demônio mudo
só parte#
No meio da madrugada tenho um insight afegão. Um sentimento vindo do Afeganistão, um aviso, premonição. Como ser vivo sem rosto, sem voz, sem corpo. Como viver tendo o próprio corpo entregue aos corpos, desejos e mandatos alheios. Como pode haver feminino e plural quando a possibilidade de gênero e múltiplo é sifr, nula, zero. Nada, nunca kaput. Acordo em desespero, semidesperta, alerta. Sou homem ou sou mulher. Se homem, somente um sonho mau. Se acordo e sou mulher, ou é um pesadelo, ou, então, vivo no desespero final. Não há maior despenhadeiro, é a boca do abismo que aguarda, espreita, assusta e mata. Há ainda pior constatação, acabo de lembrar, de sentir, de imaginar, filhos, não, pior, filhas, filha. Não posso dar luz a uma filha nessa escuridão. Não há claro, espaço, tempo ou chance para uma menina no Afeganistão. Que ano estamos. Que década, qual século, onde deixamos passar o momento de mudar a escrita, a interpretação, a narrativa do que foi escrito há quanto tempo-milênios. Indago tudo com interrogação. Acordo, tomo um gole da água do copo que me aguarda ao lado da cama. Parece ter algo no fundo do copo, um olho, um corpo no copo que me olha, do fundo, no fundo do copo, no fundo da água, me olha, me vê, espreita, um pequeno demônio noturno, aquático, mudo. Era o meu pequeno abismo, um demônio afegão, preso na Redenção.