LAIVOS DE POESIA *

O ritmo e a utilização de figuras de linguagem, especialmente as metáforas (a subversão do sentido genuíno da palavra formando imagens que sugerem um novo entendimento) são primordiais cuidados que deverás observar na elaboração dos versos. Tenhas muita cautela com vocábulos polissilábicos, estes, em regra, quebram a ritmação e enfeiam o poema.

Quando, durante a ação experimental de poetar em voz alta ‘emperra ou tranca’ na garganta, empaca na palavra ou no verso, é sinal de que deves fazer, além da "inspiração", também a “transpiração" sobre o verso ou conjunto de versos no todo do poema. Normalmente este incidente de pronúncia da(s) palavra(s) indica que há algo errado no conjunto rítmico do(s) verso(s). O leitor parece que se engasga, dificultando a emissão da palavra.

São estes dois momentos de criação que aperfeiçoam o poema esteticamente. Há momentos em que ele parece flutuar, e em outros ele é água entre as pedras, não anda ligeiro, lépido e faceiro, é apenas uma tartaruga ou uma lesma. É de se registrar, enfim, que o poema parece ter vida própria, nem sempre o conseguimos dominar numa única rota ou sentido.

Lembra-te claramente de que o poema não existe (ou não vive) enquanto está somente nos estritos domínios do poeta-autor. É matéria inanimada ainda, uma peça embrionária. Quem lhe dará sopro de vida são os olhos ou os ouvidos do receptor, no caso do verso declamado ou recitado.

Portanto, o poeta-leitor também é dono do poema que faz uso na leitura ou na declamação. Até porque ao poema declamado e/ou simplesmente recitado ou lido em voz alta, ao seu bom ou mau efeito estético deve ser acrescida a figura do intérprete, que se acrescerá à proposta original e autêntica do poema, portanto, muito diferente do poema escrito ou digitado, no momento de criação.

Repito, não esqueças: o poema inexiste antes de ser cooptado pelo leitor. Antes do ato de leitura, o poema é matéria morta. Quem lhe dá vida é o poeta-leitor. É este que o faz respirar dando-lhe existência no mundo dos fatos.

É conveniente ressaltar ainda, quanto ao nascimento da peça poética e sua chegada ao mundo fático: o ego não consegue escrever o poema pejado de Poesia, não constrói o poema com os recursos ínsitos à Poesia, porque a peça poética, num primeiro momento de criação, é fruto do emocional do seu criador/tutor e esse exercício do sentir melhor acabado se torna impossível ou prejudicado de ocorrer, devido ao egocentrismo do criador despreparado e/ou pouco lido, que, por essa possessão ou anseio, o que ele mais deseja é ser visto como autor da peça poética e vir a receber as costumeiras louvações por parte de terceiros, em regra também despreparados quando ao conhecimento e exercitação da criação poética.

Aliás, em regra, o poeta-autor do lugar comum da vida não chega a ter consciência crítica para com o poema recém-criado, por falta de preparo pessoal para tratar de assuntos como a fenomenologia da Poética e os seus signos.

Usualmente, os jovens poetas e/ou neófitos em qualquer idade, geralmente ficam convencidos, de pronto, de que acabaram de fazer a sua última “obra prima”, ou seja, a melhor peça textual de todo o seu acervo de criação. E logo saem a se comprazer e/ou se auto elogiar, esquecendo-se de que o poema é o que está em voga, enquanto peça estética em Poesia, e não o seu registro autoral que lhe poderá render algum dinheiro, a roupa que o seu tutor veste, o poder econômico de que ele está ornado no momento ou quaisquer outros elementos materiais.

A obra de arte poética não compactua, ao menos na primeira flama que a joga no mundo dos fatos, com fatores ou juízos de apreciação pecuniária. O que importa de fato é a peça criada, aquela que, por seus dotes de intrínseca beleza, ritmo, linguagem constitutiva ornada de contemporaneidade formal, de genuína originalidade e imagética, verdade ou verossimilhança, legitimidade, codificação verbal, transcendência ou a estranheza da peça estética que venha, por si só, a instigar o ato de leitura e a possessão que ela desperta no poeta-leitor, que, de pronto a toma como de seu domínio ou propriedade.

Bem, retornemos às nuanças da criação. O ego somente consegue escrever em prosa, vale dizer, o registro prosaico em suas espécies de narrativa curta, média ou longa, por exemplo: o artigo, o pensamento, a crônica, o conto, o ensaio, a dramaturgia, a novela, o romance. No entanto, é sempre aconselhável que no texto em Prosa ocorram alguns laivos de poesia, para que a emissão do conjunto textual não macule a audição, enfim, seja agradável ao dar o “time”, o andamento verbal sobre o conteúdo. Fico com Charles Baudelaire: “Sê sempre poeta, mesmo que em prosa; grande estilo, nada mais belo que o lugar comum...”.

O prosaico nasce do exercício do racional, ou seja, a razão o elabora, faz a urdidura do processo de autocensura que a lucidez racional impõe, por sua própria natureza intelectiva e analítica. Em regra, quando da criação da peça poética, o emocional é quem escreve os versos, inexiste, naquele momento, o exercício do racional, a pausa reflexiva assentada no racional e suas claves de contenção. Este processo vai ocorrer no segundo momento de criação, a “transpiração”, enfim, o ato de “lucidez enternecida” que vai dar ao esboço do poema a sua forma definitiva ou aquela que satisfaz o poeta-autor naquele primeiro momento intelectivo, e não mais (somente) a presença da tradução verbal da matéria ardente resultante do instante de inspiração.

Quem faz o poema com Poesia é o alter ego. Estes são hóspedes indesejáveis que vivem dentro do poeta-autor, e nem sempre são pacíficos; geralmente são inquietos, porque muito nervosos na descoberta das palavras em seu vestido de festa na celebração do Novo, que é a Poética. Falam à revelia de seu hospedeiro. Têm voz própria, como identificou Fernando Pessoa, no início do séc. XX e lhes deu a novel nomenclatura de “heterônimos”. Uns medonhos difíceis de segurar...

Lembra-te de que sou apenas o provocador, o instigador que faz com que o criador libere o seu alter ego mais e mais, para conceder voz ao poema. Este é o triste ofício: o de brigar com a palavra e os signos da inventiva, do fingimento, da traição, da fantasia, da farsa e dos sonhos criados para tentar ser feliz utilizando a mesma “lucidez enternecida”, que pode causar a chamada “estranheza”, por ser peça única capaz de envolver a quem se entrega à Poética.

Poetar é ofício para quem se pretende um solitário pássaro. Com dados relevantes a ressaltar. Geralmente é um pássaro triste que necessita reconstruir-se, encontrar o ninho perdido e extrair os ovos para a possível gestação dentro das escarpas do abismo por onde se derramam as vertentes do Mistério.

MONCKS, Joaquim. A MAÇÃ NA CRUZ. Obra inédita em livro, 2022.

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