estranho homem médio
dele parte#
Sou introvertido. Não recordo qual foi a última vez que sorri. Deve fazer tempo que não imito um riso. Já perdi um siso. Não aparo a barba faz tempo. Meu hálito é amarelo. Meus dentes são ocre. Suo terracota. Sou um homem médio. Quételêc. IMC na média. Tenho meia idade. Tomo água só por decreto. Sinto-me meio David Bowie no corpo de um pajé parente do Romário. Tenho uma barriga que combina com a flacidez dos braços. Desde a escola aprendi que sou brasileiro. Tem até uma música que fui forçado a aprender na escola. Estranho pensar que uma escola força uma criança a aprender. Aprender tinha que ser algo livre. Primazia da curiosidade. Nos ensinam a desconfiar. Depois é possível não confiar no que se duvida. Acho estranho. Algumas vezes agito-me com um manco. Não sabia mancar. Tive que aprender mancando. Conclui meus estudos. Um professor disse que solução de tudo cabe numa planilha. Já montei tanta planilha. Juro. Nunca vi uma planilha sem fim. O fim tem fim? Enveredei para a metafísica. Resquícios do curso online de filosofia para iniciantes. O começo começa quando se diz que começou ou antes de ser dito? Metaverso. Quando faço cadastros sei pouco a dizer de mim. Gosto de cheiro da minha virilha. Mas dizer isso é tosco. Ressoa repugnância. Embora quem admita que gosta do cheiro peçonhento do seu próprio corpo? Nem o Cristiano Ronaldo. Imagina o Pelé correndo do teu lado? Feio, diria se fosse perguntado como seria o meu auto-retrato. Para beleza não há meio termo. É ou não é. Não é? Acho asqueroso os pêlos que crescem no meu nariz. Não ter pêlos no corpo pode ser uma doença. Procurei no Google. Tirando os pêlos do nariz e do ouvido, concorrente na asquerosidade, todos os meus outros pêlos são confortáveis. O que mais próximo para minha descrição é dizer que tenho cara de bugre quando morre. Na versão loft. Versão com internet. Verão. Acho que nasci. Não há anticoncepcional que dê conta da tragédia da vida da minha mãe casada com meu pai. Uma vez perdi o sono quando pensei: sou a sobra de um estupro? Quem contaria uma coisas destas para seu filho? Meu pai sumiu-se em mim. Acho que tenho as mãos iguais a da minha mãe. Pequenas. Não lembro. Gosto de pensar que ela envenenou meu pai. Minha mãe deveria ser antiga. Antígona. Não lembro como era. Uma mãe deixa saudades. Será que sou a saudade de alguém? Quando vejo meu reflexo acho perturbador. Evito olhar. Como se deparar com o inesperado. Sou estranho. Sinto-me um fantasma. Às vezes, místico. Outras, fantástico. Tudo chiste. Piada. Não acredito em mais nada do que digo. Místico e fantástico são descrições que não me cabem. Inclusive notei que minhas camisetas são de tamanho médio. Sou um M. Não escrevo o resto, pois o ponto me salvou. O pinto também é médio. Ninguém gosta de dizer que tem pinto pequeno. Digo a verdade. Como quem conta com alegria que ganhou algum desconto de compra. Em geral, sou um médio para pequeno. Não há nada grande em mim. Não há excessos em nada. Nada é o que vejo quando olho no meu olho. Estranho não achar nada. Devo ter fenótipo. Sou uma fenocópia? Posso ser outro achando que sou eu próprio? E se eu não existir? Se for parte do corpo de alguém? Seria um corpo sem órgãos? Se esse outro alguém existe, sou parte deste estranho? Duvidar da minha existência não quer dizer que minha história não existia. Reis. Papas. Deuses. Mitos. Tem histórias. Existiram? Não sei. Os infames também história. Pouquíssimas vezes lembradas. Portanto, se tenho história, existo. O difícil será acreditar na minha história, pois nem mesmo sei contar o que não lembro. Tenho reminiscências. Repetições. Resíduos. Sou um quebra-cabeça de peças faltantes. Gosto de babar meu cigarro quando fumo. A baba conforta. Deixa de ser minha se misturada com o gosto do cigarro. É algo familiar num outro corpo estranho. O cigarro é minha companhia. Fumo para não ficar sozinho. A língua anda afiada. Deve ser um efeito colateral do fumo. Não vou nunca parar de fumar. Até que a morte nos declare. Tenho outros hábitos. Alguns ainda estou aprendendo a olhar.