O DEUS QUE NÃO ESTEVE LÁ
*Por Antônio F. Bispo
Em 2007 criei minha primeira rede social.
Meu intuito inicia era apenas o de aprender ou praticar idiomas com nativos.
Na ocasião eu estudava hebraico, então adicionei algumas pessoas cujo status dizia dominar esse idioma.
Entre estes estava uma bela senhora aparentando ter entre 55 e 60 anos.
Assim que eu a adicionei, ela levou alguns minutos pra aceitar meu convite e antes que eu pudesse dizer o intuito de minha interação, ela escreveu em letras garrafais:
-Oi, seja bem-vindo! Notei em seu perfil que tu te declaras evangélico (sim, na ocasião eu era). Não tenho nada contra sua fé ou qualquer uma outra, porém se tua intenção for me evangelizar, antecipo que podes desistir e vá procurar outra coisa pra fazer. Não preciso do seu Cristo ou de qualquer um outro deus que queiram me ofertar. Se não for esse o seu intento, fique e aproveite minha amizade!
Fiquei sem reação. Não sabia o que dizer. Ela fora sincera, porém gentil.
Não estamos acostumados à isso.
Geralmente vivemos rodeadas de pessoas falsas, de segundas intenções ou fracas o bastantes, para viverem de migalhas de afeto e por isso preferem abafar o que sentem à desagradar supostas amizades.
Ela era objetiva, determinada sob medida.
Gostei daquilo e fiquei pensando o motivo da resposta prévia, do tipo que alguém se defende antes de ser atacado.
Lembrei-me o quão insuportável eram boa parte dos evangélicos que eu conhecia. Eles tentavam impor aos outros suas crenças, estilo de vida e visão medíocre do mundo, tendo como premissa básica de moralidade apenas uma mera confissão pública de fé.
Aos que afirmassem acreditar naquele que dizem ter nascido duma virgem, morrido num madeiro e ressuscitado ao terceiro dia era dito que eram filhos da luz. Aos que pensassem diferente, uma dezena de pechas negativas eram-lhes atribuídos.
Segundo alguns desses (chatos e intolerantes), toda virtude, bondade, justiça e moralidade entre os homens dependia da resposta afirmativa sobre um atestado de nascimento e óbito de um cara que dizem ter vivido na Judéia cerca de 2 mil anos atrás. Ainda que o que dissesse tais coisas tivesses ações de um crápula, sua confissão pública de fé seria o suficiente para leva-lo ao paraíso celestial pelo ser cuja veneração era dada.
No mundo em que eu vivia tudo girava em torno disso e mesmo eu não sendo um desses, eu me pus no lugar dela e entendi o motivo da contraofensiva.
Era também comum entre os crentes dizer que os judeus eram deserdados dos céus, rejeitados por deus, que eles mataram na cruz o cristo filho do deus vivo e que por isso iriam sofrer duramente por séculos ou milênios, até se arrependerem em unanimidade, confessando ser Jesus o seu único Messias, para que desse modo sua condição de filho fosse restaurada.
Era tanta baboseira que ouvíamos nesse meio (ou repetíamos para nos sentirmos parte do grupo) que nos dia atuais, alguns de nós tem vergonha de já ter feito parte de grupos assim.
Com o avanço das tecnologias de gravação e reprodução de imagem e som, babaquices como essas tem sido dita sob medida, somente para grupos restritos à fim evitar o lixamento social.
Pois bem...Depois do silencio ensurdecedor, da reflexão sobre crenças que aquela senhora gentilmente me impôs, eu disse-lhe o meu intento e lhe adverti que ficasse tranquila que de minha boca (ou dedos), jamais sairia qualquer menção à religião ou ícones de fé.
Ela compreendeu e prometeu ajudar-me na medida do possível e sem que eu perguntasse nada sobre sua prévia artilharia verbal ela disse:
-Desculpe-me se fui grossa contigo. Eu não creio em deus e abomino qualquer pessoa que tenta me converter aos seres fantástico do folclore popular. Cada um que viva sua vida e fé me deixem em paz!
Me mantive em silêncio. Não queria e nem podia rebatê-la. Eu estava diante de uma descendente de Abraão, uma parente direta do “povo que inventou deus” e parte dos seus atributos incomensuráveis. Ela era pertencente a um povo cuja estória bíblica narrava centenas de epopeias e milagres fantástico realizado por esse ser de poder infinito.
Fiquei confuso e acima de tudo perplexo!
Como poderia uma “filha do deus verdadeiro” duvidar da própria paternidade? Era a primeira vez que tinha contato com um judeu incrédulo da própria crença (depois disso conheci alguns outros).
Ela parecia estar adoecida, ressentida, magoada... do tipo que além de estar ferida (frustrada), era proibida de expressar aquilo sentia diante dos seus.
Vi que ela queria apenas extravasar um pouco a decepção que sentia diante da própria fé que nascera e crescera.
Mesmo não sendo um judeu, eu era um cristão e gente decepcionada com a própria crença eu encontrava aos montões todos os dias desde sempre e assim como ela, estes tinham também e engolir à seco toda frustação para não serem torturados verbalmente ou dados como escórias da sociedade.
Quanto a isso, eu ouvia sempre a seguinte citação: “perder a fé em deus é pior que ser tornar um pedófilo, um homicida, um serial killer ou um explorador do corpo e da força vital alheia. Para o primeiro não tem perdão. Para todos os outros sim. O primeiro pode ser comparado à como um câncer social, motivo pelo qual deus está sempre irado com esse planeta. Todos os demais, não importa qual seja o pecado ou crime cometido, se aceitarem a Jesus, se tornarão puros como a branca lã, como se nunca tivessem cometido dolo algum e serão instrumentos nas mãos do deus vivo e pela suas vidas, deus trará bênçãos para todo o povo...”
Era assim que uma “pessoa sem deus” era vista por alguns religiosos. Tem sido assim até hoje. Quando não expressa isso de modo direto, o fazem por meio de metáforas faladas ou cantadas.
Quanto mais hipócrita for um religioso, quanto mais bandido, quanto mais nojento...mais moralista ele se mostrará, e como dito, sua base de medida será apenas a confissão pública de fé.
Aquela senhora não era cristã, porém sofria dos mesmos males que a religiosidade imposta reflete em todas as culturas: ao nascer você é declarado pertencente a uma religião só por que seus pais ou sociedade é mesmo não sendo essa uma decisão sua. Quando tu entendes onde estás metido, o abandono da fé se torna um crime hediondo, à depender de onde estás.
Outra vez, sem que eu perguntasse nada ela escreveu em letras graúdas:
-SE DEUS EXISTE, O HOLOCAUSTO JUDEU NUNCA EXISTIU! Um ou outro é uma invenção humana. É impossível que ambos sejam reais...
Eu fiquei absorto. Mudo. Em silêncio...
Como se tivesse levado um soco no estômago. Fiquei sem ar.
Na primeira vez que li sobre tal assunto eu tinha 15 anos de idade. Tive o mesmo pensamento que ela e fiquei angustiado só de ter deixado esse pensamento ter surgido em minha mente.
Considerando que segundo alguns crentes, até o ato de pensar mal sobre deus pode ser considerado uma blasfêmia por pensamento tanto quanto a blasfêmia verbal, um crente fiel sofrerá por ter pensado ou por ter ouvido tal fala ainda que nada tenha dito.
Ele penará por vários dias em uma angustia mortal e só voltará a ter alegria de viver, quando “sentir o espirito santo em sua vida outra vez”, que nada mais é, que se emocionar ao ouvir uma boa melodia ou receber uma “profecia” de algum esquizofrênico que alega ser um canal direto de deus, daquelas que dizem: estou contigo meu filho, não temas” ... Daí a culpa some e o crente volta a “ser feliz” outra vez, até que algo parecido lhe roube outra vez a paz.
Todo “santo” sabe muito bem que entre tantos males que à todo instante no mundo, apenas duas coisas não passam desapercebida pelos olhos de deus: o sexo gay e quando um crente questiona os seus misteriosos propósitos.
São estas as únicas “desgraças” que fazem ele se manifestar em algo. De resto, o mundo pode desabar que ele não está nem aí.
Naquele instante eu não estava blasfemando contra deus, mas estava ouvindo uma pessoa “blasfemar”. Por isso fiquei sem ar e quase desmaio com as duras citações que ela fizera sobre deus.
Eu não queria mais ouvir aquilo ali. Ao mesmo tempo queria. Não há no mundo um crédulo que não tenha passado por tal conflito. A maioria só não tem coragem de assumir. Eu era um deles.
Eu já havia feito várias pesquisas sobre o holocausto e chegara a conclusão era óbvia: os milagres divinos só funcionavam nos livros, nas pregações mirabolantes dos seus “ungidos” ou em qualquer outra situação única que não pudesse ser comprovada por pares. Fora isso, na vida real, isso nunca acontecia, principalmente quando havia mais de um observador para comprová-los. Era tudo conto de carochinha ou no mínimo um marco para a construção de um mito, para que por meio desse houvesse a unificação de um povo.
Quando se é uma “mula de cristo”, cega, sem cabeça e sem cérebro, a única coisa que se pode fazer é aceitar aquilo que sua hierarquia religiosa impõe. A outra opção é ficar em posição fetal chorando, temendo os tais castigos divinos e aguardando uma condenação ou absolvição de culpa futuro por um crime que nunca cometera.
Eu já tinha concluído por conta própria que os milagres divinos não passam de um mecanismo de manipulação em massa para extração de poder e riqueza, cujos explorados são sempre as ovelhas servis que se recusam a pensar, pois até o ato de pensar se torna um pecado. Obedecer é lema, questionar é o problema. Assim a vida segue nos locais “onde deus impera”.
Sem que eu pudesse prosseguir, aquela senhora continuou. Disse sua idade (quase 60) e falou dos horrores que vivenciara ao ver sua mãe tendo crises durante o sono, revivendo os pesadelos dos campos de concentração.
Sim, a mãe dela fora uma das que passara pelos os horrores dos campos de concentração enquanto esperava todos os dias a suposta providencia divina.
Ela, assim como tantos outros que sucumbira ao genocídio, dizia acreditar na intervenção de deus, nem que fosse nos momentos finais de suas vidas. Morreram esperando...
Depois da guerra sua mãe fora liberta do cativeiro, mas as sequelas ficaram.
Sua filha (esta senhora que comigo teclava), nascera depois disto.
Sua mãe perdera os pais, irmãos, namorado e centenas de pessoas do seu convívio.
Depois de liberta mudou várias vezes de cidades, tentando esquecer os horrores vividos, porém o horror estava em suas lembranças, na constatação do óbvio (o desamparo divino) e não nos lugares em que ela ia morar. Só que ela não podia assumir isso publicamente.
Sua mãe casou-se com um homem que viera a ser seu pai e foram morar em um pais de língua portuguesa.
Aquela senhora contou-me que até o dia da morte de sua mãe nunca houvera um dia sequer em que esta não tivesse um surto ou crise, remoendo os horrores dos campos de concentração como se ainda estivesse lá.
Durante as crises, em todas as citações ela clamava por um deus que nunca aparecera e que deixara quase 6 milhões de crédulos morrerem da forma mais cruel já vista até os dias de hoje. Sucumbiram nas mãos dos nazistas e seus aliados.
- ELE NUNCA ESTEVE LÁ...
Ela disse de forma chorosa referindo-se a deus.
-Tanta propaganda, tanto enfeite, tanta decoração...mas nada disso tem serventia alguma! Onde estava ele? Para que serve os seus atributos? Sua bondade? Sua justiça...Onde estava o guarda de Israel? Onde estivera aquele que jurou à Abraão que defenderia sua descendência?
Ela completou:
-É tudo uma baboseira! Nada isso é real. Quem acredita na proteção divina e não se defende por conta própria, só acabará na pior...
Ela admitiu que o pior disso tudo era o fato de serem obrigados (ainda que de forma indireta) à manterem as aparências, a fé e a dizer que tudo aquilo estava dentro do plano redentor do deu poderoso.
Falavam-lhe que tudo aquilo era uma forma dele manifestar sua grandiosidade às nações pagãs e engradecer ainda mais seu próprio nome na face da terra. Por isso, honras, louvores e obediências deviam-lhes ser ainda maiores por parte dos que foram resgatados com vida e de seus descendentes.
Que coisa...não era mais fácil agradecer por uma tragédia evitada que exaltá-lo pelos poucos que sobreviveram?
Era o fim (ou início?) da picada.
Eu não sabia o que dizer. Isso era um fato evidente, tão claro quanto o sol do meio dia.
Evidentemente que deus era apenas um enfeite de prateleira.
Era notório que qualquer pessoa que tentasse dizer o contrário daquilo que o folclore popular diz (ou os comerciantes da fé) seria duramente punido ou perseguido por gente igualmente iludida e frustrada, porém com um forte teor de esquizofrenia ou que sofriam de uma seria necessidade de aprovação pública e confessar o deus que tudo pode e nada faz é a melhor forma de demonstrar isso.
Alguns outros (segundo ela) temiam ser deserdados de suas heranças caso assumissem uma posição de fé contrária às de suas raízes familiares. Por isso fingiam, era ateus em particular e crente em público. Não eram vulgares, hipócritas ou levianos. Participavam dos encontros religiosos com intuito de socializar, não de temer ou venerar o invisível.
CONTINUA...
Esta é a quarta parte do texto TANTOS ATRIBUTOS E NENHUM DELES FUNCIONAM.
Texto escrito em 5/6/22
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.