada com a forma de pensar dos povos orientais. Nesta predomina o uso indiscriminado de imagens e metáforas, próprio dos sistemas de escrita desses povos, que se baseiam em ideogramas, ou seja, sinais gráficos que simbolizam imagens, ao invés de caracteres formando palavras e estas formando ideias. No entanto, se pensarmos bem, é muito mais fácil treinarmos nossa mente para ler e entender ideogramas do que fazer isso com letras. A prova disso está nas nossas rodovias com suas placas de orientação, nos aeroportos e outros lugares de grande tráfego de pessoas. Qualquer pessoa, mesmo sendo analfabeta, consegue entendê-las, não importando a sua nacionalidade ou idioma.

 

O Zhoar foi escrito para a imaginação do leitor e não para sua mente lógica. É uma verdadeira Gestalt, no sentido de que as imagens que se formam na mente do leitor não podem ser decompostas em partes, mas só se consegue entendê-las na sua integralidade, e mesmo assim, quando a imagem se forma, logo percebemos que ela foi acrescida pela nossa própria imaginação.

É que o universo, como mostram hoje as modernas teorias que estudam o tempo e o espaço, não é um sistema linear, mas sim uma composição de inúmeras variáveis que se integram para formatar a realidade. Por isso tantas lendas e mistérios envolvem a sua composição, e mais ainda, a identidade do seu Criador.

Ninguém pode provar onde, quando e por quem o Zhoar foi escrito. O que se sabe, com certa dose de certeza, é que ele foi compilado e revisado por diversos autores que certamente devem ter acrescentado a ele suas próprias visões pessoais. Isso acontece com todos os grandes livros que tratam do tema da espiritualidade.

O que é certo, e pode ser sentido na leitura do Zhoar, é que seus revisores e comentadores conseguiram fazer com que esse livro nos desse uma impressão de antiguidade e modernidade ao mesmo tempo. A antiguidade é posta no sentido de que ele reflete ideias, conceitos e sensibilidades que podem ser recenseadas no tempo como contemporâneas das mais vetustas intuições humanas. Assim podem ser entendidas a proposição da existência de um Princípio Único na origem do universo (Ain Soph- O Ilimitado) e a reencarnação e o carma como estratégias da divindade para colocar ordem e sentido no processo de evolução da vida. A modernidade é dada pela estranha conexão que as visões cabalistas parecem ter com temas que estão sendo tratados nos artigos publicados sobre física quântica e neurociência em livros e revistas da atualidade.

 

A própria construção da realidade universal, a partir de um sistema ordenado de evolução e continuidade que explica a origem e a função do bem e do mal, (presentes no diagrama da Árvore da Vida), tem na Cabala um dos seus mais interessantes ensinamentos. E o próprio papel do povo e da nação de Israel nesse processo, expresso no engenhoso conceito da Tikum Olam, explica a estranha experiência desse extraordinário povo, que parece simbolizar em sua história a própria saga da humanidade na sua procura por uma identidade e uma função no universo da vida.

Em certo sentido podemos enxergar na doutrina da Cabala uma sensível semelhança com os conceitos do Taoísmo, especialmente em relação ao papel da polaridade positivo/negativo, que nessa antiga filosofia chinesa atua como forma de equilíbrio cósmico. Na Cabala, há uma formulação equivalente no conceito de Existência Negativa e Existência positiva que o Criador assume na sua proatividade criadora. Verificamos também que a doutrina cabalística se aproxima bastante das concepções maniqueístas que o pensamento religioso ocidental desenvolveu com suas metáforas de luta eterna entre bem e mal, luz e trevas, positivo e negativo, certo e errado, Deus e o Diabo etc., mas a sua conclusão leva a um diferente caminho filosófico que o pensamento ocidental não logrou absorver.

No espírito do homem ocidental esse eterno embate o encaminha no sentido de querer livrar-se do mal para poder gozar o bem. Mas na Cabala, como no Taoísmo, isso é impossível, pois ambos fazem parte de um mesmo sistema destinado a manter o equilíbrio universal, de forma que a simples eliminação de um implicaria na eliminação do outro, e assim desapareceria a própria energia que sustenta a vida do universo.

A Cabala ensina que o único mal que existe no mundo é o nosso próprio Ego, com o seu ardente e insaciável Desejo de Receber. Mas nesse Desejo também reside o bem, porque o Ego, igualmente, hospeda o Desejo de Compartilhar, que se resume especialmente na socialização e na procriação, mas também inclui a demais virtudes do ser humano, como a bondade, a caridade, a compassividade, a tolerância, o amor etc. E é no equilíbrio entre essas duas forças Receber e Compartilhar – que estão a felicidade, a paz, o sucesso, o prazer e todas as sensibilidades que o homem busca na vida.

 

A ótica cabalista a respeito dos nossos processos mentais pode parecer um tanto chocante e irreal para a mentalidade do homem ocidental, criado para ter uma visão positivista do mundo. Para estes, a conclusão pode até ser frustrante porquanto ela afasta a ideia de um progresso fundamentado no ter para construir um ser. Para a Cabala a plenitude que nós chamamos de felicidade é realizada sem o estresse de querer obter prazer sem dor, riqueza sem experimentar carência, saúde sem doença, vitórias sem derrotas etc. Na mente ocidental esse é o grande objetivo de nossas vidas. Mas como podemos perceber, cada vez com mais clareza, o nosso extraordinário desenvolvimento tecnológico parece nos encaminhar para um sentido oposto àquele que todo esse esforço deveria nos levar. Para produzir toda essa “riqueza” tecnológica da qual nos ufanamos, nós estamos interferindo no sistema de relações que rege a vida do universo e por isso estamos pagando muito caro. Cataclismos naturais, guerras, conflitos pessoais, desagregação social e familiar, estresse e perda do sentido da vida são as consequências desse processo.

Como sustenta a doutrina cabalista, a visão linear do tempo e da história está nos conduzindo para uma direção bem diferente daquela que gostaríamos de ir. Quanto mais tentamos dominar a natureza, mais ela nos foge e se vinga da nossa tirania. Por isso, o praticante da Cabala pergunta a si mesmo o que pode ser encontrado e revelado no universo ao invés do que existe para ser conquistado e usufruído nele.

 

A doutrina cabalista não é, como de início se poderia pensar, um libelo contra as conquistas tecnológicas e a busca do prazer e a consequente anulação da dor. Ela é, mais que tudo, uma doutrina que ensina a combinar os dois polos da Energia que está na origem da realidade universal para obter um equilíbrio que nos permita a fruição de ambos os estados. É nesse sentido que ela integra, não só as intuições taoístas sobre o equilíbrio entre yang e yin, como medida de integração total do espirito do homem com a natureza, mas também as recentes descobertas da neurociência, especialmente as presentes nas técnicas da PNL (programação neurolinguística) e os ensinamentos obtidos com as descobertas da física quântica.

São nessas estratégias que podemos sentir a modernidade das concepções cabalísticas quando fazemos um paralelo dessas visões com recentes publicações científicas que mostram a intimidade dos processos que dão origem à matéria universal, estudados pela física quântica e pela astronomia, integrando também as recentes descobertas da ciência genética que estuda a origem da vida e seus processos de desenvolvimento e adaptação ao ambiente.

Como a grande maioria dos livros “inspirados” por revelação divina, as visões do Zhoar não são de fácil absorção pela mente do homem moderno, que prima pela logicidade das suas concepções. O Zhoar é, antes de tudo, um produto do inconsciente coletivo de um povo que viveu uma saga extraordinária de ascensões e quedas e foi formado no ideal de uma utopia que nunca se realiza, mas que também não pode ser descartada como esperança a ser concretizada. Por que se acredita ser esse o próprio objetivo da Divindade que criou o universo como projeção de Si mesmo, com a intenção de compartilhar a sua Potência, que se resume, afinal, em um ilimitado Amor.

O Zhoar é um livro de revelações (tanto quanto o Apocalipse cristão, os escritos proféticos da Bíblia, as visões extraordinárias dos místicos orientais em seus poemas épicos), que usa a magia aliciadora da linguagem visionária. E como vários outros livros de inspiração mágica, é um produto da fértil mentalidade oriental, cujas crenças nunca se despregaram da ideia de que o sobrenatural está na origem de tudo.

No fundo, o que o Zhoar revela nada mais é do que o ego transcendental do homem. É, como diz Jung em seus trabalhos sobre os conteúdos desconhecidos da nossa mente, uma viagem pelo inconsciente coletivo da humanidade em busca de uma integração com a sua origem luminosa. Porque toda a estrutura do livro tem como finalidade última e precípua a defesa de uma ideia que tem sido proposta explicitamente por outros sistemas de pensamento místico, pelas mais variadas religiões e até por pensadores racionalistas e modernos ensaístas: a de que tudo, no universo, tem como base um fenômeno luminoso, seja ele oriundo de uma Divindade, de uma fonte de energia desconhecida, ou até mesmo de um corpo celeste como o sol, como pensavam os praticantes das religiões solares da antiguidade.

A novidade do Zhoar, como já enfatizamos, é a sua compatibilidade entre as visões místicas dos sábios da antiguidade e as modernas descobertas da física quântica, juntamente com as especulações de pensadores e ensaístas como Teilhard de Chardin, Carl Gustav Jung, Stephen Hawking, Fritjof Kapra, Deepak Chopra e outros, cujos trabalhos têm procurado encontrar o elo perdido entre o homem e sua consciência interior.

Destarte, em nossas especulações julgamos também encontrar muitos paralelos com estruturas de pensamento mais recentemente desenvolvidas, como a Gestalt terapia e as técnicas da chamada Programação Neurolinguística. Esses paralelos serão expostos neste trabalho e estão sujeitos ao crivo crítico dos leitores tanto quanto todas as demais especulações que já foram feitas e publicadas sobre o assunto.

Este trabalho foi desenvolvido especificamente para maçons, porque entendemos que a prática da Maçonaria tem uma inspiração muito forte na doutrina cabalística. Por isso é que chamamos a Maçonaria de Cabala do Ocidente, pois nela encontraremos o essencial dessa tradição, associada à outras doutrinas espiritualistas, como a gnose, o hermetismo, o espiritismo e conceitos desenvolvidos pelos filósofos neoplatônicos.   

A versão do Zhoar que utilizamos neste estudo é a oitava edição do livro compilado pelo rabino Ariel Benson (1880-1932), publicado pela editora Polar em 2018. Não contém os textos completos do livro, mas apenas passagens selecionadas. Embora tivéssemos tido acesso à edições completas desse livro, inclusive uma edição em hebraico a nós presenteada pelo rabino Gabriel Grinberg, da sinagoga de Mogi das Cruzes, preferimos o trabalho do rabino Ariel pelo fato de ele servir melhor aos nossos propósitos, que é o de traçar os paralelos acima referidos.

Entendemos que esse paralelo existe principalmente no fato de essas disciplinas apresentarem um objetivo comum, que é proporcionar aos seus estudiosos uma filosofia de vida capaz de integrar todas as visões de uma sociedade sadia, com condições de oferecer aos seus membros uma escolha isenta dos sectarismos e ideologias que separam os seres humanos mais do que os une para um propósito final, que é a construção do grande edifício cósmico projetado pelo seu Grande Arquiteto.

É principalmente com essa intenção que entregamos aos leitores este nosso ensaio.

 

9INTRODUÇÃO AO LIVRO " A ESTRELA FLAMEJANTE" - UMA INTRODUÇÃO À CABALA FILOSÓFICA-NO PRELO