O MUNDO DOS SONHOS

"O mundo do sonho não é nenhum mundo comum, mesmo se interaja nele com outros homens. (...) Sonhando, é possível voltar a existir como a criança de outrora, pessoas que morreram há muito tempo podem aparecer una vez mais, é possível voar sem auxílio de asas ou se manter embaixo d'água sem se afogar. O mundo do sonho, portanto, é desprovido de limites, mas também ao mesmo tempo mais restrito do que o mundo da vigília: nele, o realmente impossível se torna por um lado possível e, por outro lado, lhe falta a continuidade. O respectivo mundo transforma-se com frequência já no interior de um e mesmo sonho e quase sempre de sonho para sonho".

(Trecho extraído do livro "Daseinsanalise: o olhar filosófico-existencial sobre o sofrimento psíquico e sua terapia)

Os sonhos são fenômenos que dizem muito a respeito da vida do sonhador, tanto o que lhe agrada, quanto o que o angustia. O seu conteúdo pode ser, às vezes, compreensível por aquele que sonha; e, muitas vezes, pode se revelar como algo confuso, doloroso e até mesmo angustiante, cujo teor é somente aliviado pelo alívio do despertar. Certamente, uma manifestação onírica transcende as possibilidades lógicas da vida vígil, desafiando qualquer limite e dizendo muitas coisas a respeito de nosso ser, nas quais podem se encontrar veladas, desconhecidas ou até mesmo adormecidas no dia a dia.

Podemos tornar um determinado sonho público, principalmente para quem busca compreendê-lo e interpretá-lo se a ocasião for propícia. No entanto, como bem expressa Alice Holzhey-Kunz nesse pequeno trecho de seu livro, o sonho faz parte da vida particular de um ser humano, ainda que outras pessoas participem de sua manifestação.

A vida onírica é uma maneira que um ser se vê e se percebe; é uma vivência inusitada quando o sono e o descanso já se apoderou de seu ser corporal e o sistema nervoso autônomo parassimpático já deu os seus sinais . Embora o inconcebível possa se revelar concebível, o impossível se torne possível, a continuidade é rompida mesmo ao menor estímulo. Mas pode acontecer que os conteúdos desse sonho possam repetir inúmeras vezes, fazendo com que uma pessoa faça uma experiência rica com certos simbolismos e situações da vida retratada de forma onírica.

Os sonhos em muitas histórias da Bíblia sempre foram vistos com grande admiração, temor e reverência. José do Egito e Nabucodonosor são exemplos onde o sonho produziu as sementes de grande efeito na vida da vigília e cotidiana. O primeiro não só tivera sonhos que simbolizava a sua exaltação, como sabia muito bem interpretar certos conteúdos que apareciam na vida de homens notáveis socialmente. Já o segundo, fora arrebatado por sonhos cujos sinais preludiavam a sua degradação. Eis aí bons exemplos que ilustram a força de influência que os sonhos tinham na vida desses homens em eras mais remotas.

Enquanto isso, na cultura de muitos povos, as revelações oníricas sempre se revelaram eficazes para a compreensão da vida da comunidade. Pois se pensarmos que os sonhos podem trazer até mesmo o ilimitado e o sobrenatural, é perfeitamente compreensível que os mesmos fossem encarados com grande cuidado e atenção por parte de muitas culturas, etnias e tribos.

É interessante perceber que não somente certas imagens ou símbolos são mostrados enquanto dormimos, mas muitas vezes podemos transpirar e até emitir gritos e ruídos enquanto sofremos com a manifestação de certos conteúdos. Os sonhos certamente têm algo a dizer sobre o nosso ser no mundo e nosso ser com os outros, além do significado que uma determinada pessoa ou ser tem para nós. Não é fora de propósito dizer que homens como Freud e Jung souberam mais do ninguém desenvolver excelentes análises da psique humana com base na atenção que devotaram aos seus próprios sonhos e aos de seus pacientes, pessoas nas quais eles relataram excelentes testemunhos e vivências.

Poderíamos encarar uma manifestação onírica como uma ilusão ou até mesmo como um síntoma passageiro dependendo do caso; em determinados contextos, certas manifestações podem se revelar como ameaçadoras devido a situações delicadas em que estamos vivendo. No entanto, uma perspectiva unicamente fisiológica ainda seria uma forma muito superficial de estudar os sonhos, até porque uma perturbação ou uma miragem não são suficientes para dar conta de abarcar, descrever e explicar a complexidade de certos simbolismos descortinados nos sonhos. Em tais revelações, evidentemente, somos convidados a prestarmos atenção em nós mesmos e desenvolvermos o nosso autoconhecimento com base no que presenciamos de tão formidável e enigmático.

Há conteúdos que nem mesmo o espaço habitual onde estamos inseridos se encontra presente, trazendo inclusive um lugar onde as emoções se afloram e os sentimentos mais elevados são claramente anunciados. Nesse caso, podemos pensar em desejos que iluminam a escura noite da alma de um ser humano, fazendo com com que voltemos a ter tais vivências. Essa situação só mostra a nossa impotência diante de algo que nem sequer conseguimos reproduzir em nós mesmos, mas somos tomados por um despertar bem diferente do despertar para a vida consciente.

Jung em muitos de seus textos via boa parte dos sonhos como uma compensação absolutamente indispensável à atividade ordenada (O. E. 8/2 pág. 196). Os sonhos, na perspectiva do autor, apresentam conteúdos que durante o dia foram negligenciados e voltam a se fazer presentes no estado do sono.

Retomando a perspectiva adotada pela escritora Alice Holzhey-Kunz, baseada na ontologia Heideggeriana e na psicanálise Freudiana, extraio uma reflexão presente no seu livro ''Daseinsanalise: o olhar filosófico-existencial sobre o sofrimento psíquico e sua terapia, que diz: ''Reformulando em termos daseinsanaliticos, isso significa que o sonho representa aquela forma de existência, na qual todos nós, quer psiquicamente saudáveis quer sofrendo de problemas psíquicos, somos tomados em meio a uma 'escuta aguçada' pelas questões fundamentais de nosso ser e buscamos uma solução para elas''. Sim, o sonho, querendo ou não, nos leva a prestarmos atenção em aspectos fundamentais de nossa existência e nos faz pensar uma forma de transcender as nossas limitações, nos conduzindo a um conhecimento mais íntimo e profundo acerca de nós mesmos e de nossas antinomias pessoais.

É fascinante pensar a profusão de estudos que podem ser realizados para abarcar um assunto tão importante quanto os sonhos. Podemos estudá-lo de um ponto de vista exclusivamente teológico e metafísico, como também de um ponto de vista científico que recorre a antropologia, a fisiologia, a psicanalise, a psicologia de um modo geral e a fenomenologia das vivências do ser sonhador. Todos esses campos podem favorecer a busca do sonhador no que diz respeito ao conhecimento de seu ser e dos mistérios da sua alma, mas nunca podem saciar a sua sede, ou findar a sua curiosidade natural sobre o enigma dessa atividade que acontece de repente enquanto dormimos (e, o que é mais fascinante, sempre e a cada vez com novos cenários e roupagens!).

Admito que todas essas perspectivas têm sua importância na hora de abordarmos um fenômeno tão natural e tão rico como a atividade onírica. Podemos até pensar que cada uma dessas áreas aborda uma particularidade ou faceta de um fenômeno que nunca se esgota, de um fenômeno tão comum a toda humanidade e a muitos seres viventes, ainda mais por saber que muitas mitologias, religiões, contos folclóricos e histórias podem ser impulsionados ou inspirados a partir dos simbolismos presentes nos sonhos, cujos conteúdos produzem aquela carga de veracidade e coerência que extasiam a vida do ser humano, ao ponto mobilizar as nossas emoções e sentimentos, e encorpar o teor de nossas tonalidades afetivas.

O mundo fantástico dos sonhos é uma realidade tão íntima. Ao mesmo tempo, um sonho pode condensar as nossas fantasias que se avolumam na vida desperta, bem como os nossos medos, desejos e projetos de vida que se apresentam e se mesclam de uma forma aleatória. A vida onírica pode vir colorida por emoções e reações que muitas vezes temos a tendência em manifestar na vida desperta da vigília. É interessante enfatizar que todos esses elementos podem se revelar no cenário onírico, jorrando versatilidade e uma abundância de sentimentos que dizem muito sobre quem somos, sobre quem gostaríamos de ser e do que estamos fazendo de nossas expectativas ou de nossa própria vida.

Alessandro Nogueira
Enviado por Alessandro Nogueira em 20/01/2022
Reeditado em 21/01/2022
Código do texto: T7433458
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