CRIAÇÃO DA PRÓPRIA HISTÓRIA
Antes de falarmos que temos um corpo que reveste a nossa alma, somos o nosso corpo que sente, que ama, que sofre, que escuta, que vive uma epifania, etc. Somos, outrossim, o nosso corpo escrevendo, articulando ideias, produzindo obras de arte, aprendendo novos idiomas, cultivando amizades, etc. Certamente, existe algo de muito profundo e de anímico em tais vivências...
A partir dessa perspectiva, é possível citar um texto do psiquiatra Van Den Berg, onde ele traz uma reflexão sobre o homem e o mundo com base numa visão fenomenológica na psiquiatria de sua obra O paciente psiquiatrico: "A relação entre o homem e o mundo é tão íntima que seria errado separá-los, num exame psicológico ou psiquiátrico. Se forem separados, o paciente deixará de ser esse paciente particular e o seu mundo deixará de ser seu mundo. Em primeiro lugar, nosso mundo não é um conglomerado de objetos que podem ser cientificamente descritos. Nosso mundo é o nosso lar, nosso ambiente, nossa casa, uma realização de subjetividade. Se desejarmos compreender a existência humana, teremos que prestar ouvidos a linguagem dos objetos. Se estivermos descrevendo um sujeito, teremos que elaborar a cena na qual o sujeito se revela".
Do mesmo modo, antes de termos uma história de vida como um baú de memórias marcantes, somos a nossa própria história de vida que se reescreve a cada dia, uma história cujos acontecimentos dependem tanto de nossas ações no mundo em que vivemos, quanto de nosso próprio mundo circundante ou entorno que nos move e nos afeta (negativa ou positivamente).
Somos, pois, o resultado das histórias que vivemos, mas somos também essa intencionalidade que produz efeitos no meio em que estamos inseridos, podendo ser articulada por um ato responsável e criativo, ou por um ato inconsequente e destrutivo. Além do lugar em que vivemos, somos no mundo e estamos situados no mundo...até porque tudo o que fazemos, está em continua relação com as coisas, com os seres vivos, com outros seres humanos, com os artefatos que criamos e com a divindade de nossa vida.
Quanto as coisas que nos rodeia, as dotamos com um gosto particular, como por exemplo, a posição dos móveis numa casa ou a ordem dos livros numa livreira, recriando o nosso próprio universo que revela o nosso ser nas coisas que nos pertence em determinado tempo-espaço. Mais uma vez o psiquiatra Van Den Berg no seu livro esboço de psicopatologia fenomenológica nos dá uma excelente inspiração acerca desse assunto: '' As coisas têm algo a nos contar: isto é muito conhecido pelos poetas e pelos pintores; por isso é que os poetas e pintores são fenomenologistas natos; ou melhor, somos todos fenomenologistas natos; mas são os poetas e pintores entre nós que são capazes de transmitir os seus pontos de vista para os outros, processo este também tentado, laboriosamente, pelo fenomenologista profissional. Todos nós compreendemos a linguagem das coisas. Vivemos num mundo ajustado e evidente por si mesmo. O nadador lança-se à água porque a água lhe prova, de mil modos, que está pronta a receber o seu corpo. A criança agarra a areia aos punhados, porque a areia lá está a lhe gritar: agarra-me! É desta maneira que nos mudamos para uma casa. Vemos os quartos da maneira que serão mobiliados mais tarde; aí o cantinho onde sentaremos, ali a cama para a criança, acolá a quentura para o inverno, ali adiante a frescura para o verão. Por aí tudo se estende a domesticidade; a casa é habitável''.
A atitude fenomenológica, mais do que um percurso metodológico, uma perspectiva filosófica ou uma ciência para o campo da psicologia, é um estilo de vida, um modo de ver as coisas tal como elas se mostram, na sua forma mais originária e em estado nascente. Com base nessa postura de vida, conseguimos compreender a nossa relação com os objetos inanimados, com os seres vivos e os nossos semelhantes, de modo que passamos a construir a nossa própria história em face do mundo que nos circunda, desse mundo pré-reflexivo que é, a princípio, passível de ser observado e trabalho de modo singular por cada ser humano.
A existência humana é permeada de possibilidades, porém não deixa de estar condicionada no tempo e no espaço. Somos seres livres para mudar a nossa história, ao mesmo tempo em que somos marcados pela influência dos acontecimentos da história realizada e contada todos os dias. Da nossa inter-relação com as coisas, seres e pessoas, nasce novas ideias, perspectivas e experiências que marcam para sempre o nosso ser, seja no sentido de aprendermos com as circunstâncias (e não voltarmos para a mesma situação), seja no sentido de perdermos a alegria de viver, seja ainda no sentido de enxergarmos novas saídas em meio aos obstáculos.
Cada ser humano, em face dos acontecimentos de seu mundo, dá uma interpretação própria e peculiar para cada fenômeno na sua singela manifestação. E cada ser humano, na sua liberdade de ser e de ser o seu ai no mundo, dá significado as suas vivências, recriando de forma de singular os contornos de sua própria historicidade e realidade existencial.