TINHA UM CÉU, MAS NÃO ERA AZUL!
[...]
Cícero – Não iremos arredar! Vamos pra cima!
Todos – Qual seu nome cidadão? Tá fazendo o quê aqui?
Cícero – Lutando por nossos direitos!
Todos – Que direitos? E pobre tem direito? Pobre só serve pra votar!
Cícero – Luto por dias melhores da minha favela!
Todos – Bandido de merda! O que você faz? Qual teu nome, vagabundo?
Cícero – Não sou vagabundo, sou Cícero da Silva, estudo ciências sociais, na universidade federal!
Todos – Baderneiro! Calhorda! Mãos pra cima, vagabundo!
Cícero – Eu não fiz nada! (Com as mãos pra cima).
[...]
Todos – (Dando o dedo do meio, depois de formar arma com as mãos) Você sabe o que é isso? Não. Assim não, você não é assim “calminha”; assim, não! Fala, vagabunda! Já vi você desdenhando da polícia!
Márcia – Vocês vêm aqui na nossa favela, batem os pés nas nossas portas, miram essas armas na nossa cara e não perguntam nada! Chegam logo atirando; e depois que morre pregunta quem é?
Todos – Tudo bandido! Tudo maconheiro e traficante!
Márcia – Moramos aqui há anos, desde de criança. Criamos nossos filhos, isso é, quando podemos criar, sem antes a polícia matar e sair na mídia que foi bala perdida!
Todos – Você defende o crime, usa para fazer o mal. Se dar de boa moça, mas na verdade é bandida também!
Márcia – Porque eu sou bandida? Só porque moro na favela, sou casada com um preto? Porque eu sou bandida? Porque eu não tenho roupas de grifes e nem estou na moda? Porque eu sou bandida? Porque sustento a minha família fazendo unhas e faxina?
[...]
Márcia – A cabeça a milhão pensando nas coisas, pensando nas contas, o preço do arroz, meu deus, o preço do óleo, do botijão de gás, a mente a milhão, o preço da carne...
Todos – Carne! Que carne? Estamos na fila do frigorifico pra pegar ossos para dar uma incrementada nos últimos grãos de feijão!
Igor – Quando temos os últimos grãos de feijão, né?
Repórter – Estamos aqui na porta de um frigorífico, ande os moradores esperam umas ossadas para se alimentarem. Se é que dar pra se alimentar com osso!
Sebastiana – Todo dia em venho aqui na espera de um osso.
Repórter – O que a senhora tem em casa pra comer?
Sebastiana – Nada. Não tenho nada. Fome é uma coisa que dói, meu filho.
Repórter – Quando foi a última vez que comeu uma refeição decente?
Sebastiana – Eu não sei o que é isso, moço. Ontem eu comi um punhado de farinha com um pouco de café.
Repórter – A senhora recebe bolsa auxílio?
Sebastiana – Não. Nunca recebi. Mas, a filha da minha vizinha, que trabalha, todo mês recebe 400 reais. Nunca fui chamada pra receber um real se quer!
Repórter – 400 reais agora seria uma boa para a senhora?
Sebastiana – O quê? Com esse dinheiro iria fazer uma compra na feira pra mim. Ovos, arroz, feijão, carne...
Todos – Carne? Que carne?
[...]
Igor – Alimentos cada vez mais escassos, cada vez mais distantes de nós. Eu tenho família pra criar!
Todos – Vejam! Ele é preto!
Aposto que é ladrão!
Esconde o celular!
Desvia de rua, porra!
Chama a polícia!
Igor – Isso é racismo! E sou preto sim, e tenho muito orgulho da minha cor! Já vocês, acham que não podem dizer nada! Vai chamar a polícia só porque sou negro?
Todos – Calado! Preto não tem direito de falar nada; tudo ladrão!
Igor – Já fui preso injustamente só porque sou negro!
Todos – Viu, é ladrão!
Igor – Não sou ladrão, sou um artista de rua, ator e cantor!
Todos – Tudo vagabundo, bicha e puta! Maconheiro!
Igor – Respeita a minha classe, respeita a minha cor!
Todos – Calado, crioulo!
TRECHOS DA PEÇA "TINHA UM CÉU, MAS NÃO ERA AZUL!", DE RONALD SÁ.
UM RETRATO VERGONHOSO DA NOSSA PÁTRIA DESAMADA BRASIL.
*Ronald Sá, é ator, dramaturgo, diretor e professor de teatro. Tem mais de 30 textos teatrais escritos, tanto infantil e adulto. Mora em São Luís do Maranhão. Começou a se interessar pelas letras desde criança. Formado em Artes Cênicas, tem um grupo de teatro na periferia da cidade maranhense, Anjo da Guarda. Bairro cultural, celeiro de vários artistas. Atuou, escreveu e dirigiu 26 espetáculos.