A Mágica de Montaigne: o amor pelo Ensaio
Em tempos bicudos, quando opiniões divergentes acabam sendo elencadas no rol dos crimes comuns com a mesma facilidade com que se colhe uma maçã no pomar do quintal, a lembrança do ensaísta Montaigne sempre é bem-vinda. Montaigne encontra-se distante dos meus escritores preferidos. Sequer tenho por ele a consideração com que zelo pelos escritores russos do século XIX ou mesmo pelos historiadores que me oferecem arsenal para a produção de aulas. Não costumo lê-lo com regularidade, embora sempre revisite o calhamaço d'Os Ensaios completos para aprender um pouco mais sobre os pontos de vista de um autor notável do século XVI. A diversidade de temas e a forma ensaística para lidar com cada problema, os quais eram abordados com diversas interpolações de escritores antigos e contemporâneos, fazem da alma de Montaigne uma espécie de farol da tolerância que nos ajuda a navegar pelos mares procelosos dos dias atuais.
Cada interpretação gera um mal-estar; cada opinião parece colocar em risco uma etnia a mais; cada comentário sincero parece furtar às minorias raciais ou sexuais o direito de existência. Abordar temas com a leveza na escrita e a profundidade adequada que nos permitam refletir para horizontes mais seguros, não é tarefa fácil. Dependeremos dos grandes ensaístas que saibam remontar argumentos sob os mais diversos ângulos. Montaigne é desses mestres cuja riqueza descobrimos muito depois de encerrados os estudos universitários. Ensaiar sobre a vida, o comportamento e o ser humano não se põe como prática benquista pelos áugures acadêmicos rendidos à monotonia das discussões monográficas. Pode parecer um certo contrassenso, mas dificilmente os defensores do livre saber encontram guarida nos muros universitários.
O ensaio como fruição da inteligência efervescente! Isso sim me interessa! Discussões recheadas de pontos de vista estanques, trincheiras ideológicas e jogos de poder cansam com o tempo. Abafam a criatividade do texto livre, reduzem a conversa franca e eliminam do cenário epistemológico a tela multicolorida do conhecimento.
No prefácio do romance de formação chamado "Demian", o escritor alemão Hermann Hesse foi ao cerne do problema que colocamos aqui. No início do relato das experiências de Emil Sinclair, o autor enfatiza que chegou à maturidade sem precisar tanto dos livros e dos argumentos. Procura encontrar a verdade que flua da história refletida da própria vida. As verdades da existência só podem ser encontradas no universo pessoal de cada um através da descrição sincera dos acontecimentos que deram sentido à história pessoal. É preciso sinceridade para reconhecer o que fez, o que deixou de fazer e em quais pontos errou. Mesmo assim, o homem velho que tenha atingido a sabedoria faz da conclusão de Hermann Hesse o seu próprio cântico: ainda não cheguei a qualquer conclusão decisiva sobre mim ou o mundo, mas busco as respostas que deem fio à minha história. O ensaio pode ser esse veículo com o qual conseguimos desenhar as linhas principais do painel que forma a própria inteligência. Michel de Montaigne apontou o caminho condizente com as necessidades de expressão do homem velho. Chego aos quarenta com a necessidade de expressar minhas ideias, tendo como principal beneficiário a mim mesmo. Não tenho leitores ou qualquer relevância. Escrevo porque quero. E porque acho que posso dizer algo, senão para benefício de quem me acompanha, pelo menos em favor do meu próprio desenvolvimento. Aprendi com Montaigne de qual tipo de material se faz o homem que busca o amadurecimento.
O gênero literário do ensaio encontra eco quando se tem em mente algumas impressões rápidas sobre o mundo, embasadas em argumentos que remetam ao comportamento na psicologia, na história e na literatura. Trata-se de um gênero fantástico para dar vazão à intuição.
Nascido em 28 de fevereiro de 1533 no Castelo Saint-Michel de Montaigne, filho de uma família nobre cujos ascendentes remontavam franceses e portugueses, o menino Montaigne teve acesso ao mundo da cultura desde cedo. Seu pai arranjou-lhe um preceptor alemão que falava apenas em latim com a criança. Habituou-se à reflexão desde à tenra idade, fazendo com que as brincadeiras de menino logo se misturassem aos livros, por meio dos quais ganhava acesso contínuo à nata do pensamento de sua época, bem como ao passado clássico. O latim lhe era tão familiar quanto o próprio francês. A impressão que se tem é que o jovem Michel de Montaigne já fora talhado pelo pai desde o nascedouro para tornar-se um escritor importante. Meninos da mesma idade, ainda que oriundos da nobreza, se sentiam desconfortáveis na presença de um colega tão reflexivo e metódico. A disciplina dos escritores, que muita das vezes homens vocacionados só descobrem no outono da vida, era para Michel de Montaigne uma parte tão natural da vida quanto a luz do sol refletida sobre a superfície das águas.
Ingressou como estudante no prestigiado Colégio de Guiana, aprofundando sobremaneira a formação humanista para a qual já tinha inclinação como legítimo vocacionado. Mais tarde, enveredou pelos cursos de jurisprudência, também conhecido como Direito se o atualizarmos para os dias atuais. Trabalhou como magistrado em um província e chegou a contrair matrimônio. Quando falece o pai, em 1658, Montaigne herdou propriedades riquíssimas, as quais lhe garantiram uma condição de vida extremamente abastada. A sobrevivência material nunca lhe fora um empecilho. Tinha a inteligência liberta para se dedicar à reflexão no campo das humanidades.
Observador multifocal, Montaigne manteve ao longo da vida o espírito cético e cosmopolita para que pudesse enxergar a realidade da maneira mais objetiva possível. Poderíamos dizer que tivesse sido um pioneiro do Iluminismo francês, dois séculos antes do seu nascedouro para o cenário cultural da Europa. Criou o ensaio como um gênero literário próprio, talvez situado no meio-termo entre o tratado científico e a conversa mais livre entre amigos. Gostava mesmo era do debate franco, da livre circulação de ideias e da comodidade para escrever sobre um assunto assim que a intuição lhe soprasse as primeiras linhas na imaginação. Aliás, todo o trabalho de Montaigne soava como uma ode à imaginação. Em vez de usá-la apenas para fabulação de estórias fictícias, o ensaísta francês descortinou um caminho fantástico explorado mais tarde por escritores do mais rematado talento. O século XX brindou-nos com ensaístas excepcionais como Isaiah Berlin, Edmund Wilson, José Ortega y Gasset, Lionel Trilling e T.S. Eliot. Esses são apenas alguns que me ocorreram agora num átimo de lembrança. Todos eles se colocam como herdeiros da façanha de Montaigne. A façanha em escrever com profundidade em poucas páginas; alguns em poucas linhas. Que dizer da fluidez de Edmund Wilson para contar a história dos socialismos através dos seus mais célebres personagens desde o século XIX? E o que dizer do espanhol Ortega y Gasset? Dotado de um estilo de escrita singular que transitava entre o mármore romântico da erudição e a prosa sincera ao pé do ouvido, Ortega y Gasset era um ensaísta nato, possivelmente capaz de soltar elogios do próprio Montaigne.
Presidente da Câmara de Bordéus (1581-85) após uma vida de viagens para vários países europeus e muitas condecorações de reis, Montaigne voltou ao seu reduto natal para revisar os seus Ensaios. Distinguiu-se como livre pensador do humano, despreocupando-se com maiores rigores lógicos típicos dos tratadistas formais. Viveu e morreu como quis. A mágica de Montaigne consiste justamente no elán que o pensamento livre provoca naqueles que se achegam para aprender e ensinar sem ideias preconcebidas. O caminho se faz ao caminhar, diria o velho poeta espanhol Antônio Machado. O ensaio é o brilho do pensamento que se cria na hora em que é pensado. Com base no esteio de algumas linhas de argumento, o tapete das palavras se deixa formar como uma obra nas mãos de um habilidoso tapeceiro. Não é preciso manter uma lógica coerente demais, tampouco se faz necessário coordenar uma ideia à outra como se estivesse arrumando o prumo de uma construção antes de levantar as paredes. O ensaísta só precisa deixar o coração livre para que o fluxo de ideias tome o caminho que o vento momentâneo permitir. A lógica está lá em seu devido lugar, mas como auxiliar da expressão, e jamais como uma rainha tirânica que determina ordens inflexíveis. Escrever livremente para dar fio ao pensamento, contribuir para o aperfeiçoamento próprio e, no que for possível, iluminar dúvidas de outras pessoas.
Michel de Montaigne fez da sua criação máxima - dezenas de ensaios espalhados pelos mais diversos temas - uma fonte sempre profícua para a busca de novos entendimentos acerca do mundo e das coisas. É o que fica. Não precisamos mais do que isso: enfrentar velhas ideias iluminando-nas com outro farol de entendimento. Ver mais uma vez o que tinha sido visto de relance, mas agora para enxergar e ressignifcar o existente no mundo. Fazendo assim, acrescentamos um pouco mais em nós mesmos na difícil trilha da evolução pessoal.