MADAME BOVARY
MADAME BOVARY
Considerado o romance dos romances, Madame Bovary é a obra mais emblemática do realismo europeu e a mais famosa do autor francês Gustave Flaubert. Foi concebida para quebrar com os paradigmas do gênero romance e também é perpetuada por grandes críticas à hipocrisia da burguesia francesa do século XIX, ao Romantismo, ao materialismo, à família e ao casamento, para citar apenas alguns.
O romance foi publicado em abril de 1857 após um processo que proibia a circulação do livro sob a acusação de a história tratar-se de uma ofensa à moral pública e à religião. A justiça francesa acreditava que o romance seria uma grande ameaça perturbadora para quem o lesse, principalmente MADAME BOVARY
para as mulheres, que naquela época eram as maiores consumidoras de literatura e precisavam estar sempre sob a constante vigilância de seus pais e maridos, a respeito do tipo de livros que elas poderiam ou não ler; existiam livros considerados perigosos para as mentes femininas, e Madame Bovary ocupava o topo da lista.
Todo o escândalo e a polêmica envolvendo a publicação do romance se deu por causa do grande temor que ele causou nos detentores da inteligência e da moral das mulheres daquela época: os homens. Temiam que as mulheres se identificassem com Emma Bovary, a personagem título, justamente porque ela era a personificação das mulheres daquela época; Emma era uma ávida leitora e o romance é repleto de passagens onde a personagem passa horas lendo trancada em seu quarto. O próprio Flaubert escreveu na epígrafe que: “Se meu livro for bom, ele despertará docemente muita ferida feminina. Mais de uma sorrirá ao se reconhecer”. À primeira vista, pode-se dizer que os comportamentos transgressores de Emma foram causados pelo tipo de romance que ela lia. É notável a crítica de Flaubert ao tipo de literatura que era direcionada às mulheres do século XIX: além de livros de orações, eram recomendados a elas livros de romances açucarados com histórias de amor bem sucedidas, evitando leituras que pudessem acrescentar algum tipo de engrandecimento de seus intelectos. Sendo assim, Emma construiu todo o seu conceito de amor e vivência baseado nos livros com que ela tinha contato, buscando incessantemente, até o fim, reproduzir em sua realidade desiludida a fantasia dos livros que eram lidos por ela.
“Emma procurava saber o que se entendia exatamente, na vida, pelas palavras felicidade, paixão, embriaguez que lhe haviam parecido tão belas nos livros.” interna de um convento — nessas épocas, as jovens mais abastadas eram enviadas a conventos e internatos para serem educadas, aprendiam a cultivar a religião, as artes da costura, estudavam música e alguma língua estrangeira —, onde ela tinha acesso aos romances através de uma mulher que prestava serviços na rouparia; a senhora emprestava os livros proibidos às escondidas para as alunas maiores e Emma devorava-os todos. Assim, logo ela substituiu as leituras religiosas pelos romances repletos de tumultos do coração, lágrimas, beijos, castelos em florestas sombrias e cavalheiros corajosos e virtuosos. Ela mergulhou nos romances históricos de Walter Scott e se entregou ao culto e veneração entusiasta pelas mulheres ilustres e infelizes da história, como Mary Stuart, rainha da Escócia, e Joana d’Arc. A cada nova leitura ela poderia colocar-se no lugar das personagens e assumir suas vivências apaixonantes para esquecer, por um momento, das freiras com seus sermões e orações. Os romances educaram Emma, eles eram os únicos meios de conhecimento de uma possível vida real que ela possuía, nem a religião fora capaz de conter as suas inquietações, as únicas mulheres com que ela tinha contato eram as freiras, já que sua mãe morreu pouco depois de sua ida para o convento, então, ela acabou por construir sua personalidade baseada nas heroínas romanescas. Faltou a Emma alguém que lhe alertasse sobre as mazelas da vida real de uma mulher do século XIX, alguém que lhe dissesse que a sua vida não seria como a dos livros. Portanto, como é possível que se jogue a culpa de seus comportamentos “inadequados” na literatura, quando ela foi um caminho para que Emma transgredisse as convenções que se abatiam sobre o sexo feminino de sua época? Apesar de tudo, foi a literatura que escancarou o vazio de sua realidade, pobre de experiências.
Depois de sair da monotonia do convento para a calmaria entediante do campo, onde seu pai morava, sua única ocupação era comandar os empregados como uma boa dona de casa, tanto que não demorou para que ela logo se enfastiasse daquele ambiente, chegando até a sentir falta do convento. O tédio da casa de seu pai foi essencial para que Emma se empolgasse com a aparição do jovem médico, Charles Bovary, em seu cotidiano: “Quando Charles foi aos Bertaux pela primeira vez ela se considerava grandemente desiludida, nada mais tendo para aprender, não tendo mais nada para sentir”. A novidade da presença de Charles logo fez com que ela acreditasse que finalmente estava prestes a viver a felicidade com que sonhara.
O banho de água fria chegou logo nos primeiros dias do casamento, quando ela percebeu que Charles não era como os cavalheiros virtuosos dos romances. Os conhecimentos que ele possuía se limitavam à medicina, não sabia nadar, esgrimir e nem sentia vontade de ver as peças de teatro na cidade vizinha; o espírito dele era oposto ao de Emma. À medida em que ela ia se tornando íntima dele, mais ela ia construindo um afastamento interior do marido, afinal não havia nenhum gosto em comum entre os dois. E apesar de Charles se mostrar amoroso com ela, ele não fazia muita questão de conhecer e apreciar os gostos de sua esposa, e ele a julgava extremamente feliz, afinal, o que mais uma mulher daquela época poderia querer além de uma casa e de um marido? Mas Emma queria muito mais, ela não queria apenas ser recatada e do lar, ela também queria sentir na pele a felicidade e as turbulências das paixões que estavam tão presentes na ficção dos livros que lera, queria as aventuras, as desilusões, os lugares novos, os bailes… Talvez fosse crime no século XIX que mulheres tivessem o desejo de ter uma vida além do casamento, da vida doméstica e dos filhos, afinal, era essa a preocupação de muitos ao negar às mulheres leituras que lhes instigasse a criticidade, que lhes fizessem julgar a instituição casamento, já que o casamento dos romances era bem diferente do da vida real. E foi exatamente assim que Emma percebeu que era infeliz. “Aquela miséria duraria para sempre? Será que nunca sairia dela? Ela valia, contudo, tanto quanto as pessoas que viviam felizes!”
Emma via-se presa num ócio sem fim, tentava em vão inflamar o coração de Charles, recitava para ele rimas apaixonadas que sabia de cor e cantava alguns adágios melancólicos para ver se ele reagiria da forma como ela esperava que ele agisse, como um homem fantástico dos romances: vigoroso, romântico e protetor. Mas ele se mantinha imperturbável com suas citações, e ela sentia-se tão calma quanto antes.
Até as demonstrações de carinho dele se tornaram regulares com o passar dos tempos: ele a beijava em determinadas horas, como se fosse um hábito comum da rotina. “Era um hábito como os outros e como uma sobremesa prevista com antecedência após a monotonia do jantar.”