ADÃO FOI CRIADO ETERNO?

INTRODUÇÃO

Com base nas narrativas de Gênesis 1-3 há possibilidade de sugerir que o homem nunca tenha sido criado imortal? Esta pergunta não é de fácil resposta, porém, parto da possibilidade que sim, o homem já era mortal (passível de mortalidade física) antes do pecado e que não foi propriamente o pecado que tornou sua natureza fisiológica passível de mortalidade. Mas acalme-se! Talvez pareça estranha essa afirmativa, mas ela não se contrapõe à doutrina do pecado original nem às implicações que o pecado trouxe para o mundo e humanidade.

O que não abordaremos e estrutura da narrativa utilizada

Neste artigo não trabalharei com comparações com outros relatos de criação do mundo mesopotâmio (O Enuma Elish, O Épico de Atrahasis)[1]; nem com conceitos de decretos divino (Supralapsarianismo e Infralapsarianismo)[2]; muito menos algo relacionado aos 5 pontos do calvinismo e arianismo; não esmiuçarei os detalhes da tentação de Eva entre outros pormenores das narrativas de Gênesis 1-3. O artigo focará apenas na natureza (fisiológica) do ser humano. Para que o argumento seja bem esclarecedor é necessário observar como trataremos a narrativa da criação-queda.

Neste artigo parto da premissa que há uma unidade entre Gênesis 1-2 e não relatos distintos e independentes da criação, proposta pela hipótese documental, onde atribui a fonte “E” (eloísta, de Elohim) na primeira narrativa da criação (Gn 1.1-2.3) e “J” (javista, de Yahweh’ Elohim) para a segunda narrativa (Gn 2.4-25). Nas narrativas da criação, o capítulo 1 a 2.3 trata do mundo, enquanto o capítulo 2.4-25 se concentra no jardim; um é cósmico, o outro é localizado. A maior parte da informação apresentada em (Cf. Gn 2.4-25) é uma ampliação do que se lê em (Cf. Gn1.26-29). A primeira sugere majestade e transcendência; a segunda, intimidade de envolvimento com sua criação. Em outras palavras:(Cf. Gn 1.1-2.3) é o relato da criação e (Cf. Gn 2.4-25) é o comentário do que se criou e como criou [3]. A abordagem da antiga hipótese documental proposta por Julius Wellhausen, não só faz distinção das fontes em Gênesis 1 e 2 e sim de todo Pentateuco, em pelo 4 fontes (JEDP).[4] Como não é o propósito do artigo, não abordarei a questão da autoria mosaica do Pentateuco (para maiores informações consulte as obras citadas na nota de referências).[5] Porém como dito a cima, fiz questão basear este artigo e o argumento que propõe está partindo de uma leitura do texto Bíblico com olhar “conservador” da estrutura da narrativa.[6] Por ser um tema que poucos estão habituados e para passar uma tranquilidade ao leitor, fiz questão de esclarecer esse assunto.

A singularidade do ser humano é vista em gênesis 1 e 2

A criação do homem foi precedida por um conselho divino. "Façamos [...] Nossa semelhança": [7] À luz da teologia e contexto do Antigo Testamento "não" estão evidentes que o uso do plural seja uma referência explícita à Trindade. Todavia, a leitura cristã da Bíblia Hebraica[8] considerou nesta declaração a presença de um conselho divino para a formação do homem.[9] O ser humano é único e separado de tudo o mais que Deus criou. Somente ele foi formado à imagem de Deus e somente ele deve dominar. [10] No jardim, o homem possuiu algumas responsabilidades: lavrar a terra e multiplicar (Cf. Gn 1.26-28; 2.15) e abster-se de comer da “árvore da ciência do bem e do mal” (Cf. Gn 2.17).

O HOMEM FOI CRIADO EM NATUREZA ETERNA OU NÃO?

Levando em consideração a ordenança que Deus deu ao homem em relação a se alimentarem das árvores do Éden: “...De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:16,17). Eva, em resposta à serpente, confirma a ordenação dada por Deus: “Do fruto das árvores do jardim comeremos, Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais (Gn 3:2,3)”. A partir dessas afirmações tudo leva a crer que o homem tinha acesso à árvore da vida. Isso fica de forma mais clara quando Deus coloca querubins para protegê-la no final do capítulo 3 de Gênesis.

Certamente morrerás

Para que o argumento da natureza mortal do homem faça mais sentido é necessário entender o significado de: “certamente morrerás” apregoado ao homem por Deus. Alguns responderão que o significado do “certamente morrerás” está em conexão com mortalidade física, visto que o homem foi “criado eterno” (em natureza fisiológica). Quem nunca falou isso: o homem foi criado eterno. Esta afirmação tem um fundo de verdade, mas é preciso observar que há uma grande diferença de ser “criado eterno” não passível de mortalidade e ser “criado para viver eternamente. ”

As argumentações que afirmam que o homem foi criado eterno, que a morte (física) é punição devido ao pecado ou que homem foi criado sem a possibilidade de mortalidade antes do pecado encontra algumas dificuldades:

1) a Bíblia deixa muito claro que somente Deus tem imortalidade (1Tm 6.16)

2) o homem não morre fisicamente após o consumo do fruto;

3) não encontramos na narrativa (Gn 3.14-19) onde Deus sentencia a serpente (vv. 14,15), a mulher (v. 16) e o homem (vv. 17-19). Não há nada que diz, por exemplo, “porque você me desobedeceu agora você será punido com a morte”. Não a nenhuma punição ou sentença em relação a morte. (Cf. Gn 3.14-19) [11]

4) Não faria sentido a proteção da árvore da vida, que é símbolo de imortalidade; [12]

5) na narrativa do livro de Apocalipse, João relata a árvore da vida presente na nova Jerusalém (Cf. Ap 22.2). S. Horton, em seu comentário faz uma observação interessante: “...Embora venhamos a ter corpos imortais e incorruptíveis, jamais terão vida em si mesmos... Elas também nos lembram de que sempre seremos dependentes da provisão de Deus...” ; [13]

6) a também uma possibilidade real de que havia morte no mundo vegetal, pois Adão e Eva comiam frutos; e se Deus houvesse feito uma criação original em que os animais ao mesmo tempo devessem se reproduzir e viver para sempre, a terra logo estaria superpovoada. [14] Considerando isso a uma facilidade maior de entender que também o homem também possuía uma natureza (fisiológica) que fosse passível de mortalidade física.

Considerando que o “certamente morrerás" pode estar relacionado à morte física, mas em moldes que ela deriva de uma série de fatores que estão relacionados com o pecado-desobediência, e as consequências que ele causou a si (Adão) e a toda humanidade posterior que herdou essas consequências. Para enriquecer o artigo concluirei essa temática com citações de três teólogos de renome.

1) Victor P. Hamilton:

“Isso sugere que a humanidade já era mortal. Seria preciso propor outros entendimentos para 'morte' em 'no dia em que dela comeres, certamente morrerás'. Acredito que 'morte' signifique a perda de um relacionamento íntimo com Deus, alienando o homem de Deus. Morre algo, no homem e na mulher, que torna impossível a continuação de uma caminhada intensa ao lado dEle. ” [15]

2) Bruce R. Marino:

“Outros a entendem (Morte) como uma consequência natural do afastamento da árvore da vida. Muitos rabinos judaicos defendiam a ideia de que Adão nunca foi imortal e que sua morte teria chegado imediatamente se Deus, em sua misericórdia, não a tivesse adiado. A maioria sustenta que a morte espiritual - ou a separação de Deus - ocorreu naquele mesmo dia.” [16]

3) Finalizo com uma dos maiores teólogos do AT na atualidade Walter Brueggemann:

“O ser humano é formado da terra e recebe o sopro de Deus, a fim de se tornar "alma vivente" (nephesh) (Gn 2,7; cf. SI 103,14). Isso significa que o ser humano depende, em sua origem e sempre, da dádiva generosa de Javé para ter vida (cf. SI 104,29-30). Essa dependência desperta o sério questionamento sobre a mortalidade, o qual em si não se relaciona com o pecado. [17]

Expulsão do jardim como ato gracioso

Vemos em (Cf. Gn 3.14-22) e isso é claro em toda Bíblica que é incalculável as consequências que o pecado-desobediência causou não somente a Adão e Eva mais a todos nós (humanidade) sobre esse assunto a uma unanimidade entre os evangélicos.[18] Porém, a narrativa deixa indícios da ênfase de redenção que Deus providenciará para o homem (Cf. Gn 3.21). Deus, num ato de amor e misericórdia, expulsa o homem do jardim, não por causa do que fizera, mas por causa do que poderia fazer caso lhe fosse permitido ficar: comer da árvore da vida e se fixar na rebeldia. Apesar da desobediência do homem e da punição recebida, a bênção dada no ato da criação permanece intacta, leia (Cf. Gn1.28; Gn3.23). [19] Deus não retroage sua promessa. Com a expulsão do homem do Éden, Deus força o homem a fazer o que ainda não tinha feito: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra (Gn 1.28). Uma frase resume bem a expulsão do jardim: até a mortalidade se torna motivo de bênção e misericórdia quando vinculada a Deus.

CONCLUSÃO

Com base em todos esses argumentos, e no significado de, “certamente morrerás”, e no ato gracioso de Deus em expulsar homem do jardim, há possibilidade de sugerir que a humanidade já era mortal. A possibilidade do homem viver para todo o sempre (eternidade) no Éden estava na seu relacionamento com Deus, mediante os elementos que o próprio Deus disponibilizou no jardim. Deus não criou o homem como anjo, muito menos “eterno em si mesmo” e a partir do pecado pune, com algo mais ou menos assim: Agora vou tirar sua natureza eterna e te punirei com a morte. Tu morrerás com a mortalidade física, confira na sua Bíblia (Gn 3.14-24). Deus não fez isso porque o homem já era passível de morte. Em outras palavras, Deus criou o homem para viver eternamente, não eterno (em natureza). Aqui não cabe expormos sobre a imortalidade da alma, a qual creio, visto que estamos tratando da natureza humana e o ser humano deixa de ser humano se for dissociado da alma, do espírito e do corpo. Deus lida com o Homem por completo e todas as suas partes são importantes, prova disso é que os corpos serão ressuscitados nos últimos dias (Cf. 1 Co 15; Ap 22), diferentemente de adão teremos a possibilidade de nunca mais pecarmos. Finalizo dizendo que essa forma de observar a natureza humana em Gênesis não exclui e não entra em contradição com a doutrina do pecado original (ou pecado herdado) e suas consequências desastrosas para o mundo e humanidade, conforme afirma o apóstolo Paulo (Cf. Rm 5.12-21; 1Co 15.21,22). Com esse entendimento do ser humano contido na Bíblia Hebraica (AT) que o ser humano não é nem pode ser autossuficiente, mas vive pela aceitação da vontade da vontade e dos propósitos daquele que dá e ordena a vida, desde o momento da criação. Esse entendimento é importante para abri o entendimento quando abordarmos os escritos do Novo Testamento. Finalizo com uma oração ao Deus Triuno: Que ELE possa a cada dia iluminar nossas mentes para que possamos entender que somos inteiramente dependentes de Deus

Bibliografia:

[1]demit, forma,feição, imagem, semelhança. Cf. KIRST, Nelson (et al.) Dicionáriohebraico-português e aramaico-português. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal,Petrópolis: Vozes, 1991. p. 49. Este vocábulo hebraico assegura que o homem éum representante adequado de Deus na terra. Cf. HARRIS, 1998, p. 315.

[2]Normalmente os cristãos chamam de Antigo testamento

[3] HAMILSTON,Victor P. Manual do Pentateuco:segunda edição. Rio de Janeiro:CPAD,2019. p.20-2

[4] Elechegou a quatro fontes distintas em Gênesis: a fonte Deuteronomista (D), afonte Sacerdotal (P do inglês priestly); a fonte Javista (J, do alemão Jahweh,pelo uso do tetragrammaton); e, por fim, a fonte Eloísta (E, pelo uso dosubstantivo hebraico lohim.

[5] Para maisinformações consulte: WON, Paulo. E Deus falou na língua dos homens: introduçãoa bíblia. Rio de Janeiro: T. Nelson Brasil, 2020.p.149-159 / BENTHO, Esdras C.& PÁLICO, Reginaldo L. Introdução ao estudo do antigo testamento. Rio deJaneiro:CPAD,2019. p.49-52.

[6] Fiz esse tipo deabordagem para corrobora com a linha conservadora do Blog, entretanto aborda otexto levando em consideração outra estrutura da não mudaria em nada oargumento da natureza humana. Exemplo disso é a citação direta que faço do FaçoWalter Bruggeman corroborando com o argumento proposto: mortalidade humana.Nota 17

[7]BENTHO, Esdras C. & PÁLICO, Reginaldo L. Introdução ao estudo do antigotestamento. Rio de Janeiro:CPAD,2019. p.62

[8]Cf. HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 1983. p. 27-28

[9]HAMILSTON, Victor P. Manual do Pentateuco:segunda edição. Rio de Janeiro:CPAD,2019. p.34-39

[10]A distinção entre o infralapsarianismo e o supralapsarianismo tem a ver com aordem lógica dos decretos eternos de Deus, não com o momento da eleição. Nenhumdeles sugere que os eleitos foram escolhidos após Adão pecar.

[11] HAMILSTON,Victor P. Manual do Pentateuco:segunda edição. Rio de Janeiro:CPAD,2019. p.44

[12] BIBLIA DEJERUSALEM: São Paulo: Paullos,2002. p. 36

[13] Horton, Stanley M. A vitória final. Rio de Janeiro: CPAD,1995. p. 32

[14] O autorparte desse ponto de vista em relação aos animais, porém não estende o assuntoao ser humano. Gruden,Wayne. Teologia sistemática: atual eexaustiva. 2ed.São Paulo: Vida Nova, 2020.p.225

[15] HAMILSTON,Victor P. Manual do Pentateuco:segunda edição. Rio de Janeiro:CPAD, 2019.p.29

[16] Horton, Stanley M. Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal. Riode Janeiro: CPAD, 2021.p.269

[17] BRUEGGEMANN,Walter. Teologia do Antigo Testamento: testemunho, disputa e defesa. Santo André:Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2014.p.596

[18]Gruden,Wayne. Teologia sistemática: atual e exaustiva. 2ed.São Paulo:Vida Nova, 2020.p.408

[19] Creation,tradução de J. J. Scullion. Filadélfia: Fortress, 1974, p. 104

Arthur Carletto
Enviado por Arthur Carletto em 13/12/2022
Código do texto: T7670783
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