A antropologia de Guimarães Rosa através do olhar do Dito Márcia Cris Almeida / 2017
Este texto foi um trabalho elaborado em uma oficina de leitura de textos: a interface da filosofia e literatura na obra de Guimarães Rosa. Como avaliação da oficina, a professora pediu para selecionar um personagem de Guimarães Rosa lido no semestre e explicar o que víamos de filosofia no trecho ou personagem selecionado. Escolhi O Dito e o Miguiluim, duas crianças cujas histórias são contadas por Guimarães Rosa em Campos Gerais.
…..”só uma palavra me devora
aquela que meu coração não diz
só o que me cega o que me faz infeliz
é o brilho do olhar que não sofri”
Jura secreta- Sueli Costa e Abel Silva
O texto de Guimarães Rosa fala sobre a universalidade da construção de um eu a partir da interação com o mundo, traz a formação e o conhecimento do mundo através dos olhos de Miguilim. É atemporal e universal. Miguilim às vezes pensa como adulto, às vezes como criança, ele não está falando das coisas, ele está falando as coisas, é a passagem direta da sensação ao discurso e o discurso é que ele pensa.
A interação Dito-Miguilim, é também descrita na música citada no início deste texto “ só o que me cega, o que me faz infeliz é o brilho do olhar que eu não sofri”. Na relação com o outro é que percebemos nós mesmos e nos construímos. O contato com o outro me revela algo de mim mesmo, me proporciona a vivência da alteridade. Nós nos constituímos sujeitos quando somos validados pelo olhar do outro. O texto em várias oportunidades mostra este jogo especular. Miguilim tem uma necessidade de construir seu mundo conceitual sempre validado pelo olhar do Dito, todos os seus questionamentos são para o Dito, somente “o brilho do olhar do Dito” faz com que Miguilim reconheça e encontre o seu lugar no mundo.
...”Dito, mesmo você acha, eu sou bobo de verdade?” “É não Miguilim, de jeito nenhum. Isso mesmo que não é. Você tem juízo por outros lados...” (p. 86)
O par Miguilim / Dito se complementam, Miguilim é o que precisa aprender para saber e Dito sabe de modo imediato sem saber como. Dito é o sábio e Miguilim é o aprendiz.
“O Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava na dúvida, achava que podia ser errado. Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade. De onde o Dito tirava aquilo? Dava até raiva, aquele juízo sisudo, o poder do Dito, de saber e entender, sem as necessidades.” (p.98)
Miguilim é o “vir a ser”. Dito é o irmão completo, já construído. Possui características próprias dos heróis, de um modelo a ser seguido, é o que tem a astúcia e a solução prática baseada em reflexão. Ele é o lado racional da existência, intuído e desejado por Miguilim, mas que sempre lhe escapa. Até um dia em que ele duvida de uma resposta do Dito, passagem que mostra o início das mudanças e do amadurecimento de Miguilim: “.. ele bebia um golinho de velhice.” (p. 89)
Miguilim passa por várias etapas na construção de seu eu, de sua identidade, de seu posicionamento no mundo, de sua relação com o outro, que pode ser universalizada como uma antropologia. Guimarães Rosa utiliza a infância, os personagens Miguilim e Dito para colocar e resolver vários dilemas e problemas universais do crescimento do ser humano e constituição como sujeito.
Miguilim nunca tinha as respostas e mesmo quando tinha duvidava, sempre precisava do Dito. A razão, o logos (Dito) se contrapõe à emoção, ao pathos (Miguilim) e a emoção precisa da razão para dominá-la, norteá-la no dever-ser. Dito sabe o que é certo ou errado. Ao ser perguntado sobre o assunto responde que:
“..tudo quanto há, antes de se fazer, às vezes é malfeito; mas depois que está feito e a gente fez, aí tudo é bem feito...”(p.84)
Com esta fala, Guimarães Rosa discute ética, relativiza a divisão certo-errado. Seus personagens não fazem juízo de valor, colocam a dúvida, o desejo, a angústia, mas não o juízo, são marcados pela dualidade, ambiguidade. Não há objetivamente, o que é melhor, nada no mundo nos diz isto, a resposta está em nós mesmo (eu comigo, eu com os outros, eu com o cosmos). É nesta dúvida sobre questões éticas, que a humanidade desde a antiguidade se preocupa, que o autor coloca a primeira dúvida de Miguilim sobre o que é dito pelo Dito: Dito não sabe, como toda a humanidade também não sabe. O Dito desce do pedestal. Inicia-se o processo de maturidade de Miguilim com a modificação e elaboração da sua percepção do mundo.
Quando Dito morre, para Miguilim a vida parece impossível de ser. Ao perder Dito, Miguilim perde o ponto de apoio de sua infância, está sozinho para entender o mundo e decidir sobre as suas coisas, perde o brilho do olhar do outro. A cada dia que passa, seus “absurdos” sempre e mais se encontram com a clara visão do mundo adulto. E nesta passagem Guimarães Rosa nos presenteia com uma metáfora a visão de Miguilim melhora ao colocar os óculos. Miguilim sem o Dito cresce, se individualiza e enxerga o mundo. A visão clara do mundo com os óculos, que é dado por um estranho àquele seu mundinho da infância, descortina várias possibilidades em sua vida, ele sai da “caverna” para entender e conhecer o mundo. Sentir o mundo, e processar estas experiências com a razão é uma etapa de conhecimento de todo ser humano individual e da humanidade. Com a morte, Dito se torna um mito, um espelho, reflexo de Miguilim que se eterniza em Miguilim. Com o conhecimento, Miguilim se abre para a vida.
Márcia Cris Almeida / 2017
Bibliografia
1- Rosa, J.G. Miguilim,in -------------------, Manuelzão e Miguilim, 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.27-152