Valor x Preço - Uma explicação cética - Todo Incognoscível 26

NESTE ENSAIO

1. Economia (austríaca) e epistemologia (cética) guardam semelhanças e diferenças e é possível entender uma a partir da outra.

2. Da mesma maneira que é possível entender a ciência sem recorrer à ‘Verdade’ (com ‘v’ maiúsculo, lastreada no Real) é possível entender uma transação comercial sem recorrer à essência.

3. Quanto maior a discordância entre o valor dos bens transacionados, maior a chance de que uma troca ocorra.

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ECONOMIA E EPISTEMOLOGIA

Falar sobre o próprio conhecimento é tarefa árdua, pois aquilo que escrevemos é exemplo do que é escrito, como um espelho posto em frente a outro, uma câmera que filma a própria imagem ou um microfone que grava aquilo que amplifica (gerando microfonia). É por isto que o nome desta série de ensaios é ‘Todo Incognoscível’, pois quando investigamos as profundezas do conhecimento (conceitos, teorias, palavras, entendimento) chegamos necessariamente a algo que é impossível conhecer, embora ironicamente, seja algo que seja possível comunicar - ainda que apenas de maneira indireta: consigo me referir ao ‘Todo Incognoscível’, mas não consigo conhecê-lo. Da mesma maneira, percebo que abordar o conhecimento de maneira indireta (usando as ferramentas da economia) é a maneira mais clara e precisa de falar sobre epistemologia. A economia guarda com a epistemologia isomorfismos (uma mesma explicação pode ser dada na economia e na epistemologia trocando as variáveis) e também contrastes: naquilo que são diferentes também é possível encontrar clareza para ambos os campos do conhecimento. Este ensaio, entretanto, almeja muito pouco, apenas mostrar o mecanismo através do qual se dá acordos comerciais sem apelar para qualquer âncora metafísica. Se é possível uma descrição tão clara e simples para o comércio, espero que também seja possível para a comunicação.

ECONOMIA PARA EXPLICAR EPISTEMOLOGIA EM ENSAIOS ANTERIORES

Em um ensaio anterior transpus o conceito de lastro, que na economia se refere à correspondência entre uma moeda e a quantidade em uma commodity (como ouro) pela qual ela pode ser convertida. Na epistemologia o conceito de lastro se dá entre um conceito e aquilo que ele corresponde. O comércio é possível mesmo sem que a moeda seja lastreada em uma commodity, a comunicação é possível sem o lastro naquilo que ela corresponde. Já a teoria do milkshake de Brent Jhonson se refere à dificuldade do mundo de mudar o padrão monetário (no caso o padrão dólar). No ensaio ‘O hábito do pensamento’ transponho a mesma ideia para entendimento: é extremamente difícil nos desvencilharmos de uma explicação na qual acreditamos por muitos anos para passar a acreditar em outra. Neste ensaio vou transpor os conceitos de ‘valor’ e ‘preço’ (tal qual entendidos pela escola austríaca de economia) para mostrar como o comércio é possível.

VALOR

Ao contrário de outras escolas de economia, na escola austríaca o valor NÃO tem uma regra de formação. O valor é subjetivo. Adoro minhas roupas antigas, mesmo que desbotadas ou meio furadas. Toda vez que uso uma roupa, mesmo que de maneira inconsciente, lembro de quem me deu, lembro de encontros que tive. Comprei xícaras com bambu desenhado, elas me lembram xícaras que haviam na casa da minha avó pintadas a mão por um amigo de família que é mestre em artes marciais. Não me importa um quebradinho, um rasgadinho… se me lembrar do que aconteceu para aquele rasgadinho é capaz que eu atribua ainda mais valor à blusa. Mas tenho certeza de que a minha blusa (hoje furada) que minha mãe comprou em uma viagem ao Rio de Janeiro valeria muito pouco em um sebo. Isto se dá porque o valor é subjetivo.

REGRA DE FORMAÇÃO DE VALOR

Em outras palavras, não existe uma regra de formação de valor na economia. Outra perspectiva possível é que existem muitas regras de formação de valor, inclusive uma pessoa pode ter mais de uma regra de formação de valor (devido ao contexto, à idade, à situação emocional...). Da mesma maneira duas pessoas podem, por acaso ou não, ter a mesma regra de formação de valor em um determinado momento: minha avó pode dar o mesmo valor à xícara com desenho de bambu pelo mesmo motivo que eu dou. O que recuso é a perspectiva de que o valor é algo objetivo e de que todas as pessoas DEVERIAM percebê-lo igualmente. Uma objeção possível à perspectiva de que o valor é subjetivo é o de que existe comércio. Como é possível duas pessoas acordarem em trocar mercadorias? Se o valor é subjetivo, por que o preço realizado é o mesmo para ambas?

PREÇO JUSTO

Antônio, um grande amigo, viu em um site de vendas de usados uma estante sendo vendida a um preço duas vezes maior do que estantes similares. Aquilo o intrigou, como é possível alguém pedir tanto por uma estante, será que não viola alguma lei da economia? De acordo com a escola austríaca esta situação é perfeitamente normal, aquela pessoa simplesmente está sinalizando que está disposta a se desfazer daquela estante, mas apenas àquele preço. Pode ser que a estante tenha alguma propriedade que Antônio não tenha percebido, por exemplo, pode ter pertencido a uma celebridade como o Ayrton Senna. Pode ser que aquela pessoa mantenha o preço sempre bem mais alto que a média e que, por isto, nunca venha a realizar a venda. O justo é cada pessoa atribuir o preço que quiser à mercadoria: um que reflita sua valoração (portanto subjetivo).

PREÇO REALIZADO

A situação da estante extremamente cara chamou a atenção justamente por ser incomum, o usual é o preço ser estabelecido de maneira que sejam realizadas transações. O que volta ao problema, como é possível um preço intersubjetivo (preço realizado em uma transação comercial), uma vez que o valor é subjetivo? Quem vende aceita um preço mínimo, mas também aceita qualquer preço acima daquilo. Já quem compra aceita pagar um preço máximo, mas aceita qualquer valor abaixo daquilo. O vendedor pode assumir a estratégia de oferecer um preço bem alto e ir baixando pouco a pouco para ver o preço máximo que consegue, pode fazer um leilão ou usar qualquer outra estratégia para vender… O que importa é que a transação comercial se dá PORQUE as pessoas atribuem um valor diferente para as mercadorias, e quanto maior a diferença na atribuição do valor mais fácil é a transação comercial. Em outras palavras, a transação comercial só é possível quando o intervalo de determinado preço para cima (de quem vende) tiver uma intercessão com o intervalo de determinado preço para baixo (de quem compra).

QUANTO MAIS DISCORDAMOS EM RELAÇÃO AO VALOR MAIS FÁCIL É A TRANSAÇÃO COMERCIAL

Na troca, aquilo que ofereço (que vendo) é mais fácil de ser transacionado quanto menos o valorizo e aquilo que peço (aquilo que compro) é mais fácil ser transacionado quanto mais eu valorizo. Suponhamos que levo uma calça para trocar por uma camisa em um sebo. Quanto menos valorizo a calça (que vendo) e quanto mais valorizo a blusa (que compro), mais fácil é realizar a transação. É fácil perceber que para a outra parte (no caso o sebo) aquilo que eu vendo é comprado e aquilo que eu compro é vendido. Quanto mais o sebo valoriza a calça, mais fácil é realizar a transação, quanto menos valoriza a camisa, mais fácil é realizar a transação. Não há nenhuma consideração pela natureza última do que é uma blusa, qual a essência da calça ou de como será usada. Exatamente o mesmo se dá quando uma das mercadorias da troca é dinheiro.

RESOLVENDO ACORDOS SEM RECORRER À METAFÍSICA

O fascinante nesta percepção é que cada transação comercial é um acordo o qual é feito completamente sem nenhuma consideração metafísica! Como um cético, acho fascinante desvendar o mecanismo do comércio sem recorrer a algo intrínseco ao que está sendo comercializado. No que diz respeito a uma cosmologia cética (entender todas as experiências sem recorrer ao lastro do significado) a realização da escola austríaca de economia (entender a troca sem recorrer ao lastro do que é trocado) é semelhante à realização de Popper (que mostrou que é possível entender ciência sem recorrer ao lastro do que é entendido 1*) no que diz respeito à criação de uma cosmologia cética. Meu objetivo nesta série de ensaios é criar uma maneira de entender o mundo independente de Verdades (tal qual a teoria epistemológica de Popper), mas uma maneira de entender o mundo que contemple todas as experiências, não apenas as científicas. Mises mostrou, de uma maneira elegante (simples e precisa) como descrever o comércio sem recorrer à essência do que está sendo transacionado.

MODELO DA SITUAÇÃO NECESSÁRIA PARA A REALIZAÇÃO DO COMÉRCIO

Diz-se que a estatística é a arte de torturar dados para extrair deles o que quisermos. Entendo que economistas levam esta arte ao extremo usando não apenas a estatística, mas modelos matemáticos sofisticados (que Taleb mostrou que os próprios economistas compreendem muito mal) tanto para interpretar os dados, como para prescrever políticas públicas. Feito esta advertência gostaria de propor um simples modelo para a realização de uma transação comercial a partir da teoria de Mises, apenas por entender que esta é uma maneira extremamente didática do pensamento de Mises:

Valoração Chico & Valoração Sebo

(valor da camisa - valor da calça) > 0 (valor da calça - valor da camisa) > 0

(o que se ganha - o que se entrega) > 0 (o que se ganha - o que se entrega) > 0

A troca só será realizada se ambas as envolvidas tiverem mais a ganhar do que a perder.

A TROCA - QUANDO É LIVRE - SÓ SE DÁ QUANDO CADA PARTE PERCEBE QUE SAIU MELHOR DO QUE ESTAVA ANTES

Para a escola austríaca, o comércio só se dá quando todas as partes dão mais valor àquilo que receberam do que àquilo que entregaram. Todas as pessoas envolvidas saem, aos próprios olhos, melhores da transação comercial. Este ponto tem extremas consequências para a filosofia econômica e outras escolas tratam este ponto a partir de uma perspectiva extremamente diferente. Entretanto este ensaio é sobre os acordos e sobre como são possíveis independentemente do que cada pessoa entende que está sendo negociado. Inclusive me fascina que quanto maior o desacordo (em relação ao valor que se dá a cada bem) maior a chance da transação comercial. Se eu, Chico, valorizar muito a camisa e o sebo valorizar pouco, a chance de entrarmos em um acordo é muito maior. Os dois próximos parágrafos são sobre temas importantíssimos que ficaram de fora deste ensaio mas que serão objeto de ensaio próprio: Primeiro o uso do dinheiro, segundo os juros, em terceiro a riqueza (ou pobreza) relativa das pessoas envolvidas na troca.

TROCAS USANDO O DINHEIRO E CONSIDERANDO JUROS

A troca é uma relação simétrica, no sentido de que quem vende está comprando (no exemplo acima eu comprei a camisa e vendi a calça) e quem compra está vendendo (o sebo comprou a calça e venceu a camisa). Com o uso do dinheiro esta relação permanece. O que o dinheiro facilita é a comparação com o que está fora da transação - é uma maneira de computar a valoração de pessoas que estão fora da transação em particular. Já os juros introduzem o conceito de preferência temporal e risco. Um ensaio considerando ambos os aspectos é interessantíssimo, uma vez que mostra como um acordo, mesmo que entre duas pessoas, se relaciona com os desejos e preferências de diversas outras pessoas. Entretanto um ensaio levanto em conta estes fatores demanda explicar toda a teoria do dinheiro e do crédito de Mises. Em breve publicarei os ensaios (já escritos) a respeito destes temas.

A RIQUEZA E POBREZA RELATIVA DAS PESSOAS ENVOLVIDAS NA TROCA

Este ponto se relaciona, na comunicação, com o contexto. Em uma conversa um símbolo, uma frase, uma ideia, podem assumir significados muito diferentes de acordo com o contexto. As pessoas, no contexto da economia, também atribuem valor de acordo com a situação. Uma mesma pessoa pode desprezar um quadro, depois de estudar muito pode passar a valorizar o mesmo quadro. Um fator preponderante para a formação do valor subjetivo de cada pessoa é a escassez de algo necessário à sua sobrevivência: remédios para um doente, água para quem tem sede, teto sobre suas cabeças, algum tempo para passar com a filha recém-nascida. O conhecimento é o objetivo da série ‘O Todo Incognoscível', mas entendo que é um tema sensível e dedicarei alguns ensaios especificamente sobre o impacto social e econômico que ele impõe à sociedade.

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OBSERVAÇÃO: Meu objetivo é passar as ideias como as entendo de maneira a ser fiel a uma filosofia cética. Estou despreocupado em relação à letra do que diz qualquer autor. Por exemplo, sugeri a interpretação de que existem diversas regras de formação de valor de acordo com a situação que cada pessoa vive (se estou com sede valorizo mais água), esta maneira de formular nunca encontrei em nenhum autor.

1* Recorrer à ‘Verdade’ (com ‘v’ maiúsculo, isto é, recorrer a um lastro metafísico) é o que os positivistas defendem. Caso algum conhecimento chegue à Verdade ele deixa de ser objeto de investigação e ques

tionar se torna uma heresia. Popper defendia que é impossível chegar à conclusão de que um conhecimento alcançou “a” ‘Verdade’, por mais que encontremos evidências que corroborem alguma tese, sempre é possível encontrar algum caso que o contrarie. Desta maneira, Popper pode ser entendido como um negativista (em contraposição aos positivistas). Uma vez que é impossível alcançar a certeza da Verdade sempre é legítimo propor explicações diferentes para aquilo que observamos. Inclusive, Popper defendia que a perspectiva realista é leva à intolerância e à violência, o que ele deixa bem claro no livro ‘Sociedade aberta e seus inimigos’ e que é objeto de um ensaio ‘Realismo, dicotomia e intolerância’ que apaguei sem querer e que voltarei a publicar em breve.

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 03/01/2022
Reeditado em 06/06/2022
Código do texto: T7420855
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