A lisonja conduz aos enganos
Em geral, o estado mental em que nos encontramos contagia a forma como enxergamos a realidade. Se estivermos imersos em uma sensação de abandono, qualquer tipo de companhia parecerá a melhor que possamos ter. Em caso de ansiedade generalizada para realizar algo, seja casar-se, formar-se na universidade ou comprar um imóvel, nossa expectativa ansiosa pode fazer com que a sensação de pressa nos conduza no caminho da precipitação. Existe a propensão clara de que o quadro mental interfira no julgamento de qualquer assunto, fazendo com que nos desprendamos da objetividade. Qualquer um pode deixar-se prender na rede dos enganos, não importa quanta experiência tenha.
A consciência filtra a interpretação do mundo. Como não somos entidades meramente racionais, os afetos e sensações compõem uma parte importante tanto das decisões quanto da leitura da realidade. Os acontecimentos do mundo, em geral, não são bons ou maus. O mundo simplesmente é indiferente à nossa forma de pensar, seguindo um curso de neutralidade que se mostra arredia à forma como refletimos. Enxergar objetividade nas coisas exige domínio sobre a os sentimentos pessoais, no sentido da busca pela modulação dos efeitos subjetivos que distorcem a interpretação das coisas. Enxergar o mundo com essa objetividade racional é uma das tarefas mais difíceis impostas ao ser humano. A busca pelo distanciamento necessário à boa leitura da realidade forma um problema de resolução muito difícil. Numerosas pessoas sequer enxergam isso como um problema. Acham que os próprios corações encharcados de paixões, ódios reprimidos, desfaçatez e inveja fazem com que enxerguem o mundo com objetividade. Não, não e não! Os imensos perigos envolvidos nessa questão passam despercebidos e, quando as consequências revelam tons dramáticos, talvez possa ser tarde demais reconsiderar atos passados.
Numa das grandes peças de William Shakespeare, "Rei Lear", um monarca envelhecido e saudoso chama as três filhas para que venham a ter com ele. Abatido pela carência de um homem lonjevo que já sente o hálito da morte bafejando em seu rosto, rei Lear faz espalhar entre os súditos que se resignaria do trono para repartí-lo entre as três filhas. O velho desejava passar os últimos dias no descanso em alguma residência oficial repleta de bosques, pomares e lagos que lhe resgatassem um sentido de contemplação. Permanecer alijado das questões delicadas relacionadas à condução do Estado seria um troféu para coroar a velhice de um monarca satisfeito com tudo aquilo que já havia construído. Captadas pela órbita da cobiça, duas das filhas do rei tratam o pai com lisonjas intermináveis. Falam como estariam dispostas a morrer se isso significasse mais dois minutos de felicidade para o pai. Em um linguajar adocicado a ponto de levar qualquer um a um estágio de pré-diabetes, cobrem o pai de elogios. Desnudam todo tipo de conversa lisonjeira para sedução de um homem carente, cuja sensibilidade já estava predisposta à armadilha que apenas a lisonja sabe produzir. Colocam a figura paterna como a única digna de honra em todo mundo; encobrem a ambição através de refinados subterfúgios para conduzir o homem à trilha dos enganos. O rei Lear, despido do senso de objetividade por causa do abatido estado mental, confia às duas filhas uma parte honrosa da herança. Todavia, faltava ainda interlocucionar com a terceira delas, Cordélia.
Ao contrário das duas irmãs, a jovem Cordélia colocou a língua na altura exata do coração. Eis a pergunta lançada em face pelo rei carente: - "Filha, você ama o seu pai?". Cordélia não titubeou ao falar que prestava honras ao pai na exata medida em que uma filha deveria fazê-lo, sem maiores proporções que denunciassem falsos sentimentos. Rei Lear também esperava da terceira filha o linguajar gorduroso dos mentirosos, mas Cordélia não pode satisfazê-lo neste aspecto. Disse que amava e respeitava o pai por tudo aquilo que ele representava, sem todavia enchê-lo de lisonjas que só servem para tropeço dos presentes. Lear, nervoso porque incapaz de entender texturas que diferenciem fantasia e realidade, lançou suas flechas contra a filha. Chamou-a de ingrata e sorrateira, retirando-lhe a parte devida da herança. Já em idade avançada, tomado pelo apetite voraz dos elogios, o velho Lear não pode perceber que depunha contra a única filha que de fato o amava. O rei de França, ao presenciar a forma com que os lábios de Cordélia derramavam a água mais límpida da sinceridade, logo entendeu que uma mulher daquele nível não se encontraria em qualquer lugar, mesmo dentro do palácio dos mais distintos reis. Pediu-a em casamento, retirando-se de cena com a nova esposa até o fim da peça.
O resultado não poderia ser outro. As duas filhas lisonjeiras do rei Lear logo se voltaram contra o pai. Descobriram-lhe as reais intenções assim que colocaram as mãos no espólio do governo, relegando ao velho uma propriedade distante em que permaneceria em uma espécie de prisão domiciliar. O país entrou em guerra civil por causa do desatino de um rei carente. Souberam ocultar as intenções debaixo de uma espessa camada de falas elogiosas, cujas características fundamentais sempre se pautaram pelo ocultamento dos sentimentos reais. O rei Lear ainda presenciou, em vida, as consequências advindas do erro fatal de avaliação acerca do caráter de duas filhas. Desejoso de lisonjas, faltou-lhe a percepção de que palavras elogiosas nunca faltaram na boca de mentirosos e manipuladores. Como dito acima, nossas disposições mentais interferem na forma como operamos a leitura da realidade. Soterrado pelo sentimento de tristeza e abandono, o rei ofereceu aos lisonjeiros as condições ideais para que lhe armassem uma armadilha definitiva. Ao final da vida, Lear percebeu o quanto fora injusto com Cordélia, uma filha íntegra que sabia usar as palavras para descrever realidades objetivas. A mulher honesta não carrega obrigação em construir o castelo de areia dos enganadores.
O velho monarca acompanhou a destruição do próprio reino em uma guerra intestina entre as filhas, cada qual acompanhada de um genro ambicioso. Compreendeu que as palavras lisonjeiras de duas filhas levaram-no ao caminho dos enganos. Deixou-se adocicar pelo mel que parece transbordar nas palavras elogiosas. O ensinamento deixado pela história de William Shakespeare deixa claro que nem sempre a simpatia se faz acompanhar pelo caráter. Pessoas francas que não gostam de conversas cujo fluxo satisfaz interesses subterrâneos, como Cordélia, podem ser consideradas antipáticas e pouco afetuosas. Trata-se, claro, de uma miragem produzida por aqueles que se deixam vencer pelas carências. As melhores pessoas com quem podemos lidar são justamente aquelas que fazem com que a língua não exceda o que sente o coração. Pessoas francas não precisam ser frias ou insensíveis, mas tornam-se bem mais confiáveis do que as outras quando procuram traçar relações com os outros sem aferição de vantagem própria.
Já diziam as Escrituras que não há nada oculto que não seja revelado. Rei Lear pagou pelo erro de avaliação com a própria vida. Shakespeare apresentou em uma de suas obras-primas a forma como a atitude lisonjeira pode envederar-nos, até mesmo os mais sábios, pela trilha dos desenganos.