O PINTO E A PERERECA...
Tarde de sol em Campo Grande. Miolos cozinhando, cabeças quentes, o trânsito também ferve. Um caminhão com um maiúsculo “GRANJAS CLÉCIO” na lateral, na ânsia de fugir do imprevisto temporal de verão que se vislumbra, desce a Salgado Filho em alta velocidade, atropela um dos buracos no asfalto, parece que vai perder a direção, embica na direção do viaduto sobre o rio Anhanduí, tira uma fina das pilastras, zigue-zagueia, faz que vai mas não vai, deixa cair uma dezena de caixas de ovos, se apruma, volta para a pista principal, acelera e...escapa rumo ao bairro Amambaí. A chuva forte chega rápida. As caixas de isopor estouradas ao baterem no asfalto vão se desfazendo à medida que são atropeladas pelos carros. Os ovos espalham-se pela avenida. Quebrados e com o calor do asfalto viram uma grande omelete. Alguns escapam ilesos. Vão parar embaixo da enorme passarela de concreto. A noite cai e passa rápida. Amanhece. Raia um novo dia de sol a pino. O calor dantesco derrete os telhados da capital do Pantanal. Um cheiro de ovo podre invade os arredores do viaduto. As rãs da beira rio, nas poças d’água, começam a coaxar freneticamente. No meio daquele monturo de cascas, cascalhos, areia e lixo, um daqueles ovos perdidos se agita. Num passe de mágica gira sobre si mesmo, bate em uma pedra e racha. Uma cabecinha amarela se destaca tentando se livrar daquela gaiola de cálcio que a estava aprisionando. Miraculo Dei! Nasce um pinto. A avezita atrevida arrisca alguns passos, bambeia, cai. Tenta várias vezes, até ficar firme e em pé, rijo. Começa a andar sem direção. Guiado pelo instinto, segue a mesma rota do caminhão de onde caíra. Logo adivinha a presença de um rio correndo mais abaixo. Com sede, enfrenta o declive do longo gramado que aponta para a água. Atravessa a pista da rodovia e chega à margem do rio. Acompanha vagarosamente seu curso até achar um lugar seguro, com pedras onde pode amparar-se. Quando pensa que vai matar sua sede, um berro estridente, que antes nunca ouvira, fere seus ouvidos, quase o mata de susto. Olha apavorado para a estranha e enrugada criatura que se posta às suas costas. Fica indeciso. Treme quando ouve uma voz perguntar: “Quem é você pequeno idiota?”. O jovem pinto pela primeira vez enfrenta uma perereca. Assusta-se com a enorme boca pronta para engoli-lo. Não sabe o que fazer. Sua penugem se arrepia. Suas poucas penas se agitam. Tenta bater as asas para impressionar o enorme batráquio que já está lambendo significativamente os beiços. Por puro instinto de preservação, de sobrevivência mesmo, lembra-se do nome da granja em que nascera. Empertiga-se. Quer mostrar que não está com medo. Arrisca um piado atrevido, uma resposta arrogante: ”Sou da família Pinto. Meu nome é Clécio. Clécio Pinto!”. A vilã irrita-se: “Cresce o quê? Pequeno e gozador hein? Tá querendo dar uma de durão é?”. O tremulo pinto arrisca: “Não senhora. Durão nada. Eu ainda sou mole. Acabei de nascer. Só quero ocupar meu espaço!”. A perereca apóia-se numa pedra na curva do rio enquanto o pinto flutua dentro da água, mais abaixo. Prestes a dar seu bote a rã coaxa: “Como se atreve a sujar a água que vou beber?”. O pinto sorri com a ignorância: “Não é possível. A água corre da senhora para mim!”. A vil criatura, irritada com a ousadia daquele pinto cabeçudo grita: “Semana passada, você falou mal de mim!”. O pinto pensa que está a salvo, retruca: “Que é isso dona? Semana passada eu ainda nem tinha nascido!”. A perereca infla os grandes beiços escorridos de saliva, decide: “Não importa. Seu pai falou mal de mim!”. Segura o pinto com a longa língua. Engole de uma bocada só. Vomita as patinhas no verde gramado. Faz uns alongamentos. Arrota. Com um sorriso de satisfação e maldade mergulha na fria água do rio que a tudo assistira placidamente. Moral de história: “Pinto mole, perereca engole!”...
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