O ouro do silêncio
Um dos requisitos mais importantes para quem busca uma vida de proximidade com os estudos é o silêncio. Não que seja possível passar um dia silencioso completamente absorto em um livro para que a sensação de ter estudado valha a pena. Longe disso! Na maioria esmagadora das vezes, a quantidade de obrigações impostas pelo cotidiano profissional e familiar não permite que a quietude faça morada na rotina. Por isso que torna-se necessário manter um foco vigilante para que a busca pela formação da própria cultura ganhe terreno dentro dos afazeres apressados de cada um de nós. Sim, caro leitor! É possível tomar medidas simples que permitam ao espírito enamorado pela vida cultural uma abertura consistente para o conhecimento. Esse ensaio pretende discutir apontamentos que iluminem caminhos para o desenvolvimento da vida intelectual, esteio sobre o qual se impõe a conquista do silêncio.
Sem silêncio, nada pode ser criado ou refletido. O silêncio é a matéria-prima do pensamento, sendo tão ou mais importante do que a tonificação da linguagem. O domínio do silêncio se mostrava mais fácil para algumas personalidades que estavam imersa na ociosidade. Reflitamos, por exemplo, no trabalho criador de escritores russos do século XIX. Muito do notável talento russo com as letras pode ser creditado aos indivíduos oriundos da aristocracia agrária. Ivan Turgueniev e Leon Tolstói nasceram no berço dourado das famílias nobres, de modo que sequer levantavam a sobrancelha frente à aridez da luta pela sobrevivência. Tinham à disposição uma enorme extensão de terras, as quais eram laboriosamente cultivadas pelo suor de centenas (às vezes, milhares) de servos imobilizados pelos compromissos feudais. Tolstói sentava-se à mesa de mogno no centro da biblioteca, dedicando-se à escrita por horas a fio, embalado numa concentração profunda, sem interrupções, sem obrigações externas, como se o fio de toda a existência passasse pela letra cursiva feita pela caneta-tinteiro em contato com o papel. Imerso na bonança material, a inteligência do gênio encontrava morada no universo paralelo do seu reino interior. O ócio oferecia as condições adequadas para que o silêncio criativo produzisse os mais belos frutos. Poderíamos sentir o ar empesteado do aposento em que Tolstói trabalhava. O cheiro de mofo recortando as narinas, acompanhado de uma visão turvada pela penumbra das cortinas fechadas. Dois candeeiros próximos à mesa de trabalho, repleta de livros velhos, emprestava ao escritor o mínimo necessário de luminosidade para que a pena invadisse os espaços em branco do caderno.
Outro escritor russo de envergadura, Fiódor Dostoiévski também se beneficiava do silêncio para a composição de seus personagens inesquecíveis. Entre 1864 e 1871, o genial escritor emendou em sequência a escrita de três romances fundamentais da literatura: Crime e Castigo, O Idiota e Os Demônios. Em um sobrado de São Petersburgo, Dostoiévski nutria hábitos noturnos que lhe garantiam o máximo de silêncio enquanto escrevia. Por volta das 20 h sentava-se em sua mesa de trabalho e escrevia até às 5 h da manhã do outro dia. Depois dormia até o início da tarde, deixando-se enlevar por uma rotina notívaga especialmente complexa para qualquer indivíduo. Para ele, a concentração noturna abria-lhe as portas de acesso à inteligência. Tanto Tolstói quanto Dostoiévski gozavam de uma rotina especialmente monótona, cujo fluxo permitia a composição de obras literárias de peso. E nos dias de hoje? Como conquistar espaço para reconstruir o cotidiano e dedicar-se ao intelecto, mesmo com tantos afazeres necessários à sobrevivência? Será que o fruto doce do silêncio seria prêmio conferido aos ricos, despreocupados e abastados?
Ouso dizer que...não. Se soubéssemos que pouco é necessário para que possamos reconstruir o cotidiano, não acharíamos no silêncio um troféu exclusivo para desocupados. Existe uma possibilidade real para que nós, pessoas comuns atoladas de obrigações, também desfrutemos das benesses do silêncio produtivo. O primeiro aspecto a ser enfrentado é o da análise da nossa rotina cotidiana. É preciso ser suficientemente sincero para fazer uma varredura completa em torno da rotina diária. Desde o início da manhã até a hora de se deitar, há de se inventariar uma descrição minuciosa dos afazeres. É justamente nas brechas da rotina que o ouro do silêncio reluz com maior intensidade. Em algum momento do dia as condições do silêncio produtivo se manifestarão como se fossem frutas maduras que pedem a recolhida no pomar.
A permanência na vida intelectual depende basicamente de uma vontade resoluta. Precisamos desbastar caminho com os cotovelos na selva de obrigações para que haja algum desenvolvimento produtivo das nossas potencialidades. O silêncio aprazível, interessante ao aprendizado, não virá pela força espontânea dos acontecimentos. Deixados à própria sorte das condições “ideais”, não cresceremos em nenhum sentido porque tais condições jamais se manifestarão. Sempre haverá uma exigência a ser cumprida para alguém, uma responsabilidade profissional inadiável ou um familiar que dependa do seu auxílio. Haverá crianças para vestir, alimentar e conduzir. Comida por fazer, casa para varrer e roupas que não podem esperar. As contas precisam ser pagas na datas corretas, como se fossem deusas caprichosas que não aceitam ofertas fora de hora. As obrigações relacionais de um casamento também pedem passagem e exigem o seu lugar de destaque no transcorrer dos dias. Dificilmente esses momentos serão recortados pelos silêncios que nos aproximam do entendimento, embora todos esses instantes possam ser hierarquizados em importância pela consciência que pensa e cria. A alma que deseja o silêncio precisa abrir buracos no dia para encontrá-lo. E ele estará lá se você o procurar com dedicação.
Bastam vinte minutos de silêncio por dia para que a sensação de produtividade intelectual se estabeleça. Apenas uma fração pequeníssima do dia dedicada à leitura e à escrita pode fazer com que a pessoa já sinta os resultados benéficos ao longo dos meses. Muito do nosso tempo precioso pode se esvair no monitoramento de redes sociais, em vídeos curiosos no YouTube e em plataformas de streaming. Apesar de constantemente ocupados, abrimos um espaço para que a última série da moda seja assistida em alguns dias. Pois, então! O desperdício de tempo sempre ocorre, mesmo quando enfrentamos cotidianos atarefados. Um adulto que anseie pelo silêncio da concentração pode encontrá-lo se essa resolução brotar do império da vontade.
Em “Meditações do Quixote”, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset nos dizia que o medíocre faz sempre o mínimo necessário para a sobrevivência, sem compreender o arroubo de vitalidade que nasce de uma vontade decidida a realizar algo. O gasto de energia despendido por uma alma amorosa, muitas das vezes sem qualquer contrapartida, acaba sendo enxergado pela maioria como um esforço inútil. O medíocre mantém-se aferrado ao chão do que chama de “realidade”. Apenas o herói ousa buscar em si as condições necessárias à mudança do mundo em que vive. Ortega y Gasset não nos fala no horizonte das pretensões totalitárias de transformar o mundo através da ação revolucionária que a tudo submete. Não! Para o filósofo espanhol, a atitude heróica consiste em domar os próprios medos, elevar o nível de consciência e procurar ajudar – na forma compatível com a vocação – quem estiver próximo a você. É preciso agir para que as circunstâncias próximas ao herói reluzam a cada ato de amor. Herói é aquele que procura superar-se. Cada indivíduo é um universo composto por duas metades: ele próprio e o seu ambiente de convívio. Se ele vive apenas para si, se esgueirará pelo mundo como se fosse amputado da sua outra parte. A pessoa autocentrada terá uma vida carente, cujo sentido se revela apenas no serviço às pessoas mais próximas. Ortega y Gasset não nos convida para formarmos ONG's na prestação de algum tipo de trabalho voluntário. Não se trata disso. Também não se refere à participação ativa em igrejas e clubes. Agir para mudar as suas circunstâncias significa cumprir o destino da sua vocação para auxiliar as pessoas da forma concreta com que se conseguir: ensinando, protegendo, amparando ou quaisquer outras decisões que possam melhorar – um pouquinho que seja – a vida do próximo.
Uma conhecida passagem bíblica já dizia que a semente precisa morrer para dar frutos. A semente em si não passa de uma possibilidade de árvore frutífera. Colocada em uma caixinha e guardada em alguma prateleira da casa, a semente não cumprirá o seu destino natural. Apenas quando acondicionada à terra, regada e protegida, terá chance de realizar a verdadeira vocação para a qual existe: transformar-se em árvore, oferecer frutos, sombra e novas sementes. O ser humano é assim. Sem algum nível de autonegação, torna-se impossível prestar qualquer serviço relevante à vida alheia. Um pai que alimente e eduque o filho sabe muito bem das abnegações pelas quais atravessa para que possa ser produtivo à vida do rebento. E isso não pode ser feito sem que muitos prazeres pessoais sejam negados ao chefe de família. Viajar, sair para beber com velhos amigos ou mesmo deixar-se entregar a um dia de sábado ocioso no sofá. Nada disso pode ser realizado tranquilamente depois que um homem responsável coloca uma criança no mundo. É disso que trata o nosso problema, afinal: as pequenas satisfações temporárias devem ser negadas em benefício de um bem maior. Nesse sentido expresso, o ouro do silêncio buscado em meio à emaranhada selva de compromissos cotidianos tem por efeito fazer com que a vida dos outros se engrandeça um pouco mais.
No mundo real, ninguém vive apenas para si. Todos temos algum nível de compromisso com a sociedade em que vivemos. A inteligência pessoal que aspira ao silêncio procura dessedentar-se nas fontes profundas do conhecimento, levando aos semelhantes uma moringa de água fresca que possa abrandar um pouco o ar tórrido que emana do asfalto cotidiano. Todos seguimos pela mesma estrada. Às vezes, alguns deixam de enxergar apenas o horizonte cáustico da realidade para viajar ao encontro do universo de liberdade que habita em seu próprio reino interior.