UM RETRATO DE MARÇO
Um pó de segundo pode tornar-se infinito. Se naquele instante o tempo parasse, um razoável artista poderia compor, com pincéis e engenho, um painel que inicia pelo norte da tela, desnudando o céu em breu, pois a madrugada pesada ainda se ia. Respingados, muito poucos, pontinhos longínquos que homenageiam estrelas enterradas na escuridão imóvel. Uma lua, ou talvez leve reflexo do astro, ilumina apenas o suficiente para que o espectador possa situar-se. Corre a mão, logo, para o extremo sul, e lá pincela a entrada de uma morada simples, sem dar-lhe muita forma, apenas a provocativa referência da fachada. Na porta, esguia mulher de meia idade pende a cabeça em desconforto no próprio ombro observando as coisas que sempre observava, através de uma prece temerosa. Roupas traçadas com simplicidade, podendo até ignorar a saliência das cores. A próxima disposição é o largo oceano debaixo do céu de breu, que também é breu. Talvez o artista queira retratar as esparsas espumas brancas que chegam até a areia, quem sabe? Difícil separar céu e mar, o que de fato ficará à cargo do artista e de sua técnica e não de minha vaga descrição. Esta areia, a que sugiro como praia, é pouco brilhante e deve fazer curva que ocupa toda a extensão do painel. Agora o centro da tela, local onde o principal ocorre, motivo pelo qual o norte e o sul existem naquele pó de segundo. Um pequeno barco, batel, embarcação de pesca, disposta estrategicamente no lábio das águas, é empurrada pela direita por um homem e pela esquerda por um jovem. Pés descalços em ambos. Mãos calejadas para um. A se calejar, para outro. Ao observador, cabe a límpida certeza de que pescadores estão a jogar-se ao mar. Quem sabe o pintor, para delinear característica que define essa certeza, possa colocar uma ponta de rede para forra da embarcação. Quanto a mulher que os acompanha com o olhar, não há como se dizer nada através dos traços, mas por licença poética - que tem até aqueles que não são poetas – afirmarão muitos que se trata daquela que fica para rezar. Por que todos os que vão ao mar tem, por direito e medida necessária, o correspondente em terra para interceder junto a Deus por sua segurança. A última pincelada, como que desnudando a obra final, traz o conjunto completo para o infinito do segundo, capaz, talvez, de nos fazer imaginar os perigos que reservam aquele céu de breu, aquele barco frágil, aquela oração sem paz. Estávamos em março.