ACERTO DE VISTA | Não ao que vem d'além-mar
O AFASTAMENTO DA CULTURA PORTUGUESA
Foi uma das maiores surpresas da minha vida. Há alguns anos, por meio de uma série de contatos indiretos com universitários sul-americanos, descobri uma realidade concernente ao ambiente acadêmico que, até aquele momento, era-me completamente desconhecida. Nas universidades do Paraguai, Bolívia, Uruguai, Argentina, Colômbia — e provavelmente em outras dos países vizinhos, exceto o Equador e o Chile –, as leituras são realizadas em paralelo com Madrid, Barcelona, Valência e Granada.
Não só. Coimbra, do outro lado da Raia, também é fonte de emanações intelectuais aos jovens universitários da América do Sul. Infelizmente, no entanto, os brasileiros não têm participação nos lucros desse intercâmbio. Não mais. No Brasil, os serviços prestados à sociedade pela Universidade desprezam explicitamente qualquer referência, por mínima que seja, às origens lusitanas do povo brasileiro.
O que há no Brasil é um velado compromisso entre os meios político e acadêmico cujo objetivo é perpetuar um projeto de poder. Este, é bastante evidente, implica num monopólio ideológico das narrativas. Não é preciso gastar meio parágrafo para mostrar o quão desfavorável tal conjuntura é à cultura do país. Sob o aspecto que nos interessa aqui, as narrativas defendem um permanente afastamento da cultura veiculada em língua portuguesa em Portugal.
Os estereótipos já são consagrados: sob o estapafúrdio argumento da defesa da autêntica cultura brasileira, tudo quanto procede d’além-mar chega às terras tupiniquins com ares de invasor, de opressor, de impiedoso explorador. A imagem ridícula é tão carcomida quanto as propagandas do PT. Com imenso prejuízo da alta cultura, as universidades favorecem sistematicamente esse afastamento.
Os jovens universitários provavelmente não percebem, mas esse hiato, produto de resoluções ideológicas tacanhas, cega-os para o aspecto mais elevado da cultura: a universalidade. Tudo o que se faz, faz-se localmente, isto é, num ponto espaço-temporal objetivo; no entanto, no âmbito da cultura, esse fazer integra os indivíduos numa mesma rede de aspirações intelectuais que abarca o mundo inteiro.
Concernente à literatura, a sobreposição das diversas correntes estilísticas, quando feita sob orientações ideológicas, resulta numa pluralidade de transformações artificiais. Os elementos orgânicos que, em suma, representam as experiências reais dos indivíduos e as inúmeras tentativas de exprimir essas experiências dão lugar a uma linguagem postiça, a uma espécie de anti-literatura.
Se, rompendo com um preconceito que remonta às bandeiras paulistas, nos aproximássemos dos nossos vizinhos hispânicos, veríamos não sem espanto o quão próximos eles estão dos espanhóis. Veríamos também que, diferentemente do que ocorre no Brasil, na américa de língua espanhola o trânsito de ideias não se limita às fronteiras geográficas. As ideias comunicadas pela língua de Cervantes circulam livremente por toda a extensão territorial de uma espécie de pátria espiritual.
Nós perdemos o sentido daquelas palavras do poeta: “A minha pátria é a língua portuguesa“. Não refletimos mais sobre o fato de que as fronteiras desta pátria não são políticas, de que a substância daquilo que é comunicado extrapola os limites artificias das narrativas, de que a cultura eleva o homem à universalidade. Fomos enganados. Sabemos por quem. Sabemos quando.
No contexto do centenário de nossa independência política de Portugal, um grupo de filhinhos de papai decidiu unilateralmente que já era hora de também conquistarmos a nossa independência cultural. Ledo engano. A Semana de 22 prometeu-nos novos ares; prometeu-nos, sem esconder a sua arrogância, um completo rompimento com as antigas formas, aquelas que não mais atendiam às necessidades dos brasileiros modernos. Fora uma promessa falsa.
Se é verdade que pelos frutos conhecereis, a Semana de 22 favoreceu uma produção cultural tacanha. Não tinha como o resultado ser outro: a mediocridade tornou-se o critério absoluto de todas as coisas. Queriam — e conseguiram — romper para sempre com Portugal em nome de uma legítima cultura brasileira, mas fizeram uma coisa muito mais triste e lamentável: romperam com a própria realidade. Como d’além-mar está assaz distante do Brasil, resta-nos estudar Cervantes, García Lorca ou Ortega y Gasset em algum grupo universitário de Buenos Aires.
Isso até nos tirarem a Espanha também.
"Precisamos urgentemente voltar à métrica, à rima, à sintaxe lusíada […]. O modernismo era suportável quando extravagância de alguns. Agora é a normalidade de toda a gente. Então depois que reinventaram a brasilidade, a coisa tornou-se uma praga. Os livros de poesia só falam de candomblés e de urucungos. Nos quadros só se vê pretos, carros de boi e desenho errado. Confesso que acho um certo sabor nos poemas dos iniciadores. Os meninos que vieram depois é que estão caceteando”. Manuel Bandeira (na crônica “Um caso à parte”).