Ponto de vista

 

Uma história descrita, como um romance de um autor literário, embora em sua forma seja absolutamente idêntica para todos os leitores, em seu significado poderá ter tantas interpretações quantas forem as pessoas que a leem. O texto escrito é filtrado pela mente de cada um de acordo com os elementos condicionantes, da cultura, das experiências de vida, do temperamento, do viés ideológico, religioso e político de cada leitor. O vilão da história, para alguns, pode ser a vítima ou o herói para outros. Um lance que emocione alguns pode ser piegas ou clichê para outros. Um ato de violência pode ser recriminado ou enaltecido, dependendo do ponto de vista de quem lê.

 

E ali existe, sobretudo, a intenção do autor, cuja expressão no texto foi também condicionada pelas suas referências pessoais na forma de modelos, arquétipos e paradigmas construídos ao longo de sua existência e forjados na sua personalidade. Em algumas expressões artísticas, entender a intenção do autor é o desafio dos estudiosos do ramo, como em poesias, pinturas, músicas, esculturas e arquiteturas.

 

 Os processos que ocorrem no contexto do dia-a-dia da vida, todos eles envolvendo relacionamentos, são como romances, escritos por uns e interpretados por outros, cada um exercendo seu próprio julgamento - fundamentado em suas características pessoais, sua história de vida e seus valores - identificando méritos ou culpas sem levar em conta o ponto de vista ou a intenção do outro; ou seja, sem qualquer empatia.  

 

Conforme entendidos pelo ego humano, os processos da vida refletem realidades que, embora relativas ao contexto da existência de cada personagem, como todas as realidades, são tidas como absolutas, cujas evidências “inquestionáveis” nascem do julgamento parametrizado nos valores individuais de cada um.

 

Portanto, assim como nos romances, os processos da vida como vistos pelo ego inconsciente, têm tantas interpretações quanto a quantidade de apreciadores que ousam definir o caráter, os sentimentos, a história de vida e os valores que induzem seus personagens a agir desta ou daquela forma. Essa multiplicidade de interpretações e respectivas reações, todas elas convictas, criadas pelo ego sobre o comportamento humano é o que gera o caos: discordâncias, rupturas, mágoas, vinganças, ofensas, agressões físicas ou morais e até mesmo guerras.

 

O julgamento que as pessoas fazem de outras geralmente implica o uso do verbo ser: “esta pessoa é isto ou aquilo”. Se a pessoa “é”, pressupõe-se um estado de ser permanente; caso contrário a formulação do julgamento seria na forma: “esta pessoa está assim...”, dando a ela a oportunidade de no passado ter estado de outra forma, bem como de estar diferente no futuro, o que conferiria ao “réu ou ré” um status de pessoa em constante transformação, em evolução. Embora mais justa e lógica, esta avaliação ainda pressupõe que quem julga é capaz de ter uma completa compreensão da motivação que leva o julgado a agir desta ou daquela forma, o que asseguraria a quem julga o direito de julgar.

 

A única forma moralmente adequada e psiquicamente importante e necessária de avaliarmos o comportamento alheio em relação a nós é observando, da forma mais honesta possível, o tipo de efeito emocional que este comportamento causa em nós, seja este efeito agradável ou desagradável. Essa atitude saudável significa que estamos percebendo a nós mesmos como agentes de uma reação psíquica real e inequívoca, seja ela justa e adequada ou injusta e incoerente. Não há o que contestar, julgar ou negar numa reação psicológica (raiva, medo, mágoa, etc) a uma ação alheia, pois ela é real e perfeitamente perceptível em suas características de intensidade, qualidade, duração, etc.  Ela é a única realidade objetivamente constatável na relação psíquica entre pessoas.

 

Esta observação consciente do que ocorre com nossas emoções retira o foco de nossa atenção do “agressor” desviando-o para nós mesmos, o único alvo possível de qualquer providência que queiramos tomar em relação ao sentimento percebido, tenha ele se originado de uma agressão intencional ou de qualquer outra intenção não agressiva.

 

Uma coisa é dizer: “você me agrediu! ”, o que é um julgamento sumário; outra é dizer: “eu me senti agredido” - tenha o outro ou não tido a intenção de agredir. Direcionar o julgamento que fazemos da ação de uma pessoa para nós mesmos, como agentes de uma reação, desobstrui os canais de comunicação interpessoais e favorece a conciliação e a harmonia dos relacionamentos. E, o mais importante, é o pressuposto para o autoconhecimento através de um olhar focado nas reações do próprio ego.