Superioridade Moral
Não sei de onde saiu o desejo de se sentir moralmente superior a outra pessoa; não sei se não surgiu de um sentimento de culpa; não sei se não veio de um ressentimento qualquer. Se do primeiro, a vontade de nossos contemporâneos indica que o discurso historicista, racial, interseccional, ou como queira, provavelmente o instigou. Imagine você, branco, rico, de classe média ou pobre, você, que nunca pegou num chicote, você, que nunca chutou o ventre de uma escrava, culpado pelos males cometidos pelos brancos de outro tempo. Você não escravizou ninguém, claro, mas você também é culpado pelas consequências da escravidão, consequências estas que você não provocou. Por quê? Não sei. Os escravos morreram, os senhores de engenho também. Entretanto, hoje existem os descendentes de escravos, homens e mulheres, negros e indígenas, que supostamente merecem reparação por um crime que nunca sofreram. É mais ou menos como ressarcir o bisneto pela prisão injusta do bisavô. O bisavô morreu faz tempo, as pessoas que o condenaram também, mas o bisneto, que nem sabia direito da história, ganhou uma bolada. Ele soube que o bisavô não matou a criança afogada no rio, que quem o fez foi o caseiro, que o caseiro era amigo do juiz, que este era camarada do promotor, que o promotor era cupincha do advogado; e foi-se o bisavô para a cadeia. O bisneto, entretanto, não passou um dia preso. Não parece ainda mais injusto ao bisavô, que o bisneto, que ele nunca conheceu, receba pela injustiça cometida contra ele? Se este caso lhe parece estapafúrdio, imagine o seguinte: o bisneto do juiz mora a dois quarteirões do bisneto injustiçado. Este vai à casa daquele, bate na porta, o do juiz atende, e o injustiçado diz: "teu bisavô condenou injustamente o meu; quero uma reparação." Claro, sendo você o bisneto do juiz, você, no mínimo, estranhará. "E eu com isso?" O injustiçado finca o pé. "Eu quero a minha reparação. Você sabe o mal que o teu bisavô causou ao meu? Você sabe como a condenação injusta do meu bisavô destruiu a minha família?" Você responde: "não, não sei, mas o que eu tenho a ver com isso? Não fui eu quem o condenou, não foi você o condenado. Me desculpe se ele destruiu a tua família. Mas, por favor, o que você espera que eu faça?" O injustiçado teima: "que compense o erro cometido pelo teu bisavô contra o meu." Eu, não sei você, adoraria perguntar se ele prefere à vista ou parcelado, ou se prefere um bico, ou uma mamadeira. Todavia, como sei me conter: "qual o fundamento dessa cobrança?" Antes de responder, eu o convido, ele entra, senta na mesa da cozinha, toma um café. Com a garganta aquecida, começa: "você concorda que causas produzem efeitos, certo?" Não exatamente, mas "sim", você responde. "Concorda que alguns efeitos se prolongam em razão do tempo, certo?" Novamente, você não acha isso, ou nem sabe, mas responde o mesmo "sim". "Concorda, por fim, que a escravidão foi a causa e a pobreza e a marginalização as consequências?" Como você ainda possui pelo menos dois neurônios na cabeça, você concorda: "claro, obviamente." E o pobre, injustiçado: "então como diabos você não quer me pagar?" "Porque eu não quero; a dívida não é minha. Se quiser pagamento, cobre no cemitério, e deixe o dinheiro lá mesmo, só troque a lápide." O pobrezinho se enfurece. Antes que a situação saia do controle, você pergunta: "existem negros pobres e negros ricos, correto?" O homem responde: "sim". Todos são descendentes de escravos, correto? "Imagino que sim." Você é rico ou pobre? "Pobre." Por que você não é rico? "E eu lá vou saber? Só sei que não sou." Eu também não sou. "Mas o teu bisavô era juiz, classe alta. Todos os teus parentes devem ser de classe alta." Alguns são, outros não. "Você também é." Veja a minha casa: parece muito melhor que a tua? "Um pouco." Parece casa de rico? Veja o sofá de madeira sujo. Veja o lustre velho. Veja as manchas na parede. Veja a podridão do assoalho. Parece? "Não, mas parece melhor que a minha." O que não a torna necessariamente rica. Sou de classe média para classe baixa, nada mais. Se, antes de bater na minha porta, você tivesse perguntado, eu te diria: meu bisavô morreu, minha família perdeu quase tudo, e o que nos restou foi essa casa decrépita e triste. Se você toma meu dinheiro, dinheiro esse que você nunca mereceu, você me prejudica. Portanto, por que eu te repararia? "Porque você é uma pessoa boa, justa, que não suporta injustiças, e que despreza o mal." Sim, sou, eu acho, mas o dinheiro, que é meu, eu o ganhei, trabalhando. Por que o suor do meu trabalho tem de molhar a palma da tua mão? Por que você não trabalha e ganha o teu, e para de encher o saco de quem não tem nada a ver com essa história? Percebemos, por meio de um breve diálogo, como a sensação de superioridade moral ora está com um, principiando no injustiçado, ora está com o outro, terminando no bisneto do injusto. Parece-me que o bisneto do injusto tem os melhores argumentos, que a cobrança dos descendentes contra os descendentes nos tornaria demasiado condescendentes, que assim o filho do ladrão tem a mão cortada, e que o jogo de culpas acaba na última geração, que sabe Deus qual será. Por que imaginamos que meras palavras e teorias esdrúxulas são capazes de reduzir o mundo ao microscópio? E por que perdemos a noção de que um dia é da caça, outro do caçador? Ou, em termos mais cristãos, que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros? Ou, com a devida correção hebraica, que a injustiça impera em toda parte, que nesse mundo triste e indiferente ninguém é melhor do que ninguém, e que são pouquíssimos os "abençoados"? Afinal, Deus não faz contrato com todo mundo. Por que não passamos de um bando de idiotas? Quanto ao segundo, o primeiro o reforça. Não apenas o discurso, como o senso-comum, que o aguça, e o desespero, que o esmaga, seja pelo racismo, seja pela desigualdade. Talvez nos falte perceber que nem toda desigualdade é injusta, embora toda injustiça seja desigual. Não sei; cansei de escrever. Pense melhor quem me ler.