A mineiridade e a crônica

Em 2014, o jornal Correio Braziliense fez uma lista com os dez mais importantes cronistas brasileiros. Dois eram mineiros: Carlos Drummond de Andrade e Paulo Mendes Campos. Um era capixaba: Rubem Braga. Uma nasceu na Ucrânia: Clarice Lispector, que dizia não ter nenhuma ligação com aquele país: “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada no colo” — ela passou a infância no Recife e morou a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro. Um era pernambucano: Nelson Rodrigues, mas se mudou para o Rio de Janeiro com quatro anos de idade. Os demais eram cariocas: Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes.

Podemos discordar da lista. Aliás, listas foram feitas para iniciar assunto e para estabelecer discordâncias. Em minha opinião, a crônica é um gênero autêntico mineiro, embora também o seja carioca e, há quem diga, acima de tudo, brasileiro. Claro, o Brasil tem grandes cronistas, nossos maiores escritores dedicaram-se à crônica — para matar de raiva os que dizem ser este um “gênero menor” (é pura inveja). Machado de Assis, considerado por muitos como nosso maior escritor, foi um excelente, e prolífero, cronista. Graciliano Ramos, o formidável escritor alagoano, foi outro exímio cronista. Clarice Lispector, escritora adorada por muitos leitores interessados em seu lirismo e em sua visão enigmática da vida, também se destacou na crônica.

Mas estão faltando escritores nesta lista. Se Rubem Braga é considerado o “príncipe da crônica”, gênero ao qual se dedicou exclusivamente, com leveza, ironia e bom humor, não se pode esquecer de outros expoentes da crônica: Luís Fernando Veríssimo (Rio Grande do Sul), Antônio Maria (Pernambuco), Antônio Torres (Bahia), Ivan Lessa (São Paulo), José Carlos de Oliveira (Espírito Santo), Rachel de Queiroz (Ceará), Sérgio Porto, o genial Stanislaw Ponte Preta (Rio de Janeiro), Antônio Prata (São Paulo), Lourenço Diaféria (São Paulo), Carlos Heitor Cony (Rio de Janeiro), Caio Fernando Abreu (Rio Grande do Sul) e até o Mário de Andrade (São Paulo), quem diria, também escreveu crônicas.

A crônica em Minas Gerais: a memória e o futuro

Os escritores mineiros, ao lado dos cariocas, abraçaram com paixão a crônica. Se este gênero não existisse, eles o teriam inventado. E chegaram em peso, justamente a partir dos anos 1950 e 1960. Para muitos estudiosos do assunto, este foi o período de apogeu da crônica. Mineiros e mineiras capricharam na caracterização da saudade, da culinária mineira, na apresentação das paisagens tão características de Minas Gerais, e teimaram com a ironia, principalmente a ironia política.

Além de Carlos Drummond e Paulo Mendes Campos, foram grandes cronistas nascidos em Minas Gerais: Oto Lara Resende (São João Del Rey), Fernando Sabino (Belo Horizonte), Nina Horta (Belo Horizonte), Campos de Carvalho (Uberaba) — Campos de Carvalho colaborou com O Pasquim e trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo, no período de 1968 a 1978. Continuando: Mário Prata (Uberaba), Ruy Castro (Caratinga), Adélia Prado (Divinópolis), Rubem Alves (Boa Esperança), Hélio Pellegrino (Belo Horizonte), entre outros.

Se a saudade é um tema recorrente nas suas crônicas, certamente é porque muitos deles se mudaram para outras praças. Mesmo os que ficaram têm saudades, nem que seja saudade como projeto literário. Se mais nomes não ficaram registrados nos anais da crônica é porque não se mudaram para o Rio de Janeiro ou São Paulo. Desculpem a ironia!

Tá, vamos reconhecer: Guimarães Rosa (Cordisburgo) não se dedicou à crônica. Nem o Mário Palmério (Monte Carmelo), nem o Darcy Ribeiro (Montes Claros), mas tenho minhas dúvidas no caso da Carolina Maria de Jesus (Sacramento): seriam crônicas muitos dos seus escritos? Crônicas da miséria da cidade grande, da luta pela sobrevivência, crônicas dos despossuídos, dos explorados, com uma profunda visão de classe.

Não vamos deixar passar: a crônica aproxima-se da memorialística, que o digam Adélia Prado (Divinópolis) e Pedro Nava (Juiz de Fora). Os mineiros adoram contar histórias de família, causos do passado, das férias na fazenda, falar das festas e quermesses nas cidades do interior. Fernando Sabino trouxe o pitoresco para dentro da crônica e brincou com o ritmo da cidade grande. Paulo Mendes Campos trouxe a poesia e a nostalgia. Drummond lidou bem com o passado, com a denúncia social e com a “descoberta do mar” como metáfora da descoberta do mundo.

Para o professor Antônio Cândido: “A crônica não é um gênero literário maior”. E completou: “Graças a deus, porque assim ela fica mais perto de nós”. Para o jornalista Lira Neto: “O valor da crônica residiria exatamente na sua despretensão, na sua ligeireza, no seu coloquialismo, na sua mais absoluta sem-cerimônia”.

A crônica é um gênero literário do chão de fábrica, do fim de tarde na roça, das primeiras horas do dia, das madrugadas frias, da espera no ponto de ônibus e da ironia a qualquer instante, feita para desbancar o político oportunista. É gênero para ser lido no intervalo do almoço, durante a pausa para o cafezinho, na hora do lanche da tarde, repleto de quitandas. Na verdade, a crônica não tem hora, só não pode ser deixada de lado, senão o jornal vai para a reciclagem ou para embrulhar a compra no mercadinho e a crônica vai embora. Desde que não sirva para embrulhar os leitores, que são vigilantes, perspicazes e não perdem o trem.

Certa vez, uma amiga me disse que, quando se entende a crônica como uma narrativa informal, como expressão do cotidiano, então essa peculiar forma de ver e apreender o mundo tem tudo para ser um sucesso nas redes sociais. Eu concordo, mas insisto: qual é o futuro da crônica num mundo cada vez mais informatizado, apressado e efêmero? Terá leitores? Com certeza! E os escritores e as escritoras de Minas Gerais têm muito a oferecer nesta fase técnico-informacional em que vivemos. Enfim, se nós quisermos encontrar a mineiridade nos tempos atuais, ela também está nas crônicas publicadas nos meios digitais.

Texto publicado originalmente na Revista Convergência (da Academia de Letras do Triângulo Mineiro - ALTM), Ano 52 - n.º 33 (Digital), Novembro de 2022.