MOURNING BECOMES ELECTRA: DA FATALIDADE À HEREDITARIEDADE, DO DETERMININISMO AO DESEJO

MOURNING BECOMES ELECTRA: DA FATALIDADE À HEREDITARIEDADE, DO DETERMININISMO AO DESEJO

Ivy Gobeti

Resumo

Trilogia composta por Eugene O’Neill, Mourning Becomes Electra conta a história da Orestia, de Ésquilo, transposta para os Estados Unidos do período pós Guerra Civil. O objetivo deste trabalho é analisar o papel da hereditariedade como agente da desgraça substituindo a vontade dos deuses, que era o fator determinante para os eventos de destruição nas tragédias gregas. A peça foi analisada e citada a partir do original em língua inglesa.

Palavras-chave: Drama moderno norte-americano. Eugene O’Neill. Mourning Becomes Electra.

Abstract

The trilogy by Eugene O’Neill, Mourning Becomes Electra, tells the story of the tragedy by Aeschylus, Oresteia, transposed into the United States of the post-civil war period. The objective of this study is to analyze the role of heredity as the agent of disgrace replacing the will of the gods, which was the triggering factor for the destructive events in Greek tragedies. The play was analyzed and cited considering its original version in the English language.

Keywords: Modern North American Drama. Eugene O’Neill. Mourning Becomes Electra.

O desejo e a tragédia de O’Neill

Tenho um sentido inato do júbilo pela tragédia, que deriva de uma grande reverência ao sentimento grego da tragédia. A tragédia do Homem talvez seja a única coisa significativa a seu respeito. (O’NEILL, Eugene em entrevista a BOSWELL, Young, New York Tribune, 1923. Republicada no livro ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. São Paulo: Scritta, 1995)

Escrever sobre a obra de Eugene O’Neill é, quase que inevitavelmente, escrever sobre sua vida. Sendo um dos dramaturgos mais autobibliográficos da história do teatro, grande parte de seus estudos busca abranger sua história, mais peculiarmente a história de sua família, o que se deve ao fato de que o autor inspira diversos estudos em psicanálise. As obras de O’Neill frequentemente nos rementem a um período de sua trajetória, no que diz respeito a Mourning Becomes Electra, os temas guerra e morte também fazem alusão a eventos marcantes para o autor, que testemunhou a Segunda Guerra Mundial e passou pela experiência de sucessivos falecimentos em sua família.

Não é a intenção deste estudo fazer uma retrospectiva dos caminhos de O’Neill, ainda porque sua história é comum aos estudiosos da dramaturgia, e qualquer leitor e/ou espectador que tenha entrado em contato com sua mais mundialmente difundida e conhecida peça, “Longa Jornada Noite Adentro”, fortemente autobibliográfica, na realidade praticamente conta em si o essencial drama de sua vida, conhece o contexto familiar que levou a tragédia a correr nas veias do escritor.

A vida de O’Neill em si carregou pesados tons de tragédia, e sua identificação com a forma grega não poderia ser mais íntima e pessoal. Tendo atravessado uma infância que, conforme suas próprias palavras, poderia ser comparada a um pesadelo, O’Neill desenvolveu vícios e comportamentos atribulados que o levaram, finalmente, a um período de reabilitação em um sanatório localizado em uma fazenda, para tratamento de tuberculose. Foi então, após diversos empregos e viagens para buscar algum tipo de realização profissional, sem que houvesse conseguido dar continuidade a nenhuma atividade, aos 23 anos, que passou a ler dramaturgia com intensidade, em especial Ibsen e Dostoiévski, compreendendo assim que escrever teatro era o que desejava para sua trajetória a partir daquele momento.

Elencar todos os dramas pessoais do autor seria dedicar boa parte deste estudo a uma descrição já exaurida nos estudos de sua dramaturgia, contudo, sua obra não pode ser separada de sua história, mais que em outros escritores. O ápice da ilustração de seu contexto familiar doentio se deu em sua obra póstuma, Longa Jornada Noite Adentro, porém, não é raro encontrar em tantas outras peças de sua dramaturgia suas memórias mais profundas espelhadas nos desastres de suas personagens.

Para o estudo da hereditariedade como o agente da desgraça em Mourning Becomes Electra é essencial recordarmos que o cerne da catástrofe pessoal de O’Neill foi sua família. Eugene veio ao mundo já carregado pela dor de sua mãe, não somente no sentido no qual todo e qualquer filho experimenta na dinâmica do parto, mas pelas complicações que seu nascimento causou à saúde de Mary Ellen Quinlan, sua mãe, que acabou por se viciar no uso de morfina buscando o alívio para sua condição. Seu pai, James O’Neill, foi um ator que conseguiu seu renome devido a repetidas atuações em O Conde de Monte Cristo, fator que, obviamente, levou Eugene a ter contanto com o teatro desde criança, na realidade, o autor nascera em um hotel no decorrer de uma turnê de seu pai, que sempre demonstrou comportamento emocionalmente indiferente.

Isso talvez não parecesse suficiente para configurar a verdadeira tragédia pessoal a qual constantemente nos referimos nos estudos sobre O’Neill, porém, é altamente pertinente ressaltarmos que a trajetória de flagelo familiar na qual o autor fora inserido não teve início com seus pais. James e Mary Ellen já carregavam, ambos a partir de suas histórias individuais, um passado de sofrimento no seio de suas famílias antes de virem a agregar posteriores padecimentos.

Ambos haviam chegado aos Estados Unidos com suas respectivas famílias irlandesas; o pai de Mary Ellen conseguira êxito financeiro, mas desenvolveu um alcoolismo que o levou à tuberculose e consequente morte pela doença. Já a infância e adolescência de James nos Estados Unidos foi repleta de restrições e necessidades, o que levou seu pai a voltar para a Irlanda e lá cometer suicídio. As profundas marcas dos períodos de insuficiência financeira foram os fatores determinantes para que James O’Neill priorizasse sua repetida atuação em uma mesma peça em detrimento de seu aperfeiçoamento artístico, uma vez que o espetáculo era popular e contava sempre com público pagante.

Juntos, pai e mãe de Eugene O’Neill experimentaram a perda de seu segundo filho, o desenvolvimento do alcoolismo de James, um processo de paternidade fora do casamento e o ingresso de seu filho mais velho ingressar no mesmo comportamento em relação ao álcool e fazer de sua vida um constante cair e levantar-se, até finalmente falecer aos 45 anos, após haver se entregado novamente ao alcoolismo em decorrência da morte de sua mãe.

A morte de seu irmão, Jamie, fora a última de uma sucessão de falecimentos que coincidira com o auge do reconhecimento artístico de O’Neill em vida, ao longo da década de 1920: primeiramente, seu pai falece em decorrência de um câncer, em agosto de 1920, em seguida, sua mãe adoece repentinamente em virtude de um tumor no cérebro vindo a falecer quase que imediatamente; o enorme apego de Jamie à mãe faz com que sua morte represente sua derradeira entrega ao álcool, que gera ao irmão mais velho de O’Neill complicações que o levarão então ao falecimento. O próprio Eugene O’Neill levou adiante sua herança maldita nos relacionamentos com os filhos, repletos de perturbações e comportamentos rígidos e polêmicos.

Contudo, O’Neill fora um sobrevivente; talvez seja ainda um sobrevivente, ao passo que o testemunhamos extrapolar seus dramas na própria dramaturgia ao passarmos pela experiência de sua obra. Interessante, neste contexto, ressaltar que ele mesmo havia tentado suicídio por overdose de Veronal, sua mãe tentou por afogamento, e seu avô paterno tivera êxito na tentativa, assim como seu primogênito, Eugene O’Neill Jr., que tirou a própria vida em 1950, e seu outro filho, Shane, em 1977.

O desejo que O’Neill exprimia na construção de seus personagens fazia parte de sua incessante busca por pertencimento, o indivíduo que se transfigurará no que for para se ver como realmente é. Seus heróis, para ele, o homem em sua luta com a vida, não buscam a realização de seu viver em nenhum sentido que pudesse remeter a algum romantismo, não, seu realismo rasga todas as ilusões, especialmente sobre a felicidade no convívio familiar, e é nas derrocadas pessoais da vida de cada personagem que seu desejo por viver, seja como tiver de ser, transparece em cada nova tentativa de adaptação, cada instante a mais que alguém respira.

Ainda que estudado como um pessimista em definitivo, a curso de seus personagens reflete uma verdadeiro duelo com a vida, pela própria vida. Em Mourning Becomes Electra seu desejo pela vida atravessa extensas cenas nas quais a morte caracteriza a imagem, o odor, a própria representação da condição de existir: morrer um pouco mais a cada dia; porém, ainda que todos padeçam, um a um, vítimas de suas próprias escolhas, as quais procederam na tentativa de tomar rédeas de seus rumos, Lavinia permanece, ainda que em completa escuridão, ainda que como autopunição, na vida.

Mourning Becomes Electra é uma trilogia composta por Eugene O’Neill no período em que seus estudiosos comumente intitulam de experimental, marcado especialmente por peças longas, de custosas produções. A primeira parte da trilogia é chamada “Homecoming”, e possui quatro atos; a segunda, “The Hunted”, possui cinco atos, finalmente, a terceira parte, “The Haunted” contém mais quatro atos.

Neste ponto serão apresentados os eventos mais relevantes e uma espécie de síntese dos acontecimentos em cada peça a fim de que, posteriormente, as comparações possam ser estabelecidas para que visualizemos, a partir de trechos de Mourning Becomes Electra, como O’Neill adaptou as questões da fatalidade determinada pelo desejo dos deuses ao caráter de maldição na hereditariedade dos Mannon.

O tema presente na Orestia é transposto para o contexto norte-americano do período pós Guerra Civil, em 1865. Agamemnon passa a ser Ezra Mannon, Electra se transforma em Lavinia, Clytemnestra é Christine, seu amante, Aegistheus passa a ser Adam, e Orestes é Orin.

Originalmente, na trilogia grega, Agamemnon retorna ao seu palácio após sua vitória na guerra de Tróia, porém, é assassinado pela esposa, Clytemnestra, e seu amante, Aegistheus, cuja motivação para auxiliar no assassinato não era apenas o amor da amante, mas também o desejo de vingança por um ato que havia sofrido a partir pai de Agamemnon.

Muitos anos se passam até o ponto em que Electra está aguardando o retorno de seu irmão, Orestes, que acaba procedendo com o assassinato de sua mãe e o amante. Na tragédia grega, os atos de Orestes são determinados pela vontade do deus Apolo; uma vez que Orestes corresponde aos seus desejos e comete os assassinatos, passa a ser perseguido pelas deusas da Fúria.

Athena, deusa da Sabedoria, exige que Orestes seja submetido a um julgamento público, constituído por cidadãos atenienses, que acabam por se encontrar completamente divididos em relação ao veredicto. Sendo assim, o caso é considerado impassível de resolução, Athenas seria a única, em sua condição de detentora da essência da Sabedoria, que poderia decidir o rumo do caso, e finalmente aponta que Orestes deve ser absolvido, levando ao encerramento da peça, quando a cidade celebra com uma procissão que uma nova ordem fora estabelicida após todos os atos cometidos e julgados.

Na tragédia moderna, não é mais o desejo dos deuses e a fatalidade incumbida por eles a cada uma das personagens que representa o centro da ação, aqui, são as personagens e seus conflitos internos, seus próprios fantasmas, e as consequências de suas próprias escolhas os fatores que determinam os eventos trágicos. Na versão de O’Neill, ainda que as personagens sejam impulsionadas por desejos de vingança, são seus comportamentos em relação ao próprio rumo de suas vidas que jaz no íntimo de cada ação que leva à tragédia, especialmente por que em vários momentos da peça são citados aspectos de cada que os perseguem desde a infância. A tragédia moderna traz a sensação de que suas personagens estão condenadas desde o início, e nada poderá fazer com que seu destino seja alternativo.

O indivíduo isolado é também uma característica recorrente da tragédia moderna. Na versão de O’Neill para a tragédia grega, esse isolamento aparece de forma bastante interessante, pois ele se aplica a todos os membros da família, e não apenas ao ápice do isolamento, que se dá com o destino de Lavinia. Todos vivem no âmbito de uma família, mas cada dentro de sua própria realidade, ou melhor, fuga da realidade, um cenário de esquizofrenia. A mãe passa a viver uma realidade alternativa com o nascimento de seu filho, para fugir ao martírio que seu casamento representava para ela, o pai vive encarceirado em seu comportamento emocionalmente distante, no qual nenhum enfrentamento é necessário, apenas aquele da carne exposta, como a guerra. O filho vive como se apenas sua mãe existisse, e a filha como se apenas o pai fizesse parte de sua vida.

A própria experiência de vida de O’Neill está presente na forma com que ele apresenta a tragédia originalmente grega, determinando a construção dos conflitos e personagens, suas relações doentias e seus sentimentos de não pertenecimento.

Quando as obras estavam sendo feitas, seus criadores muitas vezes pareciam, tanto para si mesmos quanto para os outros, estar sozinhos isolados, e serem ininteligíveis. E no entanto, muitas vezes, quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são as conexões, as correspondências, e até mesmo as semelhanças de época, que mais saltam à vista. O que era então uma estrutura

vivida, é agora uma estrutura registrada, que pode ser examinada, identificada e até generalizada. Em nosso próprio tempo, antes que isso aconteça, é provável que aqueles para quem a nova estrutura é mais acessível, ou em cujas obras ela está se formando de maneira mais clara, percebam sua experiência como única: como o que os isola das outras pessoas, ainda que o que os isolem sejam de fato as formações herdadas e as convenções e instituições que não mais exprimem e satisfazem os aspectos mais essenciais de suas vidas. (WILLIAMS, Raymond. Drama from Ibsen to Brecht, apud: CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.153)

A trilogia de O’Neill traz logo de início o conflito central entre mãe e filha, apresentando a desconfiança de Lavinia em relação ao comportamento de Christine, que é acusada por ela de trair Ezra Mannon com Adam Brant, um primo dos Mannon, afastado da família por ter sido gerado a partir de um caso que causara polêmicas, rivalidades e separações na família, que surgira repentinamente em suas vidas. Lavinia segue a mãe em visita para Nova Iorque, onde esta alegava ir para se encontrar com seu pai, que estava adoecido, desta forma, consegue a comprovação de que necessitava sobre o envolvimento amoroso de sua mãe com Brant.

Após confrontar a mãe e obter a confissão a qual almejava, Lavinia a ameaça alegando que revelará a verdade ao pai, assim que este retornar da guerra, caso ela não prometa se afastar de Brant para sempre e tirá-lo da vida de toda a família. Neste ponto é importante ressaltar que Brant estava cortejando Lavinia como parte do plano para despistar quaisquer desconfianças que ela por ventura pudesse vir a ter sobre sua presença na família, instruído pela própria Christine. Lavinia, contudo, deixou com que ele acreditasse estar sendo bem sucedido em suas investidas a fim de ganhar tempo e espaço para conhecer a verdade sobre sua origem e seu envolvimento com sua mãe. Mas a doentia relação entre mãe e filha assume que Lavinia reprimia um desejo amoroso por Brant, combinado ao áscuo que sentia por sua mãe e ao constante impulso por tomar seu lugar, em relação ao qual resistiu sempre em nome de seguir com seus planos de desmascarar sua mãe.

Christine, sabendo que não suportará mais viver ao lado de um homem que deixou de amar há muitos anos, e que a separação para um novo enlace, dessa vez com seu amante, não era viável, decide juntamente a Brant, que devem se aproveitar de que todos estão cientes do atual problema cardíaco de Ezra para causarem sua morte sem gerar quaisquer desconfianças.

Ezra regressa então ao lar após a guerra mostrando-se mais afetuoso em relação à esposa do que jamais dele se poderia esperar, alegando que o enfrentamento da morte nos campos de batalha o fez repensar os anos de casamento e sentir a necessidade de se reaproximar de Christine. Contudo, ela procede com seu plano e, após confessar seu envolvimento amoroso com outro homem e fazer com que seu desgaste emocional dê início a um infarto, dá ao marido veneno em lugar de seu remédio para o coração.

A surpresa que surge para arruinar os planos de Christine é que Lavinia ouve os soluços do pai e vai ao encontro dele poucos instantes antes de sua morte, quando ele aproveita para deixar a acusação de envenamento por parte da esposa sussurrada a Lavinia. Certa de que a mãe tirou a vida do pai, a filha decide que ela será desmascarada a qualquer custo e justiça a seu pai será executada.

Após o funeral de Ezra Mannon, Orin, seu filho também regressa da guerra. Fortemente apegado e dominado pela mãe, Orin não tem dificuldades de acreditar em seja o que for que ela alegue, sabendo disso, e consciente de que Lavinia fará tudo o quanto possível para convencer o irmão de sua culpa pela morte do pai, Christine se adianta e explica ao filho que a irmã perdeu os sentidos e está a inventar auspiosas conspirações. Orin rapidamente absorve a fala da mãe como verdade, porém, logo em seguida, é confrontado pela irmã, que o convence a participar em conjunção a ela de um plano para se certificar de que a mãe realmente tem Adam Brant como amante.

Os dois irmãos têm sucesso em fazer com que a mãe acredite que estarão ausentes da casa para que vá até Nova Iorque ao encontro de seu amante, para onde a seguiram. Após testemunhar todas as confissões possíveis de sua mãe, Orin e Lavinia a aguardam ir embora para que possam enfrentar Brant e dar cabo de seu plano: Orin mata Brant a tiros e revira todos os seus pertences a fim de proporcionar à cena o caráter de um arrombamento seguido de morte, enquanto Lavinia regojiza-se perante ao cadáver por ter feito justiça ao pai.

Ao regressarem, Orin não pode se conter e deixar que a mãe descubra sobre a morte do amante sem despejar sua indignação sobre ela, e declara que fora ele quem o matou, crime pelo qual passará impune diante da justiça dos homens devido ao fato de que a polícia julgou que a vítima houvera sido vítima de um assalto.

Completamente atormentada pela morte do amante e todas as suas esperanças de uma vida renovada, longe do lar que ela detestava, Christine tira a própria vida com um tiro, levando Orin ao desespero da culpa por ter sido o responsável pela sua morte.

Lavinia decide então que ela e o irmão devem partir em uma viagem para ilhas distantes, onde poderão esquecer tudo o que havia acontecido, e assim procedem por um ano. Na volta para cara, Lavinia está mudada, fortemente parecida com a mãe, tanto fisica quanto emocionalmente, e Orin continua confuso e atormentado, assombrado pela culpa e os fantasmas do passado.

Um mês após seu retorno ao lar, Orin envelheceu profundamente, e parece tão velho quanto o pai era ao falecer, e procede com estranhos hábitos, quase sempre envolvendo isolamento. Decide escrever a verdadeira história de crimes da família, e passa a atormentar Lavinia com acusações sobre seus antigos sentimentos por Adam Brant e sua necessidade de ser como a mãe. Lavinia está sempre em estado de terror em relação ao comportamento do irmão, amedrontada pela ameaça constante de que a qualquer momento ele poderá confessar a alguém a verdadeira versão sobre as mortes na família.

Orin decide entregar seus escritos dentro de um envelope lacrado a sua noiva, Hazel, para que ela o entregue a seu irmão, Peter, noivo de Lavinia, no dia anterior ao casamento, para que Lavinia seja punida perdendo a chance de ter uma vida nova. Mas Lavinia descobre que Hazel está de posse do envelope, e declara ao irmão que se ele a fizer devolvê-lo, ela fará o que for de sua vontade. Orin dá a ela então o envelope e a faz prometer que jamais verá seu noivo novamente, e tenta convencê-la de confessar todos os seus crimes, para que possam se livrar do aprisionamento da culpa. Lavinia se recusa e no ápice da discussão em Orin, alega que se o irmão não fosse tão covarde, tiraria a própria vida para colocar um fim em sua culpa. Seduzido pela ideia de rever sua mãe e finalmente ser capaz de pedir perdão pelos seus atos, Orin se tranca no escritório do pai e comete suicídio.

São passados três dias da morte de Orin ao início do primeiro ato, no qual Lavinia pede para que a casa esteja repleta de flores para receber seu noivo, Peter, no dia do funeral. É o momento no qual Hazel, irmã de Peter, chega para enfrentar Lavinia e dizer que ela não pode se casar com Peter, pois a maldição de sua família já o atingiu, e seu caráter, sempre tão calmo e puro, já começara a se manifestar de maneira alterada e transtornada, arrasatado pela infelicidade que ela levara a sua vida com o peso de suas ações e segredos.

Ainda decidida a se casar com Peter, Lavinia reage à chegada do seu noivo com sentimentos confusos e ataques de histeria, no qual grita seu desejo desesperado por se casar com ele prontamente e desafiar a morte que mora em seu lar, até que finalmente se entrega à decisão de deixá-lo ir, contando sobre um caso passado que teve com um nativo das ilhas nas quais havia viajado com o irmão recentemente, para que Peter finalmente se convencesse de deixá-la.

Lavinia ordena que todas as flores sejam retiradas da casa e que todas as janelas e cortinas sejam fechadas para nunca mais serem abertas, para que, dessa forma, ela possa receber sua punição, que só poderia ser sentenciada por ela mesma, sendo a última dos Mannon: viver até seu fim dentro da casa que abriga todos os fantasmas da família, sem ter contato com qualquer vida fora dela.

A família: a maldição em O’Neill

Estou sempre e sempre tentando interpretar a Vida em termos de vidas, não apenas vidas em termos de caráter. Mantenho-me sempre muito consciente da Força que está por trás de tudo – Destino, Deus, nosso passado biológico criando nosso presente, não importando o nome que se dê a isso – Mistério, com certeza – e da eterna tragédia do Homem em sua luta gloriosa, autodestrutiva para fazer com que essa Força dê expressão a ele, em vez de fazer que seja apenas, como um animal, um incidente infinitesimal da expressão dessa Força. Tenho profunda convicção de que este é o único assunto sobre o qual vale a pena escrever e de que é possível – ou poderia vir a ser – desenvolver uma expressão trágica em termos de valores e símbolos modernos transfigurados no teatro, que pode, até certo ponto, fazer que uma audiência moderna possa experienciar uma enobrecedora identificação com as figuras trágicas em cena. É claro que isso é um sonho, mas, quando se trata de teatro, é necessário sonhar, e o sonho dos gregos na tragédia é o mais nobre de todos os tempos! (Carta reproduzida em Cargill et al., 1989, p.125-6)

Estas foram as últimas palavras de Eugene O’Neill, ilustrando quase que perfeitamente a íntima relação entre vida e morte através dos fantasmas de sua família, na qual uma se toma pela outra. Conforme a própria história de O’Neill nos revela, sua família representou uma grande força que o impelia à morte. Não somente pela presença atormentadora e constante do suicídio através das gerações, mas pelo próprio caráter da vida com a qual os que permaneceram seguiram. Dependência química e comportamentos de fuga insistente da realidade emprestavam aos membros da família O’Neill um aspecto com uma espécie de natureza morta. Mesmo tendo aparentemente encontrado certa paz após seu último casamento, Eugene O’Neill permaneceu com seus hábitos andarilhos, sempre se mudando de cidade, buscando incessantemente novos lares. Eugene nunca chegou a conhecer um lar propriamente dito, nascera, inclusive, em quarto de hotel, durante uma turnê em que seu pai atuava em sua peça mais popular; ironicamente, O’Neill acaba por falecer também em um quarto de hotel.

Todos os atos de todas as partes da trilogia Mourning Becomes Electra carregam insistentes descrições acerca das semelhanças entre pais e filhos na família Mannon. Semelhanças estas que se manifestam desde obviedades físicas, como cabelos e estrutura corporal, até a própria postura, jeito de andar, a forma com que se olham. Lavinia é bastante parecida com a mãe, Christine, e Orin com seu pai, Ezra, o que seria comum para qualquer família, mas, interessantemente, tais semelhanças estabelecem prontamente o grau de tensão existente nas relações entre pais e filhos, sendo que Christine representa uma espécie de rival para Lavinia, e Ezra tem o mesmo papel para Orin.

Logo no início da primeira parte da trilogia, “Homecoming”, um trecho descritivo demonstra a tensão central entre mãe e filha, que determinará tantas das ações primordiais de Lavinia:

Christine Mannon appears from left, between the clump of lilacs and the house. She is carrying a big bunch of flowers. Lavinia senses her presence and whirls around. For a moment, mother and daughter stare into each other’s eyes. In their whole tense attitudes is clearly revealed the bitter antagonism between them. But Christine quickly recovers herself and her air resumes its disdainful aloofness. (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

A attitude de Christine de se recuperar prontamente das sensações que possa vir a ter em relação aos seus conflitos com a filha é a mesma reação que a própria Lavínia demonstra ao reprimir quaisquer que sejam os sentimos que poderia ter por Adam em nome de enfrentar a mãe.

Essa rivalidade entre mãe e filha passar a ser mais óbvia, mas expressa, logo que se estabelece a relação das duas com Brant, uma vez que todos pressupõem que ele está cortejando Lavinia, quando na realidade é amante de sua mãe. Uma das principais tensões que isso acarreta é que não temos certeza da natureza dos sentimentos de Lavinia por Brant, o que, por si só, já é forte demonstrativo desse caráter emocionalmente distante dos Mannon, que dá àqueles de seu convívio a quase impossibilidade de conhecer quais poderiam ser seus reais sentimentos.

Fica a impressão de que Lavinia poderia ter sentimentos por Brant, ainda que pressupondo um envolvimento romântico, o mais provável, pelo perfil de obsessiva rivalidade com a mãe, é que tais sentimentos se originassem de seu insistente desejo de ocupar o lugar da mãe. Contudo, Lavinia havia conhecido Brant antes de iniciar e confirmar suas suspeitas em relação ao envolvimento dele com Christine, havendo a possibilidade de que, inicialmente, teria se apaixonado pelo capitão, porém, tendo crescido com a lição enfática de que seus sentimentos deveriam sempre ser reprimidos em nome da razão, Lavinia prioriza seus planos de enfrentamento e posterior chantagem em relação à mãe.

A figura de Brant aparece também para reforçar, desde início, a maldição que pressupõe o nome dos Mannon. Ele é o primeiro a demonstrar nojo pelo fato de possuir tal sangue, tal sobrenome, ou seja, tal marca da desgraça e da morte. Faz tudo para fugir de qualquer característica em si próprio que possa se associar ao comportamento da família que arruinou a vida de sua mãe, contudo, em alguns instantes ele mesmo se acusa de ter relances do comportamento dos Mannon.

Em uma conversa que entre Brant e Lavinia, na oportunidade de uma visita recomendada por Christine à casa dos Mannon a fim de parecer intensificar a corte à Lavínia, para despitar possíveis suspeitas, Adam prontamente coloca para Lavinia a discussão sobre quais seriam suas expectativas em relação à volta do pai, Ezra, da guerra. É quando aparece a relação também doentia de Lavinia pelo seu pai, neste caso, uma relação de fascínio e paixão, isenta da visão de quaisquer falhas que Ezra pudesse demonstrar. Isso reforça mais ainda a relação de rivalidade que ela tem com a mãe, não apenas pela relação de encantamento pelo pai, mas tanbém por esta ser pronunciada por Brant, amante de sua mãe, sangue de seu pai, que fingia estar interessado por ela. Todo esse cenário estabelece de forma muito intensa, por todos os ângulos, a força da rivalidade entre as duas, que vai se estendendo a todas as personagens.

Brant – […] Yes, you must be very happy at the prospect of seeing your father again. Your mother has told me how close you’ve always been to him.

Lavinia – Did she? (then with intensity) I love Father better than anyone in the world. There is nothing I wouldn’t do – to protect him from hurt! (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

É nesse momento que Lavinia declara, com ênfase, que ama seu pai muito mais que qualquer pessoa, especialmente na intenção de expressar com veemência que ela ama Ezra muito mais que a esposa dele, sua mãe, ou seja, deveria sempre estar no lugar dela.

Ainda nessa mesma conversa, Adam fala a Lavinia sobre sua semelhança física com a mãe, dizendo que não se encontram duas mulheres com características físicas tão semelhantes quanto as duas. Lavinia, por sua vez, dá a corda para que Brant se enforque, ou seja, deixa com que ele acredite que ela está sendo convencida de seu interesse romântico, apesar da repulsa que ela acaba por demonstrar em relação a ele, especialmente com as reações aos seus movimentos, sendo que ela já sabe do envolvimento dele com a mãe. Até que ela o conduz para as provocações necessárias para fazer com que ele chegue ao ponto das confissões que ela deseja, revelando saber sobre seu passado e trazendo a memória dolorosa da mãe de Brant, ponto fraco da personagem.

Brant – You’re so like your mother in some ways. Your face is the dead image of hers. And look at your hair. You won’t meet hair like yours and hers again in a month of Sundays […](O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

É neste ponto em que Adam tem uma fala que mostra fortemente a relação de maldição carregada no nome dos Mannon, com a hereditariedade como a própria chaga dos deuses na Antiguidade. Quando ele narra a história da mãe e do pai, sendo que o pai fora um Mannon, afirma com ira que a única atitude decente que ele teve em vida foi justamente tirar a própria vida. Aqui, a morte começa a pronunciar com ardor o nome da família, algo que será levado incensante e crescentemente até o final da peça, atingindo seu ápice na fala final de Lavinia: a única coisa que um Mannon pode fazer por si mesmo é se punir por ter nascido, punir-se por estar vivo, a vida não pertence aos Mannon. A única válida que um Mannon poderia fazer seria tirar a própria vida, ou se punir por estar vivo.

Brant – […] And what if I am? I’m proud to be! My only shame is my dirty Mannon blood! So that’s why you couldn’t stand my touching you just now, is it? […](O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

Um dos primeiros momentos em que fica demonstrado que na situação em que houver qualquer tipo de envolvimento por parte de algum membro da família Mannon, haverá também morte, é na fala de Brant, sobre o destino de sua mãe, sem renda e doente, desesperada ao buscar algum auxílio financeiro com Ezra, que, no auge de sua capacidade de distanciamento emocional, ignorou sua súplica, mesmo sabendo que tal atitude poderia levá-la à morte, como realmente a levou. Nesse período de extrema necessidade da mãe, o próprio Brant a havia abandonado, como um Mannon o faria.

Também na primeira descrição que aparece na peça sobre a aparência física de Ezra, assim que regressa à casa dos Mannon após a guerra, vemos uma figura completamente despida de emoções, apresentando um aspecto físico dos membros da família que será recorrente até o final da peça: seus rostos se parecem com máscaras, é mais acertado descrevê-los como imitações de vida do que faces vivas propriamente ditas. As palavras “estátua” e “madeira” também são usadas em várias oportunidades para descrever a aparência física das personagens.

[…] His face is handsome in a stern, aloof fashion. It is cold and emontionless and has the same strange semblance of a lifelike mask that we have already seen in the faces of his wife and daughter and Brant. (O’NEILL, 2004, Ato 2, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

No momento em que Lavinia confronta a mãe declarando que ela sabe sobre seu caso com Adam, depois das iniciais tentativas de negar tudo por parte de Christine e suas enfáticas confissões, a filha ouve finalmente a afirmação daquilo que havia sido sua assombrosa sensação desde a infância: de que era produto do áscuo de sua mãe. Christine assume que havia se casado com Ezra apaixonada, mas que tudo aquilo que a atraía no marido antes do casamento havia se convertido em completo nojo após. Como uma fatalidade suprema, Lavinia havia sido concebida a partir de um sentimento sem vida, sentimento esse que assim se tornara, segundo a mãe, justamente pelo distanciamento emocional do pai. Lavinia já havia nascido com o sentido de algo que já estava morto.

Christine – […] He was silent and mysterious and romantic! But marriage soon turned his romance into – disgust!

Lavinia – So I was born of your disgust! I’ve always guessed that, Mother – ever since I was little – when I used to come to you – with love – but you would always push me away! I’ve felt it ever since I can remember – your disgust! (O’NEILL, 2004, Ato 2, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

A mesma situação ainda coloca Christine expressando que seu envolvimento com Brant não teria ocorrido caso seu filho, Orin, não houvesse ido para a guerra. Mais um fato para ter aumentado o ódio que a esposa nutria por seu marido, uma vez que havia sido ele quem convenceu o filho da importância de lutar na guerra. Aqui começa a ser revelada a também doentia relação entre mãe e filho, com os mesmos relances de paixão e cegueira presentes na relação entre Lavinia e Ezra. A gestação de Orin ocorrera em um período em que Ezra estava longe de casa, e quando retornara, Christine estava envolta em encantamento com o filho, seu novo companheiro, que a afastara da lembrança do martírio que para ela representava aquele casamento. É nesta mesma conversa que Christine revela o que realmente pensa sobre Lavinia, ou seja, que sabe que a filha sempre cobiçou o seu lugar.

Chrstine – I know you, Vinnie! I’ve watched you ever since you were little, trying to do exactly what you’re doing now! You’ve tried to become the wife of your father and the mother of Orin! You’ve always schemed to steal my place! (O’NEILL, 2004, Ato 2, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

Já na conversa em que Christine tem com Brant, após as acusações, ameaças e chantagens da filha, para planejar a morte de Ezra, mais uma vez vem a persistência da hereditariedade, a maldição do sangue dos Mannon, e a insistência nas semelhanças físicas entre os membros da família. Adam declara que seria muito estranho se ele descobrisse que ela na realidade havia se apaixonado por ele em virtude do quanto ele se parece fisicamente com Ezra; é quando Christine declara que na realidade fora sua semelhança física com Orin que fez com que ela se apaixonasse por ele, este, que por sua vez, também se parecia com o pai. As relações doentias ficam completamente declaradas a esse ponto, e começa a vir à superfície o fato de que os membros da família Mannon parecem se transformar uns nos outros continuamente.

Brant – It would be damned queer if you fell in love with me because I recalled Ezra Mannon to you!

Christine – No, no, I tell you! It was Orin you made me think of! I was Orin! (O’NEILL, 2004, Ato 2, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

Ainda na questão da herança, uma problemática tão comum nas famílias, revela-se em uma fala de Brant a necessidade, mais uma vez, de tirar algo de um membro da família para poder enfim declarar que é detentor da posse. Adam declara que ao encontrar Christine pela primeira vez, sabendo que ela pertencia a Ezra, teve o impulso incontrolável de tirá-la do marido como parte de sua vingança, cenário do qual nasce seu amor por ela, demonstrando, repetidamente, que quaisquer que sejam os sentimentos gerados dentro de um Mannon, partem de um ódio, de um orgulho, e resultam em ações impulsionadas, então, por esses mesmos sentimentos.

Brant – (…) I hated you then for being his! I thought, by God, I’ll take her from him and that’ll be part of my revenge! And out of that hatred mu love came! It’s damned queer, isn’t it? (O’NEILL, 2004, Ato 2, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

Quando Ezra de fato regressa após a guerra, ele demonstra estar mudado em relação ao seu casamento com Christine, alegando que a recorrente convivência com a morte no campo de batalha fez com que repensasse todo o período em que fora casado e seu comportamento com a esposa. Fala sobre algo maior que sua própria existência, que sempre o acompanhou, algo que o impedia de administrar sua emoções; acaba por pedir perdão por suas atitudes no passado e declara que gostaria de se reaproximar da esposa. Na guerra, sua condição constante de estar face a face com a morte, a morte em sua concretização mais plena no corpo, fez com que Ezra se cansasse de viver em um estado de torpor.

Mannon – […] Something queer in me keeps me mum about the things I’d like most to say – keeps me hiding the things I’d like to show. Something keeps me sitting numb in my own heart – like a statue of a dead man in a town square […] You’ll find I have changed, Christine. I’m sick of death! I want life! Maybe you could love me now! (O’NEILL, 2004, Ato 3, Parte 1. Project Gutenberg of Australia)

É importante ressaltar que o início de todas as partes da trilogia, logo no primeiro ato, trazem personagens que fazem parte da tradição popular do local, são funcionários da casa, como o jardineiro Seth, figura recorrente, com seus falares particulares. No início do segundo ato há também, nesse contexto, a participação do médico responsável por cuidar da saúde de Ezra, comentando sobre seu falecimento por problemas no coração. Essas personagens e seus diálogos fazem as vezes do coro presente nas tragédias gregas, demonstrando a opinião popular sobre os acontecimentos e membros da família Mannon, preparando o ambiente e apresentando uma visão daquelas que seriam “as pessoas normais” acerca desse conjunto de entes e parentes tão peculiar.

These people – the Bordens, Hills and his wife and Doctor Blake – arem as were the Ames of Act One of “Homecoming”, types of townsfolk, a chorus representing as those others had, but in a different stratum of society, the town as a human background for the drama of the Mannons. (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 2. Project Gutenberg of Australia)

É justamente nesse ambiente de conversa entre essas personagens, no início da segunda parte da trilogia, que fica bastante claro que essa imagem de frieza emocional dos Mannon era conhecida por todos. Afirmam que Lavinia não parece abalada com a morte do pai, ela exterioriza algo frio, gelado, não chora, não demonstra emoção alguma, o que, para os populares, se dava pelo fato de Lavinia ser “Mannon demais” para se deixar levar pelas suas emoções.

Mrs. Borden – Well, it only goes to show how you can misjudge a person without meaning to – especially when that person is a Mannon. They’re not easy to make head or tail of. Queer, the difference in her and Lavinia – the way they take his death. Lavinia is cold and calm as an icicle.

Mrs. Hills –Yes. She doesn’t seem to feel as much sorrow as she ought.

Mrs. Borden – That’s where you’re wrong. She feels it as much as her mother. Only she’s too Mannon to let anyone see what she feels. But did you notice the look in her eyes? (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 2. Project Gutenberg of Australia)

Uma fala interessante também, de uma dessas personagens, expressa a surpresa e ironia envolvidas na tragédia da morte de Ezra justamente no primeiro dia em que voltara ao lar após sair ileso da guerra. A morte e a guerra não estavam apenas no campo de batalha, a guerra se estabelecia nos lares daqueles que ficavam para trás ao verem seus familiares partirem para os combates. O ambiente bélico entre mãe e filha, entre pai e filho; Ezra havia sobrevivido a todas os riscos de morte nos campos de batalha, mas as consequências de sua partida, e da partida do filho, para a guerra, beneficiaram o estopim dos conflitos que levariam finalmente a sua morte.

Em mais uma das falas dessas pessoas que fazem o papel do coro, uma das personagens fala a palavra destino, fate, para falar sobre o comentário que sempre existiu acerca do orgulho dos Mannon, e como esse sentimento tão forte nos membros da família acabaria por levá-los à ruína. O orgulho dos Mannons sempre fora maior que tudo, e um dia eles seriam humilhados, não haveria condições de fuga de um cenário como este, com o orgulho passando de geração para geração; o comportamento herdado da família faria então todas as vezes da fatalidade e do desejo dos deuses, do qual, na tragédia grega, não haveria hipótese de escapatória.

Mrs. Hills – Maybe it is fate. You remember, Everett, you’ve always said about the Mannons that pride goeth before a fall and that some day God would humble them in their sinful pride. (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 2. Project Gutenberg of Australia)

Mais uma vez em trecho descrito volta a aparecer a caracterização dos membros da família Mannon como uma espécie de natureza morta, uma vez que são descritos a partir de seus retratos sobre as paredes. Algumas personagens chegam, em determinados momentos, a conversar com outras pessoas da família do retrato, como se a mesma reação que se espera de uma imagem que é apenas reprodução da vida fosse esperada de uma conversa real com um Mannon de carne e osso.

Depois da morte de Ezra, Lavinia está convencida de que a mãe fora a causadora da morte do pai, e sabe que precisa convencer o irmão disso. Christine, conhecendo a intensidade de sua influência sobre o filho, se adianta, uma vez que tem consciência dos próximos passos pretendidos pela filha. A mãe então conta a Orin sobre todas as acusações que a irmã tem feito a ela, e o convence de que ela está fora de si e histérica. Ela apela aos sentimentos mais profundos do filho em relação a sua maternidade, declarando que sempre o tivera como carne da própria carne, diferentemente de Lavinia, que sempre identificara como Ezra. Aqui é o momento em que ela expressa veementemente o desejo de não pertencer àquela família, e de ver no filho alguém que não carregava aquele sangue, alguém que fosse filho apenas dela.

Christine – (…) But we’ve always been so close, you and I. I feel you are really – my flesh and blood! She isn’t! She is father’s! You’re a part of me! (…) I know I can trust you to understand now as you always used to. (with a tender smile) We had a secret little world of our own in the old days, didn’t we? – which no one but us about.

Orin – You bet we did! No Mannons allowed was our password, remember!

Christine – And that’s what your father and Vinnie could never forgive us! But we’ll make that little word of our again, won’t we? (O’NEILL, 2004, Ato 2, Parte 2. Project Gutenberg of Australia)

Depois que Lavinia acaba por convencer Orin a testemunhar o caso de Christine e Brant, levando o irmão a matar o amante da mãe, mais um momento em que se estabelece a a perturbação a partir das semelhanças físicas. Após matar Adam, Orin observa seu rosto e percebe o quanto ele era parecido com Ezra. Em diálogo anterior com Lavinia, Orin relata à irmã que cada homem que matava durante a guerra parecia ser sempre o mesmo homem, era como se ele estivesse sempre matando a mesma pessoa, que eventualmente vinha a ter o rosto de seu pai. Com Adam, isso se repetira, dessa vez de forma assombrosamente concreta uma vez que em seu rosto verdadeiramente podia ser vista a imagem de seu pai. Mais uma vez, um membro da família se transfigurava no outro, sempre pelo advento do ódio e do desprezo.

Orin – By God, he does look like Father!

Lavinia – No! Come along!

Orin – This is like my dream. I’ve killed him before – over and over.

Lavinia – Orin!

Orin – Do you remember me telling you how the faces of the men I killed came back and changed to Father’s face and finally became my own? He looks like me, too! Maybe I’ve committed suicide! (O’NEILL, 2004, Ato 4, Parte 2. Project Gutenberg of Australia)

Viver, ainda que com a morte

A luta do Homem para dominar a vida, de se afirmar e insistir que ela não tem significação fora dele mesmo; onde ele entra em conflito com a vida, o que ele faz a cada virada e sua tentativa de adaptar a vida às suas próprias necessidades, o que não consegue; é o que quero dizer quando digo que o Homem é um herói. (O’NEILL, Eugene em entrevista a BOSWELL, Young, New York Tribune, 1923. Republicada no livro ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. São Paulo: Scritta, 1995)

A luta de O’Neill foi a própria luta do drama do homem moderno, e foi a própria dor do homem da tragédia moderna: impor-se como agente único de seu caminho, pretender ser seu próprio criador, moldar a partir de sua subjetividade todas as suas dores e todos os seus prazeres. Esse desespero de desejar ser por si e fazer por si esteve sempre em conflito com as forças pré-determinantes do caminho do homem, no caso de O’Neill, foi constante sua investigação sobre o que estaria por trás e acima dos eventos na vida de cada indivíduo, eventualmente, o próprio O’Neill desistiu da busca por uma ou mais respostas; Mourining Becomes Electra representa sua tentativa de ver a hereditariedade como essa força que se opunha ao homem em seu jogo de fazer sua vida por si só.

Depois que Lavinia e Orin matam Brant, e Christine acaba por cometer suicídio por conta disto, e Orin passa a se sentir confuso e fortemente culpado, Lavinia decide que é hora dos dois se afastarem da casa, a fim de poderem deixar para trás as lembranças de tantas morte e se reestabelecerem emocionalmente. É quando partem para uma viagem de navio com destino às ilhas das quais Orin e Brant tanto falavam. Um ano depois, os dois retornam para casa, onde Peter e Hazel estão a sua espera; Peter apaixonado por Lavinia, e Hazel apaixonada por Orin.

É neste ponto que as descrições insistentes sobre as semelhanças entre mãe e filah ficam muito mais fortes, pois Lavinia havia retornado com aspecto físico muito diferente, lembrando a mãe de uma forma quase que assustadora. A moça, que havia partido ainda com o corpo pouco desenvolvido e muito magra, passara a ter o porte de uma mulher detentora de intenso poder de sedução, e estar consciente disso. Ela passou a adotar outro estilo de vestimenta, outro estilo de arrumar o cabelo, tudo mais parecido com o que a mãe costumava escolher para si mesma. É quando fica claro que ela havia retirado de si o luto, abandonando suas antigas roupas pretas e as substituindo por cores, como o verde favorito de Christine.

Then Lavinia enters, coming up the drive from left, front, and stands regarding the house. One is at once aware of an extraordinary change in her. Her body, formerly so thin and undeveloped, has filled out. Her movements have lost their squareshouldered stiffness. She now bears a striking resemblance to her mother in every respect, even to being dressed in the green her mother had affected. (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

Por outro lado, Orin retornara como um morto-vivo. A culpa o consome de todas as formas, ele tem momentos de confusão mental em que começa a falar duramente sobre tudo o que fizera juntamente à Lavínia, vive a confessar seus crimes sozinho e para a irmã novamente. Fiscamente, perdera peso e tinha o aspecto de um doente. Enquanto sua irmã expressava mais vida que jamais havia conseguido transparecer, Orin era o retrato vivo da morte, como todo Mannon, de alguma forma, já havia sido em algum momento.

Lavinia – Don’t stop there, Orin! What are you afraid of? Come non! (He comes slowly and hesitatingly in from left, front. He carried himself woodenly erect now like a soldier. His movements and attitudes have the statue-like quality that was so marked in this father. (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

Todos comentam sobre a mudança na aparência física de Lavínia, mas Orin, em uma de suas atormentadas conversas com a irmã, chama sua atenção para o fato de que sua alma foi se tornando cada vez mais semelhante à alma da mãe durante a viagem que haviam feito. Como se ela houvesse roubado a essência de Christine e agora vivesse liberta com sua morte, podendo, finalmente, viver como ela de forma plena. Mais uma vez um Mannon toma o lugar do outro, o que, para eles, acaba sempre por significar a morte de alguém, ou causar a morte daquele de quem se toma o lugar.

Orin – I mean the change in your soul, too. I’ve watched it ever since we sailed for the East. Little by little it grew like Mother’s soul – as if you were stealing hers – as if her death had set you free – to become her! (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

Do dia em que eles retornam à casa, início do ato um da terceira parte da trilogia, até o início do ato dois, passa-se o período de um mês. Nesse intervalo, Lavinia decide se casar com Peter, e convence o irmão a se casar com Hazel. Porém, o estado emocional de Orin só piorara, sendo que ele havia desenvolvido perturbadores hábitos, como passar o máximo de tempo trancado evitando que qualquer raio de luz pudesse adentrar o recinto. A situação começa a ficar insustentável ao passo em que Lavinia não deixa o irmão sozinho na presença da noiva nem por um minuto, com medo desesperador de que ele, em um de seus episódios, acabasse por confessar toda a verdadeira história por trás das mortes na família.

Orin havia envelhecido a ponto de parecer fortemente com o pai na idade em que tinha no evento de seu falecimento. Para ele, a escuridão passara a ser necessária, uma vez que a luz do dia era acusadora demais para sua convivência, ela mostra as coisas como realmente são, e apenas a noite, a morte do dia, poderia servir de habitat a um Mannon.

I hate the daylight. It’s like an accusing eye! No, we’ve renounced the day, in which normal people live – or rather it has renounced us. Perpetual night – darkness of death in life – that’s the fitting habitat for guilt! You believe you can escape that, but I’m not so foolish! (O’NEILL, 2004, Ato 1, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

Uma fala bastante marcante, que demonstra toda a perturbação com que o casal de irmãos vive naquela casa, toda a repetição da desgraça e o assombro dos fantasmas, acontece quando Orin diz à Lavínia que ele agora está no lugar do pai, e ela está no lugar da mãe, sendo que agora é Lavinia quem deseja se casar e se livrar de Orin, assim como queria Christine se livrar de Ezra. Eles são presos uns aos outros, não vivem como uma família a não ser pela culpa, medo e ameaça que os une.

Orin – Can’t you see I’m now in Father’s place and you’re Mother? That’s the evil destiny out of the past I haven’t dared predict! I’m the Mannon you’re chained to! So isn’t it plain. (O’NEILL, 2004, Ato 2, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

O ápice de Lavínia se transformando na própria mãe acontece quando, após o suicídio de Orin, ela tem uma conversa com os retratos da família. Ela os encara de maneira desafiadora, alegando que havia cumprido tudo o que lhe cabia em relação a eles, e que não mais viverá como eles viveram, uma vez que fora a única que restara. Lavinia declara, então, que viverá apesar dos Mannon, pois não é mais Mannon, é apenas filha de sua mãe. O desejo de se tranformar completamente na própria mãe, mais uma vez, que em vida desejava ardentemente não ser Mannon, e que seu filho fosse apenas filho dela.

She turns to go and her eyes catch the eyes of the Mannons in the portraits fixed accusingly on her – defiantly. Why do you look at me like that? Wasn’t it the only way to keep your secret, too? But I’m through with you forever now, do you hear? I’m Mother’s daughter – not one of you! I’ll live in spite of you! (She squares her shoulders, with a return of the abrupt military movement copied from her father which she had of old – as if b the very act of disowning the Mannons she had returned to the fold – and marches stiffly from the room.) (O’NEILL, 2004, Ato 3, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

Três dias passados da morte de Orin, Lavinia está trajada de luto, e pede que a casa seja preenchida com flores para que ela receba seu noivo, Peter, no dia do funeral, em uma desesperada busca por algo que desse ao ambiente algum aspecto de vida. Pretende sentir alguma alegria na vida nova que começará, agora sem a presença de nenhum Mannon. Sua imagem, porém, voltara a ser aquela de antes de sua viagem, seca, com a postura de estátua, sem brilho. A morte havia se repetido e devolvido a ela sua aparência sem vida, ou seja, ela sabe que é uma Mannon mais uma vez, está vestindo a morte novamente, é o combina com a família.

O próprio Orin havia dito à Lavinia que ela pensava que poderia escapar à maldição dos Mannon, mas ele sabia que ela jamais poderia. No ato quatro da terceira parte da trilogia, o último ato da peça, Lavinia recebe a visita de Hazel, irmã de Peter, declarando que se ela realmente amasse Peter, deixaria que ele vivesse em paz, longe de sua presença, que já havia começado a levar a desgraça para os seus dias. Peter jamais poderia viver de verdade caso se casasse com Lavinia, seu comportamento sempre doce e calmo para com a família já havia começado a mudar, e diante da alegação de sua mãe e irmã sobre os infortúnios que Lavinia que lhe causaria, havia rompido relações com as duas, que sempre amara ternamente. Ou seja, mais uma vez qualquer presença de um Mannon só acarreta destruição e, em um ou outro sentido, a morte; neste caso, a morte da relação de Peter com sua família, que sempre havia sido uma relação de afeto.

Quando Lavinia finalmente vê que sua situação é insustentável, e que deve dizer ao Peter que eles não devem se casar e que ele deve se afastar permanentemente dela, ela passa a se usar de uma história já adiantada por Orin, sobre um caso que ela teria mantido com um dos nativos na ilha à qual haviam viajado. Dessa forma, consegue com que Peter se sinta convencido de que não deve se casar com ela; tomado pelo sentimento de áscuo por Lavinia, Peter vai embora, representando a última pessoa com quem Lavinia haveria de ter contato em sua vida.

Lavinia – I can’t marry you, Peter. You mustn’t ever see me again. Go home. Make it up with your mother and Hazel. Marry someone else. Love isn’t permitted to me. The dead are too strong! (O’NEILL, 2004, Ato 4, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

Na última cena, ao adentrar a casa, Lavinia declara a Seth que não sairá da vida como sua mãe e seu irmão o fizeram, pois a atitude deles foi uma fuga à punição que lhes era devida. Lavinia era a última Mannon viva, e na inexistência de quem pudesse a punir, decide que sua sentença se dará por si mesma, só ela poderia se punir. É quando decide que viverá sozinha naquela casa, que continha apenas morte, com todos os fantasmas da família, sem sair para o mundo, sem receber quem quer que fosse, sempre com as janelas e cortinas fechadas, o habitat da culpa. Até que partisse da vida como a última Mannon, carregando consigo a desgraça de seu sangue, para que nunca mais fosse difundida sobre a terra.

Lavinia finalmente transfigura, da forma mais concreta e perturbadora possível, a imagem da vida que todos os Mannon carregaram: a morte. Deixando claro que seu destino se deu pelo fato de ser uma Mannon e nada mais, seu sangue era sua chaga de nascença, e jamais houve direito à felicidade e ao amor para quem o carregasse.

Lavinia – Don’t be afraid. I’m not going the way Mother and Orin went. That’s escaping punishment. And there’s no one left to punish me. I’m the last Mannon. I’ve got to punish myself! Living alone here with the dead is a worse act of justice than death or prison! I’ll never go out or see anyone! I’ll have the shutters nailed closed so no sunlight can ever get in. I’ll live alone with the dead, and keep their secrets, and let them hound me, until the curse is paid out and the last Mannon is let die! (with a strange cruel smile of gloating over the years of self-torture) I know they will see to it I live for a long time! It takes the Mannons to punish themselves for being born! (O’NEILL, 2004, Ato 4, Parte 3. Project Gutenberg of Australia)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Martin Claret, 2007.

LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 2006.

O’NEILL, Eugene. Mourning Becomes Electrica. Project Gutenberg Australia, 2004.

RABELO, Adriano de Paula Rabelo. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O'Neill e de Nelson Rodrigues. 2004. Tese (Doutorado em Letras) –USP, São Paulo.

SZONDI, Peter. Teoria de drama moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac e Naify, 2002.

WILLIAMS, Raymond. Drama from Ibsen to Brecht, apud: CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.153.

_______________. Tragédia Moderna. São Paulo. Cosac & Naify, 2002.