Educação e afetividade
Quando se pensa em escolarização de alunos nos Ensinos Fundamental e Médio, um dos temas mais recorrentes aborda a necessidade de motivá-los constantemente através de ações pedagógicas que lhes retenham a atenção. Trata-se de uma tarefa semelhante a um dos doze trabalhos de Hércules. Apenas semideuses colocam-se diante da tarefa com alguma chance de sucesso, embora saibamos como a área educacional – a despeito da desvalorização de sempre – está repleta de profissionais que tentam desempenhar as suas funções com a maior lisura possível. A questão é que o escopo do problema transcende as possibilidades imediatas do chão da escola.
Os alunos do século XXI têm acesso direto à informação. Qualquer smartphone no bolso carrega em si um potencial de conhecimento milhares de vezes maior do que o da antiga biblioteca de Alexandria. O conhecimento encontra-se disponível de um tal modo que qualquer aula de YouTube demonstra maior profundidade expositiva do que o costumeiro “cuspe e giz" das rotinas escolares. O acesso à informação está disponível. O professor, hoje, não goza do status de detentor de conhecimentos exclusivos que só podem ser acessados no templo da sala de aula. As informações relacionadas às mais diversas formas de saber encontram-se disponíveis ao alcance da mão. Um aluno que queira saber a respeito da estrutura celular pode aprender em um minuto; se outro tiver curiosidade em torno do período de construção da Muralha da China, basta uma rápida busca pelo celular. Zás! Às vezes, pouco importa o extrato social do qual emergiu o discente: estudantes mais abastados e os carentes acabam sendo expostos a uma relativa facilidade no acesso ao conhecimento. Ora, se os saberes contam com amplo acesso hoje, graças à estrutura da Internet, algumas perguntas pedem passagem. Qual seria a função da escola atual? Como os professores devem ensinar? Quais os saberes devem ser abordados e como? A estrutura curricular das disciplinas clássicas merece atenção? Como os professores devem se colocar em sala de aula para atraírem a atenção dos alunos?
Das cinco perguntas enumeradas acima, o presente ensaio buscará algumas linhas de resposta para a última. A era tecnológica do século XXI impõe uma nova relação entre professor e aluno na hora de transmitir conhecimento. Apesar do acesso facilitado à informação, ainda perduram diversas desigualdades econômicas entre as pessoas, sendo a desigualdade digital apenas uma expressão de um conjunto maior. Nesse sentido, o professor contemporâneo chega diante dos alunos já sabendo que não é mais o detentor de uma revelação do saber. É apenas mais um mensageiro, às vezes completamente desmotivado e desatualizado, da escolarização. No entanto, alguns professores, por deliberação própria ou mesmo de maneira inconsciente, enxergam na construção de vínculos afetivos a ponte sobre a qual pode se estabelecer uma relação harmoniosa com os discentes.
A afetividade é a construção de vínculos marcados por simpatia. Através de atitudes de generosidade, estilo de fala elogioso, fartura de sorrisos ou qualquer outra ação atravessada por doação carinhosa de sentimentos, o professor busca atrair para si uma atenção maior do que a média. A afetividade também pode ser considerada uma espécie de retórica, na qual se tenta a persuasão dos alunos para que eles reajam de acordo com a vontade do professor. A aproximação afetiva na qual se procura levar em conta os sentimentos dos alunos e a forma como enxergam o mundo são atributos importantes de uma relação que busca a confiança entre professor e discente. A maioria dos professores pratica a afetividade em algum nível.
Até a década de 1990, quando a educação básica de ensinos fundamental e médio ainda não havia sido considerada universal pelas políticas públicas brasileiras, a figura do professor mero reprodutor de conteúdos era bem mais fácil de encontrar. Muitos deles entravam em sala de aula de cabeça baixa, identificavam alunos como números pela chamada (sem qualquer preocupação com a individualidade de cada um), ministravam assuntos que ressoavam o mero decoreba para a prova bimestral e, depois disso, simplesmente sumiam da lembrança do educando. Quanto mais antigo na profissão, menor o dispêndio de interesse no aluno em si. Muitos dos homens e mulheres que hoje estão acima dos 35 anos, cuja trajetória escolar ocorreu entre os anos 1980 e 1990, sequer se lembram do nome da maioria dos professores. Cada um deles pouco significava no conjunto dos tormentos adolescentes. Quando um deles resolvia se abrir um pouco mais para discorrerem sobre o futuro, o mercado de trabalho ou a vida familiar, a experiência acabava deixando uma marca na memória de longo prazo de vários alunos. Tratava-se de um momento de rara fruição dentro do ambiente escolar.
Nos dias que correm, todavia, há uma supervalorização do afeto. O tema da inclusão encontra-se em voga há duas décadas, contribuindo para que a afetividade seja entronizada como rainha sob os domínios da escola. Não restam dúvidas de que o ensino escolar desprovido de afetividade não encontra mais guarida nos tempos atuais. Aliás, nunca se falou tanto em expressões como “foco no aluno", “diversidade cultural”, “empatia" ou “ensino para a cidadania”. Tudo isso é muito louvável e merece atenção de qualquer um que trabalhe na área educacional, sobretudo em meio a um mundo que tenta se reerguer dos escombros da pandemia de covid-19. No entanto, é importante que uma ressalva seja colocada: entenderemos a construção de relações afetivas na escola como um meio para uma finalidade maior ou como um mero fim em si mesma? Se a afetividade for um fim em si, então a tendência é a de que os professores abracem-na para sobreviver em sala de aula. Basta ser simpático para que os alunos não importunem em demasia um profissional que se desdobra em dois cargos de regência (no mínimo), compromissos familiares, obrigações domésticas e toda uma sorte de tarefas. Sim! A afetividade pode facilitar o trabalho docente como um escudo para proteção contra as flechas inimigas da dispersão discente. Nesse caso, em vez da afetividade cumprir um papel importante para ajudar o aluno em seu processo de formação, acaba se tornando um mero véu de simpatia com o qual o professor esconde a sua verdadeira face. No jogo das hipocrisias sociais, a afetividade do professor com o aluno só contaria como mais uma peça para permitir que o docente sobreviva à rotina. Para o aluno, ficaria ao fim do ano aquela impressão fugidia: “Ah, o professor Fulano é muito gente boa.” E o ciclo recomeçaria no ano seguinte.
Vejam bem! Precisamos colocar algumas nuances nesse entendimento. Associar a educação escolar à formação de afetos não é algo ruim em si mesmo. Na maior parte das vezes, agir com afetividade pode representar a diferença entre a vida e a morte se o professor estiver atuando em uma comunidade marcada por violência, abandono parental e criminalidade. Em muitos casos, a relação afetiva se transforma em uma blindagem a partir da qual um educador viabiliza um trabalho mínimo. Nas linhas a seguir, discorreremos sobre os limites da afetividade na construção da educação.
Na cidade-estado de Atenas, por volta do século IV a.C., o problema da educação ganhava contornos muito distintos da forma como o compreendemos hoje. Os jovens da aristocracia eram educados dentro de uma concepção pautada pela formação (Paideia) integral do ser humano. Importava apresentar ao jovem as bases a partir das quais se desenvolveria suas concepções morais, os limites éticos da relação entre vontades individuais e bem-estar coletivo, além de uma leitura apurada acerca dos mais diversos problemas humanos e sociais. Era um estilo de educação que ampliava horizontes morais no jovem para que ele bem pudesse regozijar das alegrias de uma vida pautada pela moderação. Formar o ser humano era muito mais do que ensinar uma profissão prática, como carpinteiro, escultor ou comerciante. A educação ateniense tinha como horizonte uma finalidade nobre, a saber, a busca pela felicidade. Ser feliz era aprender a viver bem com o próximo e também para consigo mesmo. A Paideia grega era destinada a uma pequena elite que futuramente conduziria os rumos políticos da cidade, de modo que quanto mais abrangente fosse a formação em torno dos problemas humanos, maior êxito futuro na condução do bem-estar coletivo.
Não precisamos reconstruir a Atenas do século IV a.C. em pleno século XXI, mas sim retermos o que nos parece o néctar dos deuses nesse tipo de educação: a ideia de que a formação do indivíduo precisa carregar dois âmbitos complementares – a realização das potencialidades pessoais e o bom convívio com o meio circundante. O homem virtuoso tem uma disposição ética para agir persistentemente em direção do bem. Quando pensamos em realização das próprias potências, nos referimos à capacidade de expressão da própria inteligência. Alguns alunos são mais propensos à fala, outros à escrita, enquanto pouquíssimos são mais afeitos ao desenho. Ainda existem aqueles que, mais sinestésicos, demonstram maior familiaridade com a expressão corporal. Cada forma de autoexpressão se refere a um modo peculiar de se colocar no mundo. Cada aluno carrega em si algumas potencialidades. Nem todos demonstram facilidade para matemática ou ciências. Muitas das vezes, os talentos individuais não passam no radar das disciplinas escolares. Alguns são tão imaginativos que já foram abduzidos para a boa literatura ou para a filosofia, ainda que não sejam discentes tão competentes em termos de nota nas matérias.
Na maior parte das vezes, radiografar o aproveitamento intelectual de um aluno por meio das notas que ele conseguiu auferir durante um bimestre letivo é uma tarefa enganadora. As inclinações do intelecto são muito mais amplas do que sinalizam os ditames curriculares de um conteúdo. As boas notas sinalizam crescimento intelectual? Nem sempre. Às vezes, só demonstram como um aluno aprendeu a responder questões. Se os conteúdos não tiverem meio de comunicação com os seus interesses, as notas não chegarão a refletir crescimento da inteligência. Pelo contrário. O ambiente escolar pode, muitas das vezes, ser contraproducente ao desenvolvimento da imaginação, da criatividade e do intelecto. Pois bem! O que o afeto tem a ver com tudo isso?
Os afetos podem ser um grande chamariz a partir do qual um aluno ganha confiança para expor, em público, suas potencialidades. Os professores elogiosos, simpáticos e dispostos a falar sobre temas de interesse dentro do universo cultural adolescente acabam ganhando uma dose de respeito bem maior do que aqueles interessados apenas em cumprir mais uma rotina de trabalho. No entanto, o afeto não pode ser visto como um fim, mas como um meio para que o aluno busque pontos mais elevados no seu desenvolvimento intelectual.
É preciso que haja estímulo para que os jovens expressem suas próprias ideias, fazendo da escrita - por exemplo - um meio natural de elaboração dos próprios argumentos. Alguns falarão sobre a forma como enxergam o mundo através de desenhos ou mesmo expressões teatrais. Não há problema nenhum nisso! Porém, há de se enfatizar como o poder emanado pela linguagem escrita consegue dar fio e razão ao pensamento. Outra forma de desenvolvimento pode ser vista na comparação entre duas notícias de jornal, cada uma com um viés interpretativo distinto. O aluno rapidamente perceberá que, no mundo real, qualquer fato pode receber leituras distintas. O hábito de escrever sobre si em um diário também carrega o fio do estímulo à própria auto-observação. Transformado em um hábito, o diário força o aluno a desenvolver uma noção de progresso próprio. Quem se habitua a escrever com sinceridade aprende rapidamente a se enxergar, entendendo as trilhas percorridas no desenvolvimento da própria maturidade. Quem não se deparou com a experiência de olhar para um escrito feito dois ou três anos antes e dizer: "Como pude pensar essas besteiras no passado?" É assim que a inteligência se desenvolve. Ainda bem.
Geralmente, os adolescentes respondem melhor ao afeto básico, considerando-o como sinônimo de amor e preocupação. O afeto básico pode ser descrito pelo tom elogioso com que um professor estabelece diálogo com um aluno. O mestre oferece risinhos, elogia a coloração do cabelo das meninas, elogia o tom de pele ou mesmo a letra cursiva. Qualquer aspecto que mereça atenção, seja física ou mental, acaba sendo superlativizado em uma torrente de predicados. O professor afetivo que se comporta desta maneira ganha elevadas chances de ser lembrado pelos alunos porque sabe jogar o jogo dos afetos; sabe falar aquilo que jovens em idade de afirmação querem escutar. O tom aquoso da conversa afetiva facilita a vida do professor ao mesmo tempo em que cria laços na lembrança do adolescente.
Nesse âmbito, não se fala em progresso intelectual. A simpatia excessiva e o elogio caudaloso tornam-se uma estratégia retórica de convencimento para o professor ao mesmo tempo em que ressoa para o aluno como se fosse o pináculo do amor professoral. Nada disso! Às vezes, existe mais pose do que conteúdo real nesse processo.
A superação da mera afetividade se faz necessária quando falamos em progresso intelectual. Se as simpatias afetivas construídas em sala de aula auxiliam o professor na tarefa de cumprir mais um dia de trabalho, não se pode deixar que os horizontes dos afetos se percam em mera postura defensiva para os docentes. Ser simpático e acolhedor, flexibilizando resistências e deixando o aluno mais flexível aos conteúdos ministrados, revela-se como alternativa de captura de atenção em meio a um mundo contemporâneo recheado de luzes, tecnologia, barulho e comunicação instantânea. O bom e velho calor humano ainda resiste como método a partir do qual a construção de saberes encontra uma trilha menos cerrada em sala de aula. Que se entenda de uma vez por todas! Ajudemos nossos alunos na difícil tarefa de construção de uma autonomia intelectual que conduza-os em direção ao auto-didatismo. Que possam ser flexíveis a ponto de fazer do aprendizado mais do que uma rotina constante, mas também um prazer que se molda com a mesma facilidade com que uma criança trabalha a massa de argila na fase pré-escolar.
Adaptáveis às realidades em constante mutação, os afetos poderão ser superados para que se dê vazão às asas libertadoras da própria autonomia. Quando isso acontecer, o ideal grego do homem formado para o mundo terá a sua atualização compatível com as exigências do dinâmico século XXI.