Três doses de veneno à mesa de Clio
Em suas meditações, Buda reconheceu a existência dos Três Venenos da Mente. Eram eles o egoísmo, o ódio e a ignorância. O trio pode alterar a percepção da consciência humana, e desviar o ser do caminho do despertar. Para além do humano, isso também ocorre na História. Sob à mesa de Clio, uma xícara com três doses de veneno foi depositada na esperança de antecipar o seu fim.
Sendo um fenômeno espacial-temporal tão impermanente quanto a vida, ou que chamamos de presença, a história humana se modifica como as nuvens, as ondas do mar e a direção dos ventos. É como o horizonte, quanto mais distante estamos dele, mais elementos se tornam compreensíveis no seu conjunto. Ao nos aproximarmos, o todo cede lugar ao específico, e o elemento se torna a base da observação.
A este que a tudo observa e absorve é chamado historiador ou historiadora. No entanto, alguns deles encantados com a miríada de eventos, acreditaram ter as respostas definitivas para aquilo que é uma indagação permanente. Assim nasceu os Três Venenos da História: o narrativismo, o relativismo e o ocasionalismo. Intoxicaram as relações do tempo e espaço na compreensão humana, as limitando.
O narrativismo é a reprodução do discurso pelo discurso. É o relato que traz o como “deveria ter sido” se tivesse mais cor e brilho, uma imitação da forma. A louvação do indivíduo, os seus atos de bravuras e brados retumbantes são registrados com afinco. Tudo que sensacionaliza é preferível aos demais fatos históricos. Como uma ilusão de ótica e biográfica no mais profundo grau, não passa de uma miscelânea sem fim de datas e nomes marcantes. O narrado e irrefletido é à-histórico. Narrar per se nunca foi uma metodologia, é apenas fração do método científico, e nenhum elemento é maior que o seu conjunto. O todo não é a soma das partes? Se a ciência histórica dependesse apenas da narrativa para responder à busca pelo conhecimento, a ficção histórica seria o bastante. O cientista narrativo é um bom ficcionista. Descrever é preciso, mas problematizar é necessário.
O relativismo é tudo explicar e nada dizer. O excesso, na prática, do relativizar, é buscar uma área cinza no preto no branco. Nenhuma sociedade, fato ou sistema cultural é meta-histórico. Considerar um povo ou cultura como único não os faz acima das próprias relações sócio-históricas. “Tudo é relativo”, diz o senso comum. O correto seria dizer que “tudo relativizo” por acídia mental, dessa forma, as explicações fluem de modo mais simples do nada para lugar nenhum. Nada surge ejetado da história, portanto, tudo é inscrito no tempo e no espaço, e, na conjugação das forças sociais, ora se constituindo, ora se contradizendo, é nesse jogo dos contrários que surge a história. Se “algo” é relativo, é porque a percepção sobre esse “algo” é incerta, logo cambiante. É bem provável que assim seja em algumas questões, mas de uma exceção não se faz toda a regra.
O ocasionalismo é a negligência cognitiva por excelência. Se tudo é fruto do acaso, não é mais necessário problematizar. A resposta pode ser automática, mas cristalina: aconteceu assim e do nada. Sem um estímulo, relação, causa ou consequência, foi como se sempre tivesse existido; o evento emergiu sem causa aparente, e causando mais estardalhaço que o nascimento de Vênus, se fez notar como o preferido da história. Nenhum nexo de causalidade lhe pode ser atribuído. A História se torna um jogo de dardos onde o pesquisador mira no alvo do fenômeno, erra quase sempre. Vendado os seus olhos, pode até aumentar a sua sorte. O que é não é nascido da conjugação das estrelas é esquecido. O ocasional existe, pois, o caos é atuante. Mas, o ser racional e desejante não pode ser esquecido da equação. O ocasionalismo é a descrença na investigação e na racionalização do método científico.
Todo veneno por mais intoxicante que seja, tem uma cura. A História deve problematizar, e não se tornar um problema para a humanidade. Como uma ciência, deve ser um meticuloso método de análise-crítica dos fenômenos com estruturas de produção, verificação e divulgação bem definidas do conhecimento. A pesquisa histórica ou historiográfica jamais deve se transformar uma ficção adornada com belas fórmulas, os romancistas já fazem isso muito bem.