ROTEIRO: A LITERATURA DOS FILMES
O Roteiro: A Literatura dos Filmes
Escrever cinema?
Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (...), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. (BARTHES, 2009, p. 19).
Filmes podem apenas ser assistidos ou podem também ser lidos? Todos os familiarizados com o mundo do cinema somente um pouco além de ir às salas para apreciar o que está em cartaz, ou baixar os mais recentes blockbusters, sabem da existência de premiações internacionalmente difundidas, como o festival de Cannes e o famoso e popular Oscar. Dentre as premiações, temos as categorias de “melhor roteiro original” e “melhor roteiro adaptado”.
Mas, o que exatamente seria um roteiro cinematográfico? Certo, sabemos que ele corresponderia à parte escrita de um filme, popularmente, isso seria suficiente. No âmbito dos estudos em formação de cinema, seria uma discussão que abarcaria técnicas, erros e acertos, exemplos de roteiristas consagrados, visando ao produto final: o filme. Contudo, e se pensarmos essa escritura como parte de uma manifestação literária? Qual ponto além do tradicionalmente levantado, e variavelmente concluído, “cinema não é literatura” poderia surgir ao se considerar dentro da relação literatura-cinema, uma comunhão de artes no que diz respeito ao processo de produção de um roteiro cinematográfico?
Ainda, ao tomarmos a literatura como sistema, há questões a serem consideradas acerca do público e da recepção no contexto dos roteiros cinematográficos. Por onde circulam as partes escritas de um filme, como leitor, como faria para encontrá-las? Há a possibilidade de entrarmos em uma livraria e pedirmos pelo roteiro de um filme? A leitura de roteiros de cinema estaria restrita aos envolvidos na indústria cinematográfica?
É claro, no escopo teórico, pelo qual se pautam as argumentações acadêmicas que se prezam, é em vão que se fugiria da aparentemente quase infinita escavação pelo mundo das letras, a inevitável questão: o que é literatura? Ao que se nota, os impasses que daí surgem fazem parte, para algumas escolas de pensamento mais que para outras, das limitações tácitas ou declaradas para que o roteiro de cinema seja legitimado como parte da literatura.
Coubesse na proposta de discussão a ser desenvolvida neste texto elencar as essenciais diferenças entre as visões acerca da razão literária a fim de concebermos um cenário do que se pensa sobre o roteiro cinematográfico pelo mundo, extensas seriam as considerações e pouco seria oferecido em relação a abranger a realidade do cinema para compreendermos o que seria a literatura dentro dela. Portanto, delimitados os interesses mais pertinentes para a abordagem de uma relação mais ampla e muito menos simplista entre cinema e literatura, inseridos nas tantas visões acerca do conceito de literatura em si, partiremos de um princípio não formalista, deixando de lado a necessidade de visualizarmos um livro, por assim dizer, a ser entregue a um leitor, pronto e acabado, como que com as diretrizes da experiência de leitura intrínsecas em seu desenvolvimento, apenas aguardando para serem descobertas e compreendidas.
Não se trata, ainda, de uma busca pela afirmação do roteiro cinematográfico como literatura, para que este seja irmão dos textos das peças teatrais, contos ou romances nas estantes das livrarias, ou ainda para que seja ensinado nos cursos superiores em literatura como referência de escrita de boa ou má qualidade. Que artes conversam entre si e se prestam a intercâmbios de essências e facetas não é novidade, nem popular nem acadêmica. Pode-se escrever um poema sobre uma pintura, compor uma canção sobre este mesmo poema, pode-se dançar tragédias escritas na Antiguidade. Portanto, o objetivo aqui não busca o encontro de declarações que confirmem nem uma arte pela outra nem a superioridade de uma em relação à outra. No imaginário do homem dançam, cantam, atuam e cria-se uma gama de expressões suficientemente ampla, contudo manifestando-se de forma inevitavelmente interligada, para que ruas, esquinas e calçadas em algum ou tantos momentos se entrelacem, sem que se anulem.
Entender o roteiro cinematográfico muito além das questões restritivas da produção literária é estabelecer relações que podem sair do texto e serem extrapoladas para a projeção de uma leitura; e o que mais poderia se relacionar tão intimamente com a palavra cinema que a noção de projeção? Sim, aquele processo de leitura que acontece na mente do leitor, em que as palavras, no plano das ideias, saem do papel e tomam as formas de personagens e cenários com cores, sensações, temperaturas e cheiros, essa experiência, que sem a atuação do leitor não caberia, é o que acontece em um filme, a partir de seu roteiro, com a diferença de que, aqui, todos podemos visualizar a concretização de uma leitura. O filme, o produto final do roteiro, seria a imagem de uma leitura.
Ainda que os estudos literários venham ganhando novas ou reformuladas abordagens desde a segunda parte do século XX, ainda nos são persistentes os desenhos daquela visão tão familiar desde as primeiras lições sobre literatura ainda na escola. Calcificadas em nossos pensamentos, imediatamente, ao nos depararmos com discussões acerca da literatura, são retomadas as noções sobre um verdadeiro quadro de autores, momentos históricos e movimentos. Por sua vez, isso nos leva a uma intrínseca necessidade de referência a um cânone a fim de que sejam estabelecidas comparações não somente no que diz respeito a obras, mas também para os gêneros.
Os grandes gêneros, aqueles que se encontram consagrados tanto para a academia quanto para a noção popular de literatura, foram os objetos primordiais dos estudos em literatura por um período bastante significativo, acabando também por fixar uma forte valoração formal, na qual estruturas fixas tanto para a criação quanto para o caráter concreto final do produto literário se sobressaíam como a própria literatura em si. Portanto, pensar em literatura como autores, obras e movimentos e parecer não fazer sentido tentar localizar o roteiro cinematográfico nessa ordem salta como algo natural.
Obviamente, as heranças do formalismo não nos ajudariam a pensar o roteiro cinematográfico em sua porção literária por beira nenhuma, tampouco beneficiaria quaisquer impressões literárias dentro de uma experiência fílmica. Já a visão sobre o ser social que produz a literatura, consagrada no conhecimento como marxista, pode contribuir para a tentativa de encontrar o lugar do roteirista em sua escrita, e da sua escrita no processo de comunhão entre literatura e cinema.
Nesse sentido, as contribuições de Roland Barthes acerca da análise da narrativa conversam com as propostas de Jean Paul Sartre em sua obra “Que é Literatura”. Para Sartre, existem as relações entre o ato de estar engajado politicamente e o ato de escrever. “O escritor engajado sabe que a palavra é ação” (Sartre, 1988, p.35), ou seja, sabe que pode, a partir de sua escrita, exprimir e expressar realidades, tirar realidades da prisão de suas visões e transpô-las para a linguagem; sem projeção não há maneira de articular mudanças.
Para que esse engajamento atinja efeito, é imprescindível que exista então o papel do leitor. A experiência de leitura é o que criará essa revelação, esse momento no qual o engajamento do autor passa para aquele que lê, que passa, então, a contribuir com o processo de significação. Pensando em um roteiro cinematográfico, a sua escritura não seria a completa projeção da intencionalidade do escritor, seria na realidade o meio para que ela acontecesse na forma em que será apresentada ao espectador (em lugar do leitor) para a completude da experiência fílmica, na qual a sua participação efetiva o processo de significação.
Se trouxermos nosso pensar sobre o panorama literário para a contemporaneidade, não ficará penoso enxergarmos que as artes como um todo sofrem influência e influenciam a mídia, e tantos os recursos visuais usados para chamar, manipular e prender a atenção do espectador, apreciador, consumidor. O sujeito inserido neste cenário que se torna um roteirista acaba por manifestar um lugar histórico que o leva a ter uma grande oportunidade de expressar realidades e críticas a tais usando-se de filmes que terão, talvez, um alcance e apelo mais amplos e imediatos que alguns livros, para determinados setores da sociedade.
Claro, no âmbito dos filmes independentes, como costumam ser classificados, essa é uma prática mais constante, ou até esperada, contudo, autores vastamente conhecidos, como Woddy Allen , por exemplo, têm uma proposta de crítica que desnuda o âmago de personagens ordinários, em seus contextos e grupos sociais, atingindo um extenso número de apreciadores. Mas há também a produção de uma série de comédias, algumas ao estilo do exagero, que geram certas polêmicas ao tratarem de situações bélicas e suas implicações, como, por exemplo, a recente febre resultante da divulgação do longa “A Entrevista” . Tipicamente estadunidenses, essas comédias quase sempre estão carregadas de críticas à própria sociedade e estilo de vida dos Estados Unidos da América; escritas e atuadas por nativos, é comum que contem com uma série de participações especiais de atores conhecidos por atuarem, fora das telas, em causas políticas e ou sociais.
Ainda neste âmbito da crítica, é imprescindível que falemos a respeito dos documentários. Este gênero não é tão popular e costuma agradar um público mais restrito, aquele que, no geral, tem maior interesse em se aprofundar nos aspectos históricos, econômicos e sociais das realidade humanas.
Em uma breve comparação, apenas a título de contextualização literária, podemos ler romances baseados em fatos históricos, como, por exemplo, toda a literatura do Holocausto, tão vasta a ponto de ter criado um sub-gênero, contudo, ainda que muitas dessas obras apresentem um cunho híbrido, contendo jornalismo e literatura, romances como esses não são documentais; ainda se tratam de um sujeito com impressões próprias que escreve sobre um evento histórico. Ainda que existam controvérsias sobre a escrita jornalística e sua relação pura com a verdade, podemos considerar que se o meu desejo enquanto leitor é o de ler tão somente os fatos sobre o Holocausto, o mais recomendado seria que eu acessasse as publicações de jornais e revistas da época ou ainda entrasse em contato com livros escritos por jornalistas.
No universo cinematográfico há também uma vasta produção de filmes que abordam o Holocausto, contudo, seus roteiros corresponderiam a esses romances, trazendo roteiristas, diretores e produtores com uma visão, uma leitura pessoal sobre o evento histórico. Já os documentários corresponderiam às produções jornalísticas, ainda que, é claro, nos apresentando uma forma particular de expor essa verdade, mais evidente no cinema, que nos coloca também uma série de escolhas visuais que podem tender a determinadas impressões e sensações sobre testemunhos, por exemplo.
Os documentários passaram a chamar mais a atenção popular após o primeiro Oscar do diretor/escritor Michael Moore , com sua obra Tiros em Columbine . Típico exemplo do cineasta engajado, Moore traz um tom diferenciado ao gênero documentário e insere tons satíricos empregando, inclusive, aspectos musicais muito mais frequentes que nos modelos de documentários aos quais estamos mais habituados a assistirmos. Moore é também escritor, mesclando jornalismo e ácido sarcasmo, como na obra “Stupid White Men” , sendo um bom exemplo dessa dinâmica contemporânea entre literatura e cinema, levando às estantes das livrarias os espectadores de seus filmes documentários.
Barthes considera que a forma da escrita, a escritura, é o fator que poderá gerar, para além da mensagem que o próprio texto carrega, uma significação que extrapole o conteúdo narrativo em si. Essa escritura, no que concerne ao cinema, é o próprio roteiro, a forma particular com que se escreve um filme, e é justamente o fato de que essa forma de escrita cinematográfica é a disposição das palavras para que gerem efeitos imagéticos que faz do roteiro uma espécie de gênero. Não discutindo sobre a qualidade dessa escrita em si, ela tem um caráter específico no mundo das palavras, tem um caráter específico no mundo das imagens literárias, e sua extrapolação se dá pelo próprio desenvolvimento do produto fílmico.
O propósito do roteiro cinematográfico: o embrião de um filme.
Mesmo que o cinema ainda se constitua em uma arte jovem, seu imenso desenvolvimento e crescimento já rendeu diversas publicações nas mais variadas áreas do conhecimento. Cinema e filosofia, cinema e sociologia, cinema e literatura, cinema e demais artes visuais, enfim, escreve-se sobre tudo quanto é possível dentro das mais variadas relações que a sétima arte apresenta. Não é diferente em relação à literatura sobre a escrita de roteiros cinematográficos.
Não é estranho nem ao consumidor mais desatento o quão crescente é no mercado a comercialização de manuais. Como uma espécie de google expandido, há uma proliferação de “como fazer”, “passos essenciais para a elaboração de”, “tudo o que você precisa saber para fazer um”. Ora, ao falarmos de cinema certamente não poderia ser diferente. Para aquele que deseja ser roteirista de cinema, há uma série de livros-manuais com todos os passos necessários para a escrita de um roteiro bem-sucedido.
Para cavarmos a relação literatura-cinema, certamente esse tipo de receita não nos serve. Neste sentido, a obra do brasileiro Doc Comparato, “Da Criação ao Roteiro”, traz uma riqueza de teoria, comparações e contextualizações sobre o roteiro cinematográfico que é a dose adequada para encontrarmos os pontos de comunhão entre as duas artes.
Doc Comparato, nascido no Rio de Janeiro, é dramaturgo, escritor e roteirista. Em contextos tanto nacionais quanto internacionais, sua produção, iniciada por volta de 1978, vai desde o teatro até cinema e televisão. Vencedor de sete premiações internacionais, é responsável pelas séries e minisséries pioneiras na televisão brasileira. Sua carreira também percorre a atuação como professor universitário na Escola de Cinema de Berlim.
Compartilhando de algumas das concepções do francês Jean-Claude Carriere, pioneiro nesse tipo de publicação mais teórica sobre a produção cinematográfica, Comparato apresenta também exercícios específicos e boa dose de prática para o desenvolvimento de um roteiro, mas especialmente, e diferentemente de tantas outras obras sobre a escrita no cinema, o autor nos leva pelos caminhos em que o cinema encontra a dramaturgia e a literatura, de forma delicada e eficaz, estabelecendo associações naturais e essenciais.
Algumas das discussões acerca da legitimação do roteiro cinematográfico como literatura se pautam em uma espécie de comparação entre o texto escrito para um filme e o texto escrito para o teatro. Como sabe-se, o texto teatral, a dramaturgia, circula, é ensinada e estudada como literatura. Inicialmente, para fins de comparação, questiona-se se o fato de um ser legitimado como literatura não emprestaria ao outro a mesma condição.
O grande problema deste questionamento jaz no fato de que os dois textos são desenvolvidos para fins completamente diferenciados, ainda que ambos envolvam a atuação, o que constitui relevante semelhança, possibilitando sim um paralelo entre eles. Porém, essa aparente simplicidade da questão, envolvendo uma imediata referência à representação, atores, falas, cenários, tudo o que, por convenção ou conhecimento cultural, percebemos como sendo os pontos nos quais as duas artes se encontram, não é suficiente.
O mais importante a ser ressaltado para estabelecermos a diferenciação primordial é que um texto escrito para o teatro é um texto escrito para a representação em um palco. Sim, a produção de uma peça teatral também requer todo um leque de profissionais responsáveis por variados aspectos técnicos, som, iluminação, maquiagem, montagem e etc., porém, no que diz respeito ao produto escrito de uma peça representada, este não atende aos fins visuais, não contempla as necessidades técnicas particulares do mundo teatral. Já o roteiro de cinema é desenvolvido para corresponder em palavras uma experiência essencialmente visual, ou seja, ele forma imagens a partir da disposição de palavras.
A figura do roteirista aparece no mundo do cinema não exatamente pelo desejo de um escritor ou de um diretor de dar forma a uma narração pretendida, ela surge justamente quando a produção cinematográfica começa a aumentar, e os produtores sentem a necessidade de pré-visualizarem quais e quantos seriam seus investimentos, em termos de quantidade e financeiros. Como anteriormente citado, todos são familiarizados com as premiações para diversos profissionais envolvidos no mundo do cinema, portanto, é comum que saibamos que diversos prêmios são oferecidos a uma extensa e peculiar lista de especialistas em categorias e subcategorias de todos os aspectos técnicos abarcados na produção de um único filme. Para que tudo isso culmine no produto ao qual assistimos pelas telas das salas de cinema, há, obviamente, uma série de investimentos financeiros, o que corresponde a uma indústria particularmente estruturada, que requer procedimentos próprios. Acerca das definições de roteiro, Comparato inicia sua discussão como segue:
Existem diferentes formas de definir um roteiro. Uma, simples e direta, seria: como a forma escrita de qualquer projeto audiovisual. Atualmente, o audiovisual abarca o teatro, o cinema, o vídeo, a televisão e o rádio. Syd Field define-o como “uma história contada em imagens, diálogo e descrição, dentro do contexto de uma estrutura dramática”. Para outros é simplesmente a “elaboração do argumento” onde “os elementos acrescentados são diálogo e descrição no drama, e narração no documental”. (COMPARATO, 2000, p. 19)
É a indústria cinematográfica, sua complexidade e, especialmente, suas atribuições mercadológicas que fazem com o que o roteiro seja essencial. Sem um roteiro, um filme, como aquele produto visual que o espectador experimenta, não pode existir; sem o roteiro não há planejamento, previsão de investimento, não haveria um ponto do qual partir para que um filme fosse concebido. Toda essa complexidade, que obviamente é muito maior do que o brevemente exposto aqui, é um ponto crucial para que a mera comparação entre a dramaturgia e o roteiro não possa levar ao reconhecimento deste último como irmão do primeiro. Isso tudo mesmo sendo verdade que algumas características do roteiro cinematográfico coincidam com a dramaturgia, uma vez que até determinadas nomeações ou disposições técnicas são as mesmas, porém com usos um pouco ou mais diferenciados para o filme, pois é importante lembrarmos que a ação não é representada no mesmo ambiente, não utiliza dos mesmos meios para desenvolvimento e não busca o mesmo final.
Ainda em termos de comparação, saindo do lugar mais óbvio, que seria este de unir o roteiro cinematográfico à tradição da dramaturgia, é natural que sejam remetidos os gêneros literários cujas estruturas já estão calcificadas em nosso pré-conhecimento sobre os textos, especialmente devido a toda uma tradição de ensino a qual correspondemos em nosso pensar sobre a literatura. Neste sentido, é comum que surja a necessidade de comparar o roteiro com algum gênero narrativo, substancialmente o romance e o conto. Como um filme conta uma história, imediatamente nos remetemos aos gêneros que procedem com a mesma proposta.
Bem, o impulso artístico de contar histórias, a primitividade do imaginário humano que caminha até nós desde a tradição oral que precedeu a literatura como expressão humana pode nascer essencialmente da mesma faísca. Porém, há um aspecto prático bastante relevante no que diz respeito à tentativa de comparar o roteiro aos gêneros literários narrativos: um conto ou um romance são concebidos para serem impressos e desta forma circularem para leitores experimentem uma experiência tão somente de leitura, tão somente associada a palavras e seus efeitos. Um romance é escrito essencialmente para ser contemplado no universo das palavras, se um diretor de cinema, como frequentemente testemunhamos na contemporaneidade, visualiza em uma obra literária uma narrativa que lhe renderia a produção de um filme potencialmente de qualidade, essa obra não vai deixar de ter sido escrita para uma experiência de leitura. Acerca da relação entre a escrita cinematográfica e outras formas de literatura, Comparato estabelece:
A especificidade do roteiro no que respeita a outros tipos de escrita é a referência diferenciada a códigos distintos que, no produto final, comunicarão a mensagem de maneira simultânea ou alternada. Neste aspecto tem pontos em comum com a escrita dramática – que também combina códigos – , uma vez que não alcança sua plena funcionalidade até ter sido representado. A “representação” do roteiro, no entanto, será perdurável, em função da tecnologia da gravação. (COMPARATO, 2000, p. 19)
Ainda que a indústria cinematográfica se aproprie de um romance, ou algumas vezes de um conto, para proceder com uma transferência de linguagem artística e conceber aquilo que se conhece como roteiro adaptado, o produto escrito não será mais o mesmo, por todas as motivações particulares envolvidas na produção de um filme já citadas, o mesmo pode ocorrer com uma peça teatral sendo adaptada para filmagem.
Em média, o roteiro de um filme acaba por possuir cem páginas, uma vez que deve corresponder a, no geral, duas horas de filmagens, sempre ressaltando que um roteiro cinematográfico deve ser exatamente o que será em visto, porém em palavras. Para alguns isso pode remeter ao gênero conto (e subgêneros, dependendo do tipo de roteiro). Mais uma vez, um roteiro não é um conto, suas técnicas narrativas já são diferenciadas desde início pelo fato do primeiro constituir uma experiência de leitura e o último representar imagens em palavras. Portanto, novamente, a comparação entre um roteiro e um conto para que sejam traçados suas características comuns, que poderiam ser criação de personagens, narrativa, espaço, tempo e afins, não é suficiente para que se encontre qual seria o lugar do roteiro cinematográfico na literatura. Um roteiro nunca poderá se encaixar em um gênero literário narrativo simplesmente porque não é concebido para ser literatura.
A literatura que vemos nos filmes
Assim, os nossos antecessores remotos, os primeiros roteiristas, podem ter sido os trágicos gregos e, antes deles, os autores daqueles cantos que o recitador e o coro alternavam, ou dos posteriores diálogos entre aquele e o corifeu. Talvez tenha sido Homero, que desenvolveu múltiplas situações dramáticas em cada uma das obras épicas. As ações homéricas possuem uma vocação audiovisual, são suas precursoras: recursos como o flashback, que faz “recordar” Ulisses e narrar suas aventuras; ou o suspense, que interrompe, no canto XIX, uma situação limite – se a antiga ama-de-leite o irá reconhecer e talvez denunciar – , intercalando outra história, a da cicatriz, que irá fazer com que ela efetivamente e reconheça e identifique... (COMPARATO, 2000, p. 161)
Como já exposto anteriormente, todos os fins de um roteiro cinematográfico são visuais, ele é escrito para resultar em um bom filme, não um bom livro, ou seja, a narravita empregada para o desenvolvimento do enredo e personagens envolvidos em um determinado filme atenderá aos requisitos de filmagem. No tópico seguinte serão apresentadas as características técnicas da escritura de um roteiro pertinentes à narrativa e à descrição mais detalhadamente.
A discussão para considerar ou não o roteiro como literatura acaba por se apegar mais ao produto final, que é visual e não literário, e pouco considera o processo de criação como um processo literário. Isso faz sentido se pensarmos na literatura como um sistema, dentro do qual, na realidade, o roteiro de cinema não encontra seu lugar, pois não é produzido para as estantes das livrarias, tampouco para caber em críticas literárias. Mas a indústria cinematográfica também compõe um sistema, que abarca artes e especialidades diversas, e a literatura está envolvida justamente na origem fundamental de um filme: seu roteiro.
Como o objetivo de um roteiro é se transformar em uma experiência visual bem sucedida, certamente sua estrutura é particular e suas restrições e imposições são moldadas a fim de que esse efeito seja atingido, diferentemente, como vimos, de contos e romances. Não há outra modalidade de escrita que busque este mesmo objetivo, consequentemente, não poderia haver outra que atendesse aos mesmo requisitos para ser desenvolvida. Em uma oficina de roteiro cinematográfico, em cursos de formação em cinema, é inevitável que os estudantes se deparem com as regras para a concepção do texto de um filme desenhadas pelas exigências da produção visual.
Essa forma específica de disposição das palavras em um texto para que se gere uma experiência visual tem suas origens na literatura, ela toma por empréstimo e adapta estruturas típicas da narrativa e descrição literária e também da dramaturgia. Deixando a necessidade de inserir o roteiro cinematográfico no cenário do sistema literário, é inegável que a origem de um filme aconteça por um texto de essência literária. Como em uma expressão matemática, podemos ver que essa literatura aparece para o espectador também no produto final, o visual. Sobre a relação escrita literária e escrita cinematográfica, o que o papel espera de um escritor e o que espera de um roteirista, Comparato traz uma eficaz descrição:
Para Jean-Claude Carriere – cuja posição partilho – o roteiro, ou melhor, o roteirista está muito mais perto do diretor, da imagem, do que do escritor. O roteiro é o princípio de um processo visual, e não o final de um processo literário. “Escrever um roteiro é muito mais do que escrever. Em todo caso, é escrever de outra maneira: com olhares e silêncios, com movimentos e imobilidades, com conjuntos incrivelmente complexos de imagens e de sons que podem possuir mil relações entre si, que podem ser nítidos ou ambíguos, violentos para uns e suave para outros, que podem impressionar a inteligência ou alcançar o inconsciente, que se entrelaçam, que se misturam entre si, que por vezes até se repudiam, que fazem surgir as coisas invisíveis...”. O romancista escreve, enquanto o roteirista trama, narra e descreve”. (COMPARATO, 2000, p. 20)
Muitos são os amantes tanto da literatura quanto do cinema, muitos são os que encontram traços e estilos de autores literários em filmes com roteiros originais. Os roteiros adaptados de obras literárias já geram outras discussões, como a tradicional questão da fidelidade, e como esta se opera dentro da transferência de linguagem artística. Nesses casos, analisa-se extensamente a versão do diretor, trechos do livro que foram suprimidos, e especialmente se a essência literária da obra foi reproduzida nas escolhas do filme.
Um roteiro original, por sua vez, apresenta um autor que traz consigo todo um background de leituras e influências, suas histórias e suas formas de narrar podem muitas vezes refletir certos aspectos de autores literários. Não é nada incomum assistirmos a um filme e pensarmos que talvez ele pudesse ter sido um conto de, por exemplo, Edgar Alan Poe. Especialmente naquele que é chamado de circuito independente de cinema, há uma série de filmes que inspiram referências literárias e quase que emulam leituras de determinados autores ao serem assistidos.
A relação literatura e cinema não se limita ou se delimita simplesmente nas discussões sobre adaptação e fidelidade, estas que ganham cada vez mais terreno devido à intensiva produção de filmes inspirados em obras literárias e a uma tendência que já vem se arrastando há anos para uma verdadeira crise do roteiro original. Em uma era de tanta rapidez e dinâmica na apresentação de informações e conteúdos culturais, alguns filmes com roteiros de qualidade, que remetem a traços literários e marcas de determinados autores acabam por gerar uma nova dinâmica entre as duas artes, proporcionando uma troca muito mais ampla daquela que se consagrou especialmente no início da história do cinema, quando a narrativa cinematográfica advinha quase que inteiramente da literatura.
Um exemplo dessa permuta seria o diretor, roteirista e produtor estadunidense Tim Burton. Conhecido por apresentar o bizarro e o estranho em suas obras cinematográficas, Burton nos proporciona uma experiência visual bastante marcante, as peculiaridades que apenas o cinema, em seu caso muitas vezes o cinema de animação, pode proporcionar aparecem claramente em seus filmes como uma espécie de desfile do absurdo. No entanto, suas personagens e respectivos mundos particulares remetem a uma verdadeira experiência literária para os apreciadores do gêneros fantástico e suas características mais difundidas.
Muitos dos filmes do diretor acabam por atingir grande sucesso entre o público infanto-juvenil, faixa etária que, no Brasil, corresponde a grande parte dos consumidores de literatura. Nas últimas décadas vem crescendo o interesse de crianças e adolescentes pelas histórias de horror e mistério, estranho e maravilhoso. O próprio Burton foi uma dessas crianças, que devido à estranheza com a qual se via no mundo em que o rodeava, passou a se dedicar à leitura de obras literárias que carregassem temas sombrios, seus prediletos, sempre associados à morte e ao sobrenatural. Ao assistirmos suas obras cinematográficas, não é nada surpreendente quando descobrimos que seu autor favorito enquanto crescia havia sido Edgar Allan Poe. É visível que a produção de Burton é extremamente marcante não apenas pelas técnicas e efeitos cinematográficos que emprega em seus filmes, mas também por emprestarem uma vida visual às experiências de leitura que agregou em seu imaginário de apreciador do horror e do fantástico. Embora também já tenha realizado adaptações, mais ou menos indiretas, de obras literárias para o cinema, grande parte de suas narrativas de maior sucesso se dão justamente pelas histórias e personagens que criou para as telas.
Ao lermos um conto ou romance passamos pela experiência de imaginação na qual formamos imagens particulares sobre cenários e personagens a partir da descrição e narração dos autores. É quando visualizamos o mundo particular de um livro. Para os leitores, é comum que ao se depararem com um título cuja leitura já realizaram percebam-se com um espécie de lembrança das imagens e sensações que passaram a ter acerca das personagens e cenários. Esse fenômeno, inclusive, constitui um dos fatores que fazem com que certos espectadores sintam-se decepcionados com a versão cinematográfica de uma obra literária que apreciam, uma vez que não é raro que essa leitura visual que acaba por resultar no filme tenha sido bastante diferenciada da sua.
Uma espécie de caminho de volta também acontece quando o espectador, como nas obras de Tim Burton, se depara com uma narrativa que lhe apresenta já visualmente prontas tantas das características que, enquanto leitor, fizeram com que construísse as imagens de personagens e cenários. Inclusive no caso de crianças e adolescentes, que frequentemente já carregam uma série de arquétipos literários incutidos em seu imaginário, como no caso da associação entre Frankstein e Edward Mãos de Tesoura.
Em sua obra, da Criação ao Roteiro, Doc Comparato separa uma seção para expor e discutir o processo de criação baseado nas categorias de ideias que podem ser os pontos de partida para a elaboração de um roteiro. No que diz respeito à espécie de relação que gostaríamos de estabelecer entre literatura e cinema, a exposição sobre “ideia transformada” nos apresenta uma interessante reflexão.
Uma ideia transformada é basicamente uma ideia que nasce de uma ficção, de um filme, de um livro, de uma obra de teatro etc. Entre roteiristas costumamos dizer que “um autor amador copia, ao passo que um autor profissional rouba e transforma”. A transformação é a manipulação das ideias, dos temas e dos tópícos, a variação dos mitos, é o sistema mais especificamente clássico da criação literária. É o que se chama contaminatio. Plauto “reescreveu” uma grande quantidade de comédias gregas e explica-o nos seus prólogos. Henrique V, de Shakespeare, foi uma ideia “roubada” a um escrito de um autor da época. A Fedra de Jules Dassin é uma transformação da obra de Eurípedes”. (COMPARATO, 2000, p. 83)
Essa espécie de comunhão entre as duas artes nos apresenta uma relação muito mais profunda entre literatura e cinema que o sugerido pelas discussões de fidelidade e adaptação, bem como pela legitimação do roteiro como literatura inserido em um sistema literário. Um filme nasce primeiramente da disposição de palavras em um papel, e um roteiro cinematográfico de qualidade é determinado por um sujeito com impressões a partir de um histórico de leitura e predileções, estruturas com as quais teve incialmente contato por meio da literatura. Mais adiante será discutida a questão da circulação do roteiro, seu lugar como papel impresso, como livro ao qual um público tem acesso, por agora, é essencial que entendamos o produto visual final, o filme, não se isenta de literatura por haver saído do papel.
Qualidade como diferenciador: um roteiro nunca será tão bom quanto um romance
Novamente comentando sobre o caminho mais comum na discussão sobre a literatura dos roteiros cinematográficos, enveredamos novamente nas tramas da comparação. Deixando as questões de gênero e estrutura agora de lado, é importante salientar as impressões comuns sobre qualidade. A noção de que um roteiro nunca atingirá a mesma qualidade de uma obra literária já advém da necessidade de inserir o texto cinematográfico como um gênero que possa ser comparado ao romance ou ao conto. Neste aspecto, a estrutura narrativa do roteiro não pode expressar complexidades semelhantes às de uma narrativa literária simplesmente por não ser possível que se filme tal complexidade, ressaltando sempre que um roteiro é escrito com o único propósito de resultar em uma experiência fílmica que dura em torno de duas horas.
Este é o momento da discussão no qual mais intimamente podemos fazer referência às questões de fidelidade nas adaptações de obras literárias para o cinema, o chamado roteiro adaptado. Um fenômeno atual bastante frequente, que podemos especialmente observar em postagens de seguidores de páginas sobre literatura nas redes sociais, é o de se afirmar categoricamente que o livro é sempre melhor que o filme frente a adaptações cinematográficas de narrativas literárias que caíram no gosto popular, ou ainda daquelas que fazem parte da experiência de leitura de um público mais alternativo em relação aos best-sellers.
É bem verdade que existem adaptações fílmicas de romances ou contos que não resultam em uma obra visual de qualidade, assim como existem, largamente, obras literárias que da mesma forma não chegam a atingir boa condição dentro da literatura. Não é raro que isso aconteça essencialmente por questões de mercado: não é difícil imaginar que certas narrativas carreguem uma essência que pode render excelentes sequências de ação e dinamismo frenético tão passíveis de encontrarem lugar confortável na atenção e graça de um público que, em geral, está acostumado a um fluxo continuamente veloz de informação visual.
Nesses casos, algo que pode acontecer, e acontece certamente, é que o roteiro priorize os aspectos e facetas do livro que melhor possam atender à demanda por ação e à sede por efeitos visuais de alto impacto buscando uma extrapolação dessas sequências a partir de uma realização visual mais exagerada. Algumas obras literárias contemporâneas já trazem em si uma narrativa fértil em acontecimentos potencialmente visuais, especialmente no que diz respeito à produção para o público de jovens adultos e os amantes de ficção científica.
Não será incomum, portanto, que algumas narrativas literárias acabem por ser transformadas em uma espécie de show visual que reproduz apenas nuances arquetípicas de personagens, ou apenas o suficiente de sua caracterização literária para dar algum tipo de suporte à ação. O apelo ao mercado interpreta então o papel mais fundamental no processo de adaptação que parte do livro para o produto visual final, e a narrativa perde em quesitos de qualidade no filme que se acompanha.
Mas em relação às consideradas boas adaptações, não devemos nos entregar à ingenuidade intelectual de nos apegarmos à ideia de que o roteiro na realidade priorizou a qualidade essencial da narrativa literária simplesmente. Lembremos, neste instante, um dos pontos fundamentais que diferencia e afasta a produção de um roteiro cinematográfico daquela de quaisquer gêneros literários que conhecemos: a indústria do cinema.
Um roteiro cinematográfico de boa qualidade narrativa resultará em uma experiência visual de igual condição, afinal, o roteiro é o produto primordial para a obtenção da experiência fílmica. Porém, essa qualidade não surge meramente de um suposto abandono das exigências comerciais que circundam a produção de filmes, um bom roteiro será aquele que encontrará as fórmulas para aliar uma narrativa de bons atributos às inevitáveis imposições do mercado.
Não é lógico que se pretenda ler um roteiro cinematográfico esperando por estruturas de semelhante complexidade às das narrativas literárias, contudo, faz pleno sentido que se encontre tal complexidade na criação de personagens e suas tramas, ajustando-se às demandas de uma escrita que precisa atender a uma dinâmica visual específica. A literatura presente em um roteiro é mais relevante para a sustentação de ambas as expressões artísticas e suas correlações, ou mais intimamente, suas comunhões, do que a tentativa de considerar o roteiro como literatura.
No imaginário de um roteirista enxergando uma narrativa que ainda chegará ao papel estão todos os elementos que poderiam fazer parte também de uma obra literária. Enredo, personagens, cenários, mitos e ações que são desencadeados, muitas vezes, como no caso de Tim Burton, pelo histórico das experiências de leitura daquele que está criando a narrativa que virá a se transformar em um filme.
Essa complexidade, ou profundidade, para alguns, que tanto se busca no roteiro cinematográfico para que se estabeleça sua comparação com gêneros literários narrativos não será encontrada na estrutura específica de escrita que este possui, uma vez que não é escrito para que sua história seja exaurida na experiência de leitura, mas sim na fílmica. Contudo, se pensarmos no roteiro como uma espécie de sub-gênero literário que vem atender às demandas de produção de uma arte que, sem o ponto inicial pela literatura, não poderia ter seu produto final atingido, o que poderemos então observar é como os elementos narrativos são considerados e dispostos nessa particular escrita, abandonando a necessidade de apego às consagradas estruturas de gênero narrativo às quais somos constantemente remetidos.
Outro problema que aparece com facilidade na discussão que envolve a qualidade do roteiro é o aspecto fortemente comercial da indústria do cinema. Não deixa de ser óbvio que esse incômodo causado pelo lado que prioriza as vantagens comerciais envolvidas em todas as etapas de produção e recepção de um produto apareça mais saliente no cinema do que na literatura. Os lucros que um único filme pode gerar no final de semana de sua estreia, por exemplo, são imensos se comparados aos que podem resultar do lançamento de um livro, isso apenas para citar um dos aspectos mais simples e imediatos.
O cinema é uma arte visual, dinâmica, com a qual temos contato de forma constante, algumas vezes até automática, mas da mesma maneira que filmes chegam à curiosidade e ao gosto de tantas camadas culturais, também advém de um processo amplo e trabalhoso, que envolve a contratação de profissionais de incontáveis áreas de conhecimento, tecnologia e indústria, como podemos observar claramente nos créditos finais de qualquer filme. Este fator, que é o que dá origem à necessidade de um roteiro cinematográfico, também intensifica os apelos à imprescindibilidade da geração de lucros.
Porém, não é apenas para que sejam pagas as contratações e lucros suficientes sejam gerados a partir da produção de um filme que escolhas fortemente comerciais são priorizadas na indústria cinematográfica. Roteiros originais (...)
A estrutura do roteiro cinematográfico
Pensando em termos de qualidade voltando-nos para as etapas que compõem o desenvolvimento de um produto no universo do cinema, é importante que fiquem claras as características que emprestam ao roteiro o aspecto de uma espécie de subgênero narrativo.
Primeira e primordialmente, a estrutura narrativa de um roteiro deve priorizar recursos cujo efeito seja a máxima clareza possível das expressões. Toda chance de ser ambíguo deve ser evitada. Isso quer dizer então que todo conteúdo em um roteiro deve ser simplista e óbvio? Não. Essa necessidade por clareza significa que aquele conteúdo está sendo escrito para ser visualizado exatamente daquela forma, portanto, se em determinada cena tal personagem tiver de demonstrar um semblante ou tom de voz ambíguo , ou ainda se tiver de proferir fala ambígua, o trecho correspondente a tal no roteiro deve ser claro ao demonstrar que o conteúdo será ambíguo. Portanto, não é uma questão de obviedade, mas sim de clareza na descrição.
Tendo isso em mente, partamos para a exposição de alguns aspectos da narrativa do roteiro que são mais pertinentes à sua porção literária. A estrutura constante e essencial do roteiro envolve divisão de cenas, a narração de toda a ação, uma breve descrição (física) de personagens e cenários, todas as falas completas de todas as personagens e rubricas – termo que, apesar de advindo do teatro, não representa o mesmo que na dramaturgia, não há trechos ou páginas separadas para indicar e descrever cenários, por exemplo; no texto cinematográfico, as rubricas são as indicações para os atores.
Tudo o que é visível para o espectador deve ser narrado. Quando assistimos a um filme, o tempo todo, a cada minuto, tudo com o que nossa visão entra em contato tem de estar escrito no roteiro. Dessa forma, o grau de detalhamento atingido em um determinado roteiro varia de acordo com o que se pretende que seja percebido pelo espectador. A narração é interrompida ou restringida, portanto, na altura em que não interessa mais ao roteirista que o espectador perceba o que está envolvido na cena.
A descrição aparecerá em um roteiro sempre que for a primeira vez que algo ou alguém surge em cena, ao passo em que for mostrado novamente, não será mais descrito, apenas indicado. Mais uma vez, na dramaturgia isso acontece separadamente em uma página, ao início de cada novo ato, igual recurso não poderia ser empregado no roteiro cinematográfico em razão de um dos seus pontos-chave: tudo no texto para o cinema deve ser narrado e descrito no mesmo momento, ou seja, na mesma ordem, em que será visualizado pelo espectador. Visualmente, essa estrutura primordial do roteiro cria dois blocos: um com toda a narração e descrição, e outro com todas as falas.
Como já ressaltado diversas vezes, o objetivo do roteiro é criar uma experiência de leitura que seja o mais aproximada possível da experiência fílmica. Dessa forma, outra característica essencial da escrita de um roteiro é a narração em terceira pessoa, uma vez que se trata de uma experiência externa, que precisa ser visualizada pelo leitor, e não internalizada, a narrativa tem de ser colocada para fora do leitor, tem de exceder a leitura e ser projetada.
Essa também é a razão pela qual os verbos em um roteiro cinematográfico são sempre conjugados em tempos presentes. Não se deve contar o que aconteceu, pois em um filme nada pode ter acontecido, algo sempre acontece. Mesmo que se trate de trechos de narração, descrição ou fala de um momento de flashback, por exemplo, esse momento estará acontecendo no presente para o espectador envolvido na experiência fílmica. Ou seja, tudo deve ser conjugado de acordo com o tempo em que será visualizado, e esse tempo, para o cinema, é sempre presente.
Finalmente, o roteiro deve seguir a ordem fílmica, ou seja, todas as cenas e todo o conteúdo envolvido em cada uma delas segue a sequência na qual ocorrerá a filmagem. Portanto, tudo deve ser filmável, ou seja, de acordo com as possibilidades de produção de cada filme, o que um roteirista escreve deve caber nas condições de filmagens.
“Mais Estranho Que a Ficção”
O roteiro original de um então estreante na arte cinematográfica Zach Helm , “Mais Estranho Que a Ficção” , conta a história de uma escritora, Karen Eiffel, interpretada pela atriz britânica Emma Thompson) e uma espécie de crise que enfrenta para dar forma ao fim de sua mais recente personagem. Eiffel é a típica imagem da escritora neurótica, cheia de manias e fumante compulsiva.
Seu hábito mais conhecido em relação a sua escrita é o de matar suas personagens. Enquanto está no processo de desenvolvimento de seu mais recente romance, passa por uma situação também consagrada no imaginário popular, o escritor que, pressionado por um prazo para a entrega de seu livro, torna-se bloqueado para alguma ideia em específico. Nesse caso, ela não consegue descobrir como procederá com a morte de sua personagem atual: Harold Crick. Nada novo até esse momento.
A grande surpresa é que Harold Crick, interpretado pelo ator Will Ferrel, existe na vida real. Sim, a personagem do romance de Eiffel tem vida, em um paradoxo ou ironia, poderíamos dizer, literalmente. Crick, na vida real, tem as mesmas características que a escritora desenvolveu sobre ele: é um homem com uma obsessão pela passagem do tempo, constantemente precisa acessar seu relógio e contar o tempo.
É então que as duas realidades se encontram, ou se chocam: Crick, o homem real, passa a ouvir a narração de sua vida a partir da voz de uma mulher, Eiffel, que surge inexplicável e invisivelmente durante a rotina do auditor fiscal. Crick busca o auxílio de médicos especializados, que acabam por tratar seu caso como típica esquizofrenia, mas nada parece ajudá-lo, é quando encontra a personagem interpretada por Dustin Hoffman, um professor de literatura que passa a acompanhar o seu dilema, pressupondo que Crick não está doente, mas na verdade esteja mesmo sendo parte da elaboração de um romance.
Nessa trajetória, em sua atuação profissional, o auditor conhece uma confeiteira interpretada pela atriz Maggie Gyllenhaal, Ana Pascal, por quem se apaixona, e acaba também descobrindo que a narração de sua vida como um romance o está levando rumo a sua morte. Como evento significativo, Crick perde seu relógio e, impossibilitado de contar o tempo como costuma, começa a se tornar um homem mais despreocupado. Vários são os acontecimentos que, como consequência, fazem com que o Harold Crick da vida real e o inventado por Eiffel se encontrem, e a escritora tome consciência de que está escrevendo sobre a vida de alguém que realmente existe. Apavorado pela previsão de sua morte, Crick busca encontrar a escritora de qualquer jeito.
Certamente, é um dos roteiros mais expressivos em relação a extrapolar para as telas o imaginário da maioria dos aficionados por leitura: e se nossa vida fosse um livro? A leitura do roteiro nos oferece um delicado detalhamento de sensações, perfeitamente transfigurado pelo diretor Marc Foster, em um jogo que nos apresenta todo o envolvimento escritor-personagem-leitor, contudo, como aconteceria caso fosse real. Não apenas o roteiro contém tantos encontros com recursos literários a nossa disposição na narrativa de ficção, como leva a própria ficção, ou seja, a própria obra-prima da literatura a um nível de realidade, metalinguagem que não apenas nos remete a literatura, mas cria uma experiência tal que o espectador passa a ter a impressão de estar lendo um livro em imagens, tudo isso reforçado, inclusive, pelo uso dos elementos consagrados da elaboração de qualquer romance.
Um trecho com a fala do narrador, logo no início do roteiro, traz já com clareza o que sentir sobre e o que esperar da personagem de Ferrel; segue como no roteiro:
NARRATOR (V.O.) – Every weekday, for nine years, Harold would bush each of this 32 teeth 76 times. 38 times back and forth. 38 times up and down. His wristwatch would simply look on from the nighstand, quietly wishing Harold would use a more colorful toothbrush. (HELM, 2006, p. 01)
É importante observar, em relação às normas gerais de escrita do roteiro cinematográfico, que o uso de verbo modal para indicar hábitos passados (would), em lugar do tempo presente se deve ao fato de que, no filme, o trecho é referente a uma narração com a voz da escritora, Eiffel, narrando como está escrevendo em seu romance, que conta a história de uma personagem e suas ações passadas. Portanto, sobressai-se a regra de que tudo deve ser escrito no roteiro na forma em que será visualizado; o que o espectador vê nesse momento é justamente a impressão de leitura de um livro, que seria com conjugação no passado.
O trecho nos revela, de forma simples e brilhante, em poucas sentenças, praticamente tudo o que precisamos saber sobre Harold Crick para que sua busca existencial nos faça sentido. Em um conteúdo que poderia certamente ser pensado também para a elaboração de um romance, tal trecho, em um momento que fosse somente lido, ou seja, parasse na experiência da leitura, poderia ser imaginado pelo leitor, naquele processo de visualização das palavras que tão bem experimentamos durante a leitura de qualquer obra literária, muito próximo da cena resultante a qual podemos acompanhar ao assistirmos ao filme.
Roteirista é contador de histórias
Talvez uma criança, do seu universo ao mesmo tempo ingênuo e lúcido, dissesse para identificar a profissão de roteirista que quando crescesse queria continuar a sonhar histórias para depois contá-las às outras pessoas. Com uma definição como esta, a criança dos remeteria à figura de um contador de histórias que nasceu nas culturas mais primitivas e que perdurou até hoje através dos tempos, embora com nomes diferentes: escritor, romancista, cronista ou dramaturgo. (COMPARATO, 2000, p. 351)
Talvez a chave para compreendermos a literatura contida em um roteiro de cinema seja justamente a figura do roteirista. Aquele cujo ofício envolve contar histórias, como tantas tradições artísticas que o precedem. É um sujeito imaginando uma narrativa, é alguém que conhece um acontecimento de nossa história e quer contá-lo à sua maneira, um homem com uma ideia que se poderá encontrar sua expressão pela escrita. A imaginação é a matéria-prima da literatura, e escrita é a matéria-prima do cinema. Para a literatura, o que se escreve é o ápice da forma do que se imaginou, para o cinema, é meio indispensável para que as imagens se formem.
O roteirista é um escritor, inclusive, é assim chamado. Qualquer simples pesquisa pelo nome de um roteirista de cinema em bases de dados na rede mundial nos mostrará como atuação, ou profissão, a palavra “escritor”. Ele é um escritor de cinema, escreve imagens usando palavras, e essa é sua literatura. Onde há um homem com uma ideia, papel e meios para escrita, há um escritor; onde há um escritor, há literatura.
Romances e contos são filmes que se passam em nossas mentes, filmes são livros que se tornaram imagens. Na prolífera fonte da imaginação, narrar é sonhar idas e vindas, contemplar as linhas que desenham personagens e escolher que formas tomarão, seja na fala, no papel, no palco ou na tela. Este é o ambiente no qual nasce um filme: o fazer literário.
A tão comum e acessível imagem do contador de histórias atravessa os séculos e se adapta dinamicamente às novas formas de se contar história. O roteirista de cinema já vive suficientemente em tempo e constância na cultura popular para ser remetido ao exemplificarmos quem são aqueles que contam as histórias. Ele é aquele que, acima de tudo, imaginará seus contos em imagens, estas que serão transpostas em palavras, palavras as quais serão a matéria-prima de uma nova imagem: palavras lidas em som, cor e movimento, finalmente legitimadas pelo espectador/leitor, aquele que apreenderá, enfim, a mensagem da palavra. O roteirista imagina e escreve, o cinema lê e projeta, o espectador significa.
O cinema é uma experiência de leitura, seja pelo histórico daquele que o escreve, em seu imaginário carregado de construções literárias. O filme é uma forma de literatura que extrapola a mensagem do texto para a imagem, o leitor de seu texto é o próprio cinema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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