A independência do Brasil na história escolar
Como disciplina escolar, a história é uma das poucas matérias que consegue manter um diálogo intergeracional entre pais e filhos. As menções feitas pelos professores às realidades da história local, planos econômicos, personagens políticos e fatos marcantes ainda conseguem manter uma conversação entre aquilo que se ensina no chão da sala de aula e aquilo que se aprende pela experiência da memória familiar.
No mundo ocidental moderno, depois da década de 1990, os diversos programas curriculares em ensino de história se pautaram por uma tentativa de oferecer um ensino mais voltado para a construção de cidadanias transnacionais do que para a afirmação de uma identidade nacional, como havia sido o hábito até o fim da Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945. O período conhecido como Guerra Fria ainda teve o condão de oferecer leituras sobre a memória histórica enviesadas por intenso debate ideológico. Uma vez tomada a ideologia liberal como predominante em função da queda do Muro de Berlim, em 1989, cada país se inseriu diante de um ensino globalizado da história de uma maneira distinta, carregando as suas próprias particularidades.
Durante o século XIX, em meio a um cenário educacional não universal, o ensino de História procurava galvanizar uma identidade nacional. As efemérides dos “heróis” da construção da pátria, as guerras decisivas, os fatos preponderantes na construção do país etc., se mostravam como necessários à formação de um imaginário coletivo capaz de produzir identificação nacionalista. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) tinha como perspectiva essencial a fundamentação de um senso de coletividade nacional, cujo sentido básico era o da construção de uma noção de pertencimento entre as pessoas. Com o passar das décadas algo interessante aconteceu: o ensino de história voltado para a construção do nacionalismo identificou-se mais fortemente com os projetos políticos da direita do que da esquerda. Isso se observou em praticamente todos os países ocidentais. No Japão, o movimento foi o mesmo. Os governos de direita que assumiram o Japão nos anos 1960 queriam um ensino de história que exaltasse o passado militar do Império Japonês, muito embora as forças da sociedade civil e os historiadores quisessem uma identificação de passado mais voltada para a autocrítica e o respeito aos valores do pluralismo e da democracia.
Se até o fim da Segunda Guerra Mundial, vários países do mundo — notadamente os de viés autoritário — mantiveram um ensino de história voltado à exaltação dos símbolos da pátria na tentativa de conformar uma identidade nacional, hoje em dia a forma de se ensinar a história não depende tanto da construção de um cidadão da nação. Em um momento feliz, o teórico Jean-Jacques Rousseau recordou-nos de que era preciso fazer uma escolha delicada: ou a escola se punha a formar o homem ou tentava formar o cidadão. Não seria possível formar os dois ao mesmo tempo.
Como vivemos já sob os ventos da segunda década do século XXI, as maneiras de se ensinar a história escolar preocupam-se com a formação de uma espécie de “cidadão global”, mais identificado aos direitos humanos do que propriamente às exigências de uma pátria. Claro que ainda observamos o ensino das efemérides nacionais, sobretudo nos ciclos mais baixos da escolaridade. Aprendemos algo sobre os “fundadores do país” em uma espécie de narrativa destituída de conflitos.
Ah, como se o grito do Ipiranga de D. Pedro, em sete de setembro de 1822, significasse a galvanização de um interesse nacional! A vontade de independência de um membro da família real portuguesa no Brasil seria, de fato, compartilhada pelas elites dirigentes das mais diversas províncias? Seria do anseio de mestiços e, sobretudo, escravos? Ou não passaria de um discurso nacional cujo sucesso procurou legitimar o poder de um determinado grupo social? Em qualquer livro didático aprovado pelo Ministério da Educação já se encontra patente que a “independência” consolidou uma visão particular dos vencedores, mas não sem uma disputa prévia sobre qual país nasceria após o processo da independência. Será mesmo?
O livro que nos interessa a análise é o de Patrícia Motta Braick, em volume único para o Ensino Médio. Orientado para garantir ao educando uma visão relativamente sólida dos principais processos históricos abordados na grade curricular, Braick integra a história mundial à brasileira em capítulos combinados de acordo com a cronologia histórica. No trabalho “História: das cavernas ao Terceiro Milênio”, a seção sobre a Independência brasileira intitula-se “O assentamento das bases do Império Brasileiro”. O primeiro parágrafo do texto já garante ao leitor a inexistência de uma visão romanceada da Independência baseada nos feitos pretensamente heroicos dos governantes.
“O período que se seguiu à independência foi marcado por grandes lutas internas e externas referentes ao processo de consolidação da autonomia do país. No âmbito interno, enormes diferenças regionais dificultaram o surgimento da verdadeira ideia de nação no território brasileiro.” (págs. 376–7)
Compreende-se imediatamente que as regiões brasileiras, governadas por elites econômicas distintas, tinham uma visão de independência que não estava relacionada ao projeto monárquico centralizador de D. Pedro I. Desse modo, a condução da questão através do livro didático nos aproxima mais da complexidade historiográfica do período do que de uma suposta visão heroica e patriótica que repousa no monarca D. Pedro uma figura de unanimidade. Não houve isso. Cada província tinha interesses que lhe eram próprios.
Percebe-se imediatamente que a autora não estava disposta a compartilhar com os alunos uma interpretação nacionalista do processo de independência brasileiro, mais afeito aos interesses da construção da identidade nacional. Pelo contrário. Temos aqui a prova unívoca de que a libertação das províncias do controle metropolitano português atravessou um momento conflituoso. No entanto, na hora de comprovar como ocorreram as divergências concretas entre D. Pedro e as elites regionais, a autora simplesmente aponta:
“Diante de qualquer ameaça, real ou imaginária, as elites logo procuravam estabelecer junto ao imperador um compromisso ou, como se chamava então, uma transação, para preservar suas vantagens sociais e econômicas.” (Pág. 377)
Apenas isso? Tudo o que as elites queriam era a preservação de privilégios no novo país que se formava? Aceitaram tão facilmente a liderança de D. Pedro? A autora simplesmente cita essas pretensas negociatas entre capital e interior e logo começa a analisar a situação diplomática do reconhecimento português da independência brasileira. E não volta mais no assunto.
O projeto monárquico situado no Rio de Janeiro, capitaneado pelo futuro rei apoiado pelas classes rurais sudestinas, não foi compartilhado pelas elites espalhadas nas províncias distantes, como Piauí, Pernambuco ou Rio Grande do Sul. Múltiplas vozes se colocavam de maneira distinta diante do problema da independência. Tornar-se parte de uma monarquia centralizada não era parte do sonho das províncias para o futuro do país. Havia propostas para secessão e construção de novas soberanias, cuja legitimidade dependeria do apoio das classes médias das próprias províncias, mas não de uma suposta autoridade real estranha aos desejos locais. Sendo assim, fica a pergunta: por que essas elites lutaram ao lado de D. Pedro? Essa questão também não fica bem respondida.
O aluno atento tem a impressão de que algo se encontra fora do lugar. Gigante em extensão territorial e salpicado por elites regionais que não reconheciam a autoridade régia vinda do Rio de Janeiro, por que o Brasil manteve a integridade territorial no imediato pós-independência? No senso lógico, o país deveria ter se desmembrado em múltiplas soberanias distintas, a exemplo do que ocorreu no vizinho Vice-Reinado de Nova Granada, o qual deu origem a três novos países independentes: Colômbia, Venezuela e Equador. Na ótica do livro didático, continua inexplicada a fórmula política que provocou a submissão das províncias ao projeto centralizador de D. Pedro.
As razões que produziram concordância entre as lideranças provinciais ao projeto político de D. Pedro não foram abordadas no livro didático. Temos a impressão de que era natural, entre as mais diversas lideranças regionais, um sentimento de combate contra a realeza portuguesa. A adesão ao Príncipe-Regente teria sido construída de acordo com essa fórmula, estabelecendo-se no plano da história como uma verdade mística, quase revelada. Por que Bahia, Piauí, Grão-Pará e demais províncias quiseram fazer parte de um Brasil que até então não passava de uma confabulação política do Rio de Janeiro? A variada liderança regional espalhada pelo interior de um país gigantesco simplesmente aceitou ter um lugar ao sol diante de uma monarquia que sequer havia sido construída. A atenção da autora se debruça sobre algum caso específico nas províncias?
Braick menciona que as intenções centralistas de D. Pedro se chocaram contra os projetos dos “grupos liberais avançados”, como o de Gonçalves Lêdo e também dos republicanos. Também cita que Maranhão e Bahia ficaram ligados às cortes portuguesas, dando vazão às guerras que desestabilizaram movimentos de separação em outras partes do nordeste. Outra menção feita repousa na violência com que o Grão-Pará permaneceu ligado ao território brasileiro.
Nenhum líder é apresentado, em âmbito regional, como capaz de rivalizar com D. Pedro na condução futura do novo país. A naturalidade com que D. Pedro parece liderar o processo faz o leitor acreditar, ainda que tacitamente, no caráter quase divino do futuro imperador. O sentido histórico abriu espaço para a efeméride. Ainda que se tente transmitir a impressão de que a construção do Brasil não foi um processo natural, o aluno fica sem indicações mais claras em relação à dificuldade do Brasil se estabelecer como Império. Com alguma dificuldade, a luta contra Portugal teria sido acatada pelas várias elites provinciais, tendo em D. Pedro uma liderança automática. Sem vinculações políticas com o Rio de Janeiro, elites regionais do Ceará, Maranhão ou Pernambuco teriam aceitado a liderança do regente D. Pedro com uma facilidade que se torna mais factível no mundo das idealizações do que propriamente no domínio dos fatos.
Cabe ao professor de História reconduzir o discernimento sobre o processo de independência de modo mais objetivo e menos apaixonado. Abraçar mitos de fundação nacional podem até construir cidadãos cuja identidade se constrói em “mentiras sinceras que interessam”, como dizia o extinto roqueiro carioca. Difícil mesmo é aprender a formação do Brasil político como um processo nuançado em que rivalizaram os mais variados projetos distintos. O trabalho de Patrícia Braick indicou rapidamente que houve alguns conflitos. Livros futuros deverão mapear toda a extensão dos conflitos e interesses que formaram o processo de independência, talvez retirando do futuro rei o papel de figura central que desempenha em todas as análises.
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Bibliografia
MOTA & BRAICK. História das Cavernas ao Terceiro Milênio. São Paulo: Editora Moderna, 1997.