A CRUZ DE CRISTO NO TOPO DO MUNDO
*Por Antônio F. Bispo
Domingo, 22 de Outubro de 2022.
Uma menininha entra na cozinha e pergunta:
-Mamãe, por que temos que colocar a cruz de Cristo no Monte Everest? Meu professor disse que lá é muito frio e solitário e que quase ninguém consegue subi-lo. Não seria ruim deixarmos lá o Cristo e sua cruz? Será que ele não vai se sentir sozinho? E quando precisarmos vê-lo, não será difícil para nós irmos até lá? Eu não gosto de frio e não aguento subir uma montanha.
Assustada, sua mãe pergunta:
-De onde você tirou essa maluquice menina?
Ela responde:
-Tem um velho na TV dizendo isso! Falando que temos que pôr a cruz de cristo no topo do mundo. Meu professor disse que o topo do mundo é o Evereste.
Embaraçada, a mãe pediu para a filha mostrar onde ela tinha visto aquela fala.
Deixando a cozinha e seus afazes vespertinos, seguiu a garotinha que puxando-a pela mão, apontou para a TV tão logo entrou na sala.
A mãe ficou estupefata. Realmente o que estava sendo mostrado naquele instante era algo chocante, inédito, inacreditável...
Um influente líder político brasileiro parecia estar fora de si, repetindo a frase citada pela criança bem como outras igualmente desconexas.
A programação televisiva que a criança assistia fora interrompida para dar espaço aquela informação.
A mãe não acreditou. Achou que era algum tipo pegadinha. Uma montagem. Uma fake News.
Imediatamente entrou em suas redes sociais e em vários canais de notícias. Todos diziam a mesma coisa...
Ela nunca tinha visto algo do tipo. Difícil de acreditar se ela mesmo não estivesse vendo.
Pior ainda era tentar explicar para uma criança aquela situação desastrosa que estava sendo correlacionada a um propósito religioso.
O noticiário exibia uma auto gravação feita por senhor de face enrugada, de voz cavernosa e de aparente sabedoria. Era como se tivesse planejado tudo aquilo.
O sujeito parecia se despedir da vida e dos amigos. Como se fosse um herói aclamado que depois de lutar e vencer várias batalhas, iria enfrentar a sua última, entregando-se como sacrifício pessoal em favor de muitos, ele narrava os fatos misturando de forma desconexa elementos da religião, da política e sua própria frustação pessoal contra um magistrado da suprema corte brasileira.
Um herói injustiçado. Assim era o auto retrato que o indivíduo pintava de si mesmo.
Era possível que outros alucinados e desconexos também pensassem como ele, enxergando ali um mártir e não um criminoso.
A realidade porém era bem mais grave e totalmente diferente do seu auto relato.
Imagens de uma câmera de segurança residencial foram mostradas. O próprio idoso havia feito-as.
Na primeira imagem, agentes da Polícia Federal esperavam à porta ao lado de uma viatura SUV, depois de terem tocado a companhia. Havia uma mulher entre eles.
Segundos depois, do mesmo ângulo da câmara, dava-se para ver o carro da polícia com vidros crivados à bala e o que parecia ser uma poça de sangue próximo ao pneu dianteiro. Nenhum policial à vista nesta segunda cena.
Enquanto os comentaristas (também estupefatos) falavam sobre o caso, vídeos e fotos eram exibidos de forma alternada, incluindo rascunhos da vida e gestão do político ao longo de sua carreira, bem como os acontecimentos recentes e outros escândalos relativos à corrupçãoe desacatos em situações anteriores.
Outra vez a imagem solo do idoso fora exibida, contando sua própria versão de herói, convocando outros à (quem sabe) repetir seus feitos. Era um tipo de chamado à uma guerra santa.
Desta feita, ouvia-se agora ao fundo, uma senhora aflita sugerindo que lhe dessem calmantes. Parecia ser a esposa do dito cujo.
O elemento havia disparado vários tiros contra o carro da polícia federal e seus agentes.
Que loucura! Parecia um roteiro de cinema. Quem teria a sorte (ousadia) de atira na polícia e sair vivo? Ainda mais na polícia federal? Que barbaridade!
Absorta em pensamentos e ainda sem acreditar nas cenas do televisor, a mãe foi sacudida pelo braço da filha que puxando-lhe pela aba da roupa indagou outra vez:
-Você ainda não me disse por que temos de pôr a cruz de Cristo no topo do mundo!
A mãe voltou em si, respirou fundo, olhou para a criança e disse:
-Ele falou em metáforas filha. Não ligue pra isso. Não é real. Não se preocupe. Cristo e sua cruz permanecerão onde sempre estiveram.
A menina indagou:
-E o que é uma metáfora?
-É uma figura de linguagem filha. Quando alguém quer dizer uma coisa, mas na verdade queria dizer outra, eles falam assim. Religiosos, políticos e gente de mau caráter podem se valer muito desta ferramenta em suas comunicações para dizer algo de duplo sentido. Desse modo, quando alguma coisa acontecer no futuro, se for bom, eles dirão que foi por mérito deles. Se for ruim, se alguém tomar prejuízos ou for penalizado, eles dirão que o povo entendeu errado e que não tem nada a ver com isso.
-Ahhhh...entendi! Minha avó diz que quem faz isso é gente irresponsável.
-Justamente! Gente irresponsável- completou a mãe.
A criança continuou:
-E por que ele atirou na polícia? A senhora não disse que devemos respeitar às autoridades? A polícia não é uma autoridade? Por que ele tratou a polícia como se fosse um bandido?
A mãe respirou fundo e disse:
-Pois é....também queria entender! Até agora não consigo nem acreditar. Esse homem é um representante de lei. Ele tem de dar exemplo. Bons exemplos.
-Este homem é um maluco mamãe?
-Não minha filha, não...É apenas um oportunista. Um fanático em fim de carreira. Um agitador político de moral duvidosa, que acaba cuspindo e pisando nos valores que ele mesmo jura estar defendo.
Enquanto ambas estavam em pé diante da TV vendo o noticiário, eis que o reporter corta a imagem e mira em um sujeito alto usando batina e badana. Ele irrompe entre a multidão como se fosse um Hércules.
Ladeado (protegendo?) duas outras figuras menos conhecida, ele avança com passos firmes em direção à casa do atirador. A policia que montava o cerco deixa-o passar sem muitas perguntas enquanto mantém a impressa e os curiosos mais ao fundo, numa perímetro mais seguro.
Quase toda atenção se volta para esse sujeito. O repórter narra ao vivo sua chegada como se fosse a de um grande estadista que pegou a todos de surpresa e veio pôr fim àquela balbúrdia.
Ao reconhecer a caricata figura, aos gritos a multidão se manifesta:
-Padre! Padre! Padre...
Ele finge ignorar e segue junto (empurrando? Segurando?) aos dois que estavam ao seu lado.
A criança perguntou:
-Quem é esse personagem mamãe? De onde ele saiu? Por que ele está vestido desse jeito? Ele é realmente um padre?
-Então minha filha...Há quem diga que ele é um padre de festa junina, daqueles que aparecem em noites de folguedo somente para participar da folia e nada mais. Há outros que dizem que ele é realmente um santo. Prefiro pensar que ele é o resultado da junção do fanatismo político com simbolismo religioso, representado pelo cristianismo decadente das duas últimas décadas. Quando pessoas ruins acham que apenas falando de virtudes que não possuem, esconderão seus próprios defeitos, figuras como essas surgem para inflar o ego delas. Não é algo natural. É algo construído para um fim específico. Logo será descartado assim que o propósito for alcançado.
- Mamãe, e por que esse atirador falou em DEUS-PÁTRIA-FAMÍLIA? Na igreja de minha avó também diziam isso.
-Essa é outra forma de alguém não fazer absolutamente nada para mudar o rumo da própria vida ou o rumo da nação e pensar que está fazendo tudo. Vinda de gente de baixa renda e pouca cultura, essas são apenas palavras soltas, jogadas ao vento que para nada servem. Pode ser também uma linguagem interna do grupo, usada para se comunicar com outras pessoas que pensam de igual modo. Quando dita por gente rica e poderosa, essa fala pode significar algo tenebroso. Isso já aconteceu no passado, mas pouca gente sabe e os que conhecem os fato preferem ignorar achando que o mesmo mal não se repetirá...
A criança parecia pensar profundamente em cada palavra que sua mãe dizia.
A mãe por sua vez, preocupada com os impactos morais que cenas como estas poderiam ter em toda sociedade, torcia para que a mensagem cifrada daquele homem não fosse entendida.
Era evidente que aquilo era um “apito de cachorro”. Só os “escolhidos” poderiam entender aquele chamado. O modo como o chamado foi feito e por quem foi feito é que desmoralizava todo intento.
Ao que tudo indicava, aquilo parecia ser um chamado à uma rebelião. Um estopim para uma guerra civil. Uma tentativa estupida de demonizar uma parte do poder público enquanto tentava endeusar partes antes já idolatrada pelos membros superiores daquela alcateia.
Era cedo demais para dizer se o som daquele apito tinha sido ou não ouvido pelo restante do bando. Caso fosse realmente um mártir digno quem tivesse feito aquilo usando a dosagem e direção correta da força, quem sabe no mesmo instante e em vários locais do países, loucos semelhantes estivessem fazendo a mesma besteira.
Por sorte, o maluco que fizera aquilo era diminuído ou menosprezado por ambas as partes dos que disputavam o poder, sendo procurado somente quando seus serviços eram convenientes a um dos dois lados.
Para evitar a visualização de outras cenas grotescas e perguntas difíceis de serem entendidas por uma criança, a mãe resolveu mudar de canal e mudar de assunto, voltando aos seus afazeres enquanto deixava a criança assistindo sua programação anterior.
...
Texto escrito em 26/10/22
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.