Ecossistema Público/Privado x Ecossistema Privado/Privado- Ecossistemas Financeiros 1

NESTE ENSAIO

1. Sistema Público/Privado: Custos Públicos, Benefícios Privados

2. Sistema Privado/Privado: Custos Privados, Benefícios Privados

3. Itaú e o Real são integrantes do sistema público/privado

4. Bitfinex e o Dólar Tether (USDT) são integrantes do sistema privado/privado

5. Estado, ao resgatar integrante do sistema público/privado espalha fragilidade para todo o sistema: sistema público/privado é frágil.

6. No sistema privado/privado integrante doente (insustentável ou fraudulento) sai do mercado (sistema privado é antifrágil)

7. Corrida aos bancos (feedback positivo)

8. Arbitragem do USDT (feedback negativo) - Dólar Tether é protegido por mecanismos de mercado.

9 (nas observações) Explicação do Milkshake Theory de Brent Johnson.

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PREÂMBULO

Vivo em uma situação engraçada, sou entusiasta do bitcoin desde que soube da existência da tecnologia, creio que em 2013. Inclusive defendo em debates com amigos a importância de possuí-lo e divulgo entre minha família. Mas só comprei pela primeira vez este ano (2021). Se isto não for procrastinação, eu não sei o que é. E o pior, perdi a senha! Esta é a ironia: neste ensaio defenderei o ecossistema financeiro privado, entretanto aparentemente não tenho maturidade ou responsabilidade para fazer parte dele (obs: ainda tenho esperança de achar a minha senha na casa de algum parente). Neste ensaio defenderei a existência de dois ecossistemas financeiros, um público/privado em que as pessoas são tuteladas pelo Estado, mas pagam um preço alto por isto. O outro é o sistema privado, em que cada pessoa arca pelas decisões que toma (o que exige muito mais de cada uma delas).

A comparação entre dois ecossistemas joga luz em cada um deles, o ecossistema privado se constitui de ferramentas como o próprio bitcoin, (que doravante chamarei de btc), ao passo que o ecossistema público/privado se constitui de instituições públicas (como a moeda nacional e como os bancos centrais) ou fortemente regulamentadas (como os bancos Itaú, Bradesco e Banco do Brasil). A comparação aqui é entre uma empresa integrante do sistema público/privado responsável por atuar na moeda nacional (o exemplo é o Itaú e o real) com uma empresa do sistema privado responsável por gerir uma moeda (a empresa exemplo do sistema privado é Bitfinex e a moeda é privada é o dólar Tether, USDT). A escolha mais óbvia para representar o sistema privado seria o bitcoin, afinal o USDT tem seu preço atrelado ao dólar, portanto ainda tem seu preço decidido por instituições do Estado 1*. A escolha pela Bitfinex e pelo USDT se dá justamente porque são mais semelhantes a empresas do sistema público/privado, o que facilita a comparação.

O Itaú é um dos principais bancos da américa latina e é uma instituição supostamente privada. Mas, caso esteja em perigo de ir à bancarrota (aliás, muito antes deste perigo chegar aos ouvidos públicos) o banco central irá implementar sua política pública de maneira a protegê-lo. Como todos os bancos, ele possui diversos clientes que deixam seu dinheiro em suas contas. Este dinheiro o Itaú usa com critérios próprios, mas dentro de uma forte regulamentação. Uma parte o banco empresta para outras pessoas (tanto pessoas físicas como jurídicas). Repare, se algum cliente pede para entrar em um fundo de ações o cliente sabe que o desempenho de seus ativos será correspondente ao desempenho das ações que compõem o fundo (inclusive com os riscos que tal investimento acarretam). Quem pede para investir em CDB sabe que está fazendo um empréstimo para o banco, e o risco é de acordo com cada banco (não vou entrar no mérito do fundo garantidor de crédito, isto daria outro ensaio). Entretanto, quando uma pessoa deixa o dinheiro na conta corrente ela imagina que o valor está livre de riscos, como se seu dinheiro estivesse lá, guardado para quando quiser pegar. E, enquanto poucos clientes quiserem fazer suas retiradas, este é o caso.

SISTEMA PÚBLICO/PRIVADO

ITAÚ - UMA ENTIDADE PARAESTATAL

Digamos que alguém deposita na conta corrente do Itaú um milhão. Deste um milhão o banco pode emprestar uma parte, digamos, quinhentos mil. Novamente, quem pegou este valor emprestado provavelmente não sairá com o dinheiro em mãos, de maneira que o banco pode emprestar uma parte dos 500 mil…. Assim sucessivamente até… até muito dinheiro ser criado. O Itaú “multiplica” a quantidade de reais, onde antes havia 1 mil, passa a existir 5 mil reais 2*. Há mais dinheiro criado desta maneira do que impresso a partir da casa da moeda. O Banco Central tem consciência do multiplicador bancário e o acompanha de perto, aliás, ele não apenas acompanha, ele orienta o multiplicador bancário. Embora não seja colocado nestes termos pelo ordenamento jurídico brasileiro, o Itaú é uma entidade paraestatal responsável pela criação do dinheiro a partir da orientação do Banco Central (da mesma maneira que a casa da moeda). É claro que o Itaú não faz isto de graça, ele é remunerado pelos juros que cobra em seus empréstimos.

CUSTOS PÚBLICOS, BENEFÍCIOS PRIVADOS

Desta maneira o Itaú (orientado pelo Estado) cria fragilidade. Repare, a dívida que o Itaú cria deve ser paga em reais. Ao criar esta dívida o Itaú gerou dinheiro (multiplicador bancário). Da mesma maneira que gerar a dívida cria, pagar a dívida extingue o dinheiro. A quantidade de reais criada por empréstimos é muito maior do que a quantidade de papel moeda em circulação. Enquanto os empréstimos são concedidos a uma taxa maior do que são pagos, a fragilidade se acumula mas sem consequências negativas imediatas, pois haverá quantidade de reais em circulação para o pagamento das dívidas que expiram. Entretanto, esperar que o sistema financeiro apenas aumente a quantidade de empréstimos linearmente para sempre é uma postura ingênua. Alguma tecnologia nova pode tornar outras ultrapassadas e fazer com que o modelo de negócios de muitas empresas passe a ser irrelevante, de maneira a causar algumas falências. Ou mesmo um evento climático (como uma grande seca) pode impactar diversos negócios, de maneira a que eles deixem de conseguir pagar seus empréstimos. Ou, quem sabe, um país que importa muito do Brasil pode entrar em guerra e fazer com que diversos negócios sejam prejudicados… enfim, as possibilidades que levem a um eventual choque negativo na economia são infinitas 3*.

Neste caso, o ritmo em que as dívidas dos clientes são extintas (seja por calote, seja por quitar a dívida) é maior do que o ritmo de empréstimos realizados. Ou seja, passa a ocorrer a extinção de moedas (as mesmas que foram criadas quando o dinheiro foi emprestado). A extinção das moedas faz com que o próprio real se torne mais caro (a dívida foi contraída quando tinham muitos reais criados pelo multiplicador, portanto quando o real valia menos, mas ela vai ser paga agora, quando um monte de empresas foi à falência, extinguindo os reais e os tornando mais caros). Desta maneira as pessoas que estão endividadas estão em uma armadilha: devem pagar sua dívida em uma moeda muito mais valorizada do que quando a dívida foi gerada 4*. Lembre-se, existem mais reais criados por empréstimos do que reais em papel moeda. Este cenário parece ruim, mas o Itaú não tem por que se preocupar. O banco central acompanha o sistema financeiro de perto, a qualquer dificuldade o Estado vai socorrer o banco: seja diminuindo os juros (para ocorrer mais empréstimo e aumentar a base monetária), seja com a impressão direta de moedas, seja emprestando diretamente ao Itaú ou, em último caso, alterando o arcabouço legal para proteger o banco “grande demais para quebrar”.

DISCURSO OFICIAL

O momento em que se aumentam os empréstimos é o momento do acúmulo de fragilidade, mas neste momento o discurso oficial é de comemoração. O aumento dos empréstimos é considerado um sinal de confiança dos empresários, o aumento do consumo (a crédito) é comemorado na medida que ele é relacionado à diminuição do desemprego e, consequentemente, ao aumento dos salários (aumento da qualidade de vida das pessoas em geral). Políticos se reelegem, a mídia fica eufórica, acadêmicos keynesianos comemoram que a roda da economia começa a girar e que o “espírito animal” dos empresários despertou. Entretanto, quando a fragilidade se torna patente e o sistema chega às vias de uma grande crise o discurso é o de que “a economia” precisa de ajuda, o “sistema financeiro" está ameaçado, o “sistema capitalista” 5* causa miséria... Portanto o Estado deve agir ainda mais intensamente para resgatar os bancos (especialmente os maiores, como o Itaú).

CORRIDA AOS BANCOS

A falência do Itaú significaria (e de fato significa) uma desestruturação do sistema financeiro com consequente falências generalizadas: como há muito mais dinheiro em circulação do que papel moeda impresso, caso todas as pessoas queiram sacar o dinheiro que está no banco, o banco não consegue entregar. Quando algumas pessoas forem ao banco tentando sacar e não conseguirem, isto pode desencadear uma corrida ao Itaú, cada pessoa tentando sacar o máximo de moeda que conseguir. Tal corrida é o maior temor de um banco, caso ocorra a falência é provável. Repare, o advento da falência de um banco significa o sumiço de muito dinheiro (todo o dinheiro que o Itaú pegou emprestado com outros bancos desaparecerá do sistema financeiro). Além disso, outros bancos dependem do valor que o Itaú lhes deve, assim a falência do Itaú pode significar a falência de tais bancos. Quanto maior a instituição, mais o Estado se preocupa com sua saúde financeira (os famosos “grandes demais para quebrar”). O resgate ao banco gera um ciclo de acúmulo de fragilidade, cada banco tem o incentivo para emprestar, para inflacionar o mercado (trazendo a bonança temporária e acumulando fragilidades). Como também tem a segurança de, quando as fragilidades se manifestarem, ser socorrido pelo Estado.

SISTEMA PÚBLICO/PRIVADO, DEFINIÇÃO DE

Este, em linhas gerais, é o sistema público/privado. Custos públicos: fragilidade, socorro ao sistema financeiro, inflação… /benefício privado: dividendos do Itaú (do Itaú), juros baixos e efeito Cantillon (para o cliente do Itaú), reeleição de políticos.

SISTEMA PRIVADO/PRIVADO

USDT - DÓLAR THETER (STABLE COIN DE DÓLAR)

O USDT é uma stable coin, é uma moeda “estável”. Mas estável em relação a quê? Em relação ao dólar. Supostamente, para cada USDT há um ativo equivalente em dólares ou em títulos de dívida pública americana, facilmente conversíveis em dólares. A cotação da USDT em relação ao dólar varia um pouco, além disso quando compramos o USDT é cobrada uma tarifa da “casa de câmbio” (a exchange) que vendeu o USDT. Então por que comprar? Não seria mais fácil simplesmente manter o dinheiro em dólar? Por que se sujeitar a um outro ativo financeiro que não a própria moeda? A razão é a praticidade e agilidade, ao comprar a USDT o dinheiro fica na exchange (a casa de câmbio do sistema privado/privado). Se eu quiser comprar um bitcoin não precisarei transferir do Itaú para a exchange e então comprar bitcoin. Posso simplesmente comprar o bitcoin rapidamente. Para quem faz day trade (compra e vende ativos assim que enxerga uma oportunidade) ou para uma empresa de comércio internacional (que precisa movimentar o valor entre jurisdições diferentes) é muito mais ágil ter o dinheiro à mão em uma exchange do sistema privado/privado.

USDT INTEGRA SISTEMA PRIVADO?

Uma vez que o USDT é lastreado em na nacional dos EUA, há que se argumentar que ele faz parte do sistema público/privado, não do sistema privado. Entretanto toda a economia é ligada, mesmo o bitcoin atualmente é cotado em dólares, além disso é possível usar a legislação de cada país para regulá-lo (o êxito de tal legislação não é tema deste ensaio). De maneira que a fronteira do que é o sistema público/privado e do que é o sistema privado é cinza. Mas, o USDT não é socorrido pelo banco central dos EUA (o FED) e, apesar de regulado, por estar fora dos EUA, não é auditado. Assim, para fins deste ensaio, situo ele como dentro do sistema privado. Frisando o motivo pelo qual entendo que o USDT é parte do sistema privado: o USDT foge à regulamentação estatal e não é salvaguardada por instrumentos estatais. Diferentemente do Itaú, se a empresa que gere a USDT (a Bitfinex), estiver ameaçada ninguém vai socorrê-la.

(OBSERVAÇÃO: A MAIOR AMEAÇA AO BITCOIN

Em canais de economia e investimento venho acompanhando diversos alertas de que a maior ameaça ao bitcoin é o USDT. A maior parte dos bitcoins comprados foram comprados a partir da USD. Além disso, há uma forte suspeita de que existem muito mais USDT do que existem ativos em dólar que lhe garantam lastro 6*. Percebam a ironia, a maior ameaça ao bitcoin é o efeito multiplicador do USDT! Se é assim deveríamos considerar o efeito multiplicador dos bancos a maior ameaça às moedas nacionais! Entretanto, não é o caso, o Estado garante e incentiva o efeito multiplicador dos bancos: existem diversas leis destinadas a proteger os bancos das consequências de seus empréstimos, mas se não for suficiente as próprias regras do jogo podem ser alteradas para proteger os bancos e compeli-los a emprestar. )

FRAGILIDADE

Como esclareci acima, o maior medo de um banco é uma corrida bancária. A reserva em papel moeda em relação à quantidade de reais que as pessoas tem depositadas no Itaú é ínfima. Assim, caso umas poucas pessoas (em relação à quantidade de seus clientes) sacarem os reais da sua conta, o banco já não consegue honrar seus compromissos. Tal medo é refreado pela segurança que o Estado dá. O Estado garante que não chegará uma situação em que o Itaú não consiga honrar seus pagamentos (mesmo que para isto tenha que literalmente imprimir papel moeda). O temor é tanto que os próprios bancos se associam para criar proteções mútuas. Esta é a origem do fundo garantidor do crédito (instituição que considero legítima e ética) e é a origem da cooptação do Estado pelos bancos (nos EUA o FED foi criado para que os bancos usem a força do Estado em benefício próprio). Já a Bitfinex (empresa que faz a USTD) não tem o Estado para protegê-la. Assim, uma vez que já há forte especulação que embasa a tese de que ela está se alavancando (fazendo o multiplicador bancário) por que não há uma ‘corrida à Bitfinex’ (parafraseando a “corrida aos bancos”)?

Recapitulando: no sistema privado/público os benefícios da tomada de riscos são privados (acesso ao crédito de quem pegou emprestado e lucro do banco), ao passo que o custo de um resgate a um banco são de todas as pessoas (custo público). Este custo é direto (com o dinheiro que sai dos cofres públicos) e indireto (o resgate a uma instituição dá tranquilidade a outras instituições a incorrerem nos mesmos riscos, efeito Cantillon). Já no sistema privado/privado o benefício é privado (quem compra a USDT tem acesso às facilidades que a stable coin proporciona), mas o risco também é privado. Caso uma moeda seja extremamente desvalorizada, cada pessoa que tem o USDT será prejudicada na medida em que tem ativos lá. Pode acontecer de que uma pessoa tenha muitos compromissos financeiros e boa parte de seus ativos estarem em USDT e em btc. Neste caso, se a USDT perder muito valor, a pessoa pode se ver obrigada a vender btc, fazendo uma pressão no sentido de desvalorizar o btc. Este é o tão alardeado risco que ameaça o btc.

ECOSSISTEMA PRIVADO ANTIFRÁGIL x ECOSSISTEMA PÚBLICO/PRIVADO FRÁGIL

Suponhamos o pior cenário, a Bitfinex dá calote: seus donos vão embora com 100% dos ativos da empresa. Neste caso, o bitcoin e a maioria das moedas digitais terão uma grande redução em seu valor de mercado. Mas o btc não irá à falência (a propósito, ao contrário da USDT o btc não é controlado por nenhuma empresa). O sistema simplesmente estará livre de uma parte frágil, doente. Caso o Itaú fique em situação crítica o Estado o socorre (inclusive antes que a população em geral se dê conta de tal fragilidade). No sistema privado o membro doente é extirpado, no sistema público/privado o membro doente é mantido às custas de adoecer todo o sistema!

MOTIVOS PARA A BITFINEX NÃO QUEBRAR

Ao longo do ensaio defendi que o Itaú, um integrante do ecossistema público/privado é (em tudo, menos no ordenamento jurídico) uma entidade paraestatal responsável pela criação da moeda nacional (o Real) através do multiplicador bancário. Como tal é uma instituição tão forte quanto o Estado, pois o Estado fará de tudo para protegê-lo da bancarrota (“grande demais para quebrar”) e que o custo de tal proteção é pago por toda sociedade. Também defendi que o Bitfinex, caso venha à falência, vai prejudicar principalmente as pessoas que escolheram participar daquele risco. Agora vamos examinar duas hipóteses que explicam porque a Bitfinex não quebrou. A primeira hipótese é uma boa gestão de riscos (embora opaca), a segunda hipótese é a de que as pessoas ao redor do mundo “trabalham” em favor da Bitfinex.

BOA GESTÃO DE RISCOS: PRIMEIRA HIPÓTESE

A proteção do Itaú por parte do Estado é opaca, inclusive de acordo com o discurso oficial é é um banco privado, mas ações em sua defesa são tomadas ante a mera hipótese de que sua segurança financeira pode estar ameaçada (muito antes de tal preocupação chegar ao ouvido do público em geral). Mas a forte regulamentação do Estado obriga que a situação financeira do Itaú seja extremamente transparente. Assim sabemos em que o Itaú investe, qual a porcentagem de clientes que estão em atraso e quanto tempo de atraso, bem como conhecemos sua situação patrimonial. Desta maneira, os próprios reguladores tem acesso a dados essenciais à suas decisões em relação a juros, inflação, base monetária… tais decisões não são exclusivamente tomadas tendo em vista a saúde financeira do Itaú, mas a levam em conta. Já a Bitfinex, sediada em um paraíso fiscal, aloca seus recursos como lhe convém (pois não é alvo de auditorias). Nesta primeira hipótese (boa gestão de riscos) a Bitfinex percebe que, embora faça sentido aplicar em títulos da dívida pública americana (facilmente conversíveis em dólar) existe um forte risco de que o Estado (os EUA) deem calote. Esta é uma hipótese que uma grande instituição não pode assumir publicamente (pois a transformaria no principal alvo do Estado dos EUA). Se é o caso, a Bitfinex pode escolher investir em outros títulos conservadores de outros países mesmo que sua conversão em dólares não seja tão fácil. Títulos de quais países? Neste caso faz sentido comprar títulos de países em que as pessoas usem USDT para negociar, pois caso o USDT seja vendido naquela jurisdição, a pessoa vai querer a moeda nacional de seu próprio país 7*. Nesta primeira hipótese a USDT não faz uma má gestão de seu patrimônio, faz uma boa gestão, porém opaca. Seus ativos não são tão dolarizados quando diz ser, mas por acreditar que esta é a melhor gestão do seu negócio. Agora veremos uma segunda hipótese, a de que a Bitfinex, da mesma maneira que um banco, vende mais USDT do que possui de ativos.

GOLPE JÁ FOI DADO: SEGUNDA HIPÓTESE

CORRIDA AO BANCO SE RETROALIMENTA (FEEDBACK DESTRUTIVO)

Agora suponhamos que a Bitfinex faz exatamente o mesmo multiplicador que qualquer banco, mas sem o Estado para lhe garantir. Digamos que o patrimônio da Bitfinex é suficiente para converter 20% dos USDT em dólares. Assim, se ela fosse um banco e 30% das pessoas decidissem sacar os USDT a empresa não conseguiria honrar seus compromissos. Neste caso a Bitfinex já deu seu golpe, os donos já pegaram o valor que seus clientes usaram para comprar o USDT e a usaram para distribuir para os seus donos ou para seja lá o que for. O valor que ela deixou guardado em ativos é apenas o suficiente para que a Bitfinex continue rodando (afinal, não há motivos para matar a galinha de ovos de ouro). Para o Itaú, caso exista a suspeita de que ele não conseguirá honrar suas dívidas pode ocorrer uma corrida ao banco em que cada pessoa que retira o valor aumenta a chance do Itaú ir à falência, o que aumenta o incentivo para outra pessoa sacar o valor do Itaú em um ciclo que se retroalimenta (feedback positivo). O ocorre com a Bitfinex é algo bem diferente.

CORRIDA AO USDT DESINCENTIVA A CORRIDA (FEEDBACK NEGATIVO)

No caso da Bitfinex, caso grandes investidores tirem o seu patrimônio (vendam USDT) a Bitfinex não irá à falência, apenas seus ativos se desvalorizam (o USDT fica mais barato que o dólar). Quando a USDT se desvalorizar em relação ao dólar, qual é o incentivo das demais pessoas? É esperar que o USDT volte ao valor atrelado ao dólar para, só então, vender. Mas espere, se o preço do USDT voltou a corresponder ao do dólar, isto não é evidência de que o USDT está com bases sólidas? Se é o caso, não há incentivo para vender o USDT. Apenas promessa de que o USDT voltará à paridade ao dólar é uma profecia auto realizável: mesmo que a Bitfinex não tenha patrimônio para honrar seus compromissos, vale a pena para cada investidor comprar a USDT quando ela estiver com a cotação baixa (arbitrar com o preço em relação ao tempo). Tal promessa (de paridade com o dólar) é endossada pelo histórico de anos de sucesso mais do que pela quantidade de ativos que a Bitfinex possui. Me repetindo, se o preço do USDT está abaixo do dólar eu tenho incentivo para comprar o USDT até que ele fique no mesmo valor que o dólar! Em outras palavras, as pessoas ao redor do mundo, todos os clientes da Bitfenix tem o incentivo mercadológico de “trabalhar” no sentido de manter o USDT atrelado ao dólar. Em momentos muito turbulentos a Bitfinex pode se ver obrigada a usar uma parte significativa de seu patrimônio, mas uma vez que os mecanismos de mercado a favorecem (ao contrário do que ocorre no sistema bancário) o patrimônio que ela precisa reservar é relativamente muito baixo. Da mesma maneira que o Itaú, a Bitfinex roda a partir da confiança do público, mas na dúvida vale a pena tirar o dinheiro do Itaú, ao passo que na dúvida vale a pena manter o valor na Bitfinex. Ou seja, o Itaú é mais frágil que a Bitfinex mesmo sem que a Bitfinex recorra ao Estado para protegê-la 8*.

O BENEFÍCIO DA TUTELA DO ESTADO

Há que se reconhecer que o Estado não é exclusivamente uma máquina de conceder benefícios para uns poucos selecionados (como o Itaú) ao custo para toda a população. O Estado dá a segurança a cada pessoa contra as más decisões que ela mesma toma. Torna-se quase desnecessário averiguar se determinada instituição financeira é sustentável: a estrita regulação do Estado já faz este serviço para cada um de nós. Além disso, caso alguém entregue dados sensíveis a outrem em um golpe o Estado (através do sistema judiciário) obriga o Itaú a devolver o dinheiro. Em outras palavras, o Estado é como uma pessoa adulta frente a uma criança (a criança é cada um de nós), quando a criança toma uma decisão descaradamente equivocada a pessoa adulta usa sua força para que a decisão seja desfeita. No sistema privado é impossível recorrer ao Estado para desfazer alguma decisão ruim. Caso eu perca minha senha definitivamente vou perder o valor que comprei em btc para sempre (não posso recorrer ao Estado para obrigar alguém a me dar algum btc). Na ausência do Estado fica na minha responsabilidade guardar bem a senha ou escolher manter minha poupança em alguma instituição que oferece uma maneira de eu resgatar minha senha. Da mesma maneira fica na responsabilidade de cada um de nós avaliar se determinado ativo (como a USDT) é um esquema de pirâmide ou é confiável. Quando estamos no Estado (e possuímos reais) temos a certeza de que aquele valor será aceito em todas as instituições no Brasil (por força de lei) e de que a variação do seu poder de compra é de acordo com as decisões tomadas pelo Estado nacional (especialmente o Poder Executivo e o BACEN).

CONCLUSÃO

Neste ensaio apresento a perspectiva de que existem dois ecossistemas, o primeiro é o ecossistema público/privado (em que os custos são públicos e os lucros são privados). Um exemplo claro de um integrante deste sistema são os bancos - mesmo os que são considerados, pelo ordenamento jurídico brasileiro como bancos privados, como é o caso do Itaú. De acordo com esta perspectiva, a maior segurança de uma instituição público/privada (como o Itaú) não são suas próprias decisões - pois o Itaú tem relativamente pouca margem de decisão - a fonte principal de segurança é a proteção do Estado. Tal proteção, entretanto, além de ter um custo para toda a sociedade torna o ecossistema público/privado mais frágil pois há incentivos para que cada instituição assuma riscos (que serão pagos pela sociedade como um todo). Além disso, o resgate a cada instituição público/privada é um incentivo para que outras instituições assumam riscos semelhantes. Ou seja, no caso público/privado ao invés do membro doente ser extirpado (através da falência) a doença se espalha para o sistema como um todo (através da proteção do Estado).

Já no ecossistema privado/privado o risco, em princípio, é maior, pois o Estado não está lá para tutelar nossas decisões, nem tampouco para resgatar uma instituição que venha a falir (ou se revele fraudulenta). Entretanto, o ecossistema privado/privado é antifrágil, pois os experimentos e tecnologias que se revelem confiáveis se acumulam, ao passo que as empresas e experimentos que se revelem ruins ou fraudulentos são excluídos do sistema (por exemplo, através de falências).

Neste sentido, a comparação entre uma instituição do ecossistema público/privado (o Itaú) e uma instituição do ecossistema privado/privado (a Bitfinex) é esclarecedora. No caso do Itaú existe toda uma orientação/proteção do Estado para que ele possa assumir riscos (como multiplicador bancário). Entretanto, no caso de suspeita de insolvência, o incentivo para cada pessoa é retirar seus reais do Itaú e cada retirada aumenta o risco de falência e é o estímulo para uma nova retirada (feedback positivo).

Já no caso da Bitfinex, caso haja uma redução do seu valor de mercado, o incentivo de cada participante da empresa é no sentido de esperar o valor voltar à correspondência com o dólar (pois vender a um preço mais baixo indica uma perda). Inclusive o incentivo vai além, é o de comprar bastante USDT para ganhar com a valorização (arbitrando com o preço em relação ao tempo). É claro que comprar USDT baixo para vendê-lo quando ele estiver em paridade com o dólar implica em um risco. Mas este risco é assumido por quem toma a decisão de ingressar nele, não pela sociedade como um todo.

Desta maneira o sistema público/privado consiste em custos públicos: inflação, preço gasto na manutenção das estruturas de controle, BACEN e demais órgãos do Estado, instabilidade financeira (estouro de bolhas), acúmulos de risco. E benefícios privados: dividendos do Itaú, efeito Cantillon para tomadores de empréstimo, segurança para correntistas do Itaú, reeleição de políticos.

Em contraposição o sistema privado/privado consiste em benefícios privados: lucro para os donos da Bitfinex, comodidade para as transações com a moeda, estabilidade dos preços dos ativos (frente ao dólar). Como também conta com riscos privados: caso a empresa vá à falência ou caso alguém seja vítima de um golpe no ecossistema privado/privado é impossível recorrer ao Estado em busca de socorro.

Particularmente me posiciono no sentido de que a grande maior parte da nossa vida deve ser de riscos privados/ consequências privadas. Entretanto, como avisei nos parágrafos acima, isto não é completamente claro pois a mim falta a maturidade para arcar com as consequências das minhas ações (perdi a senha dos bitcoins que comprei).

Como você se posiciona?

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------OBSERVAÇÕES:

1* - Há que se argumentar que o preço do dólar não é decidido pelo Estado, pois o aumento da produtividade da economia valoriza o dólar. Entretanto, políticas como decidir os juros, decisão por imprimir moedas ou por políticas que na prática obriga bancos a emprestar tem um efeito direto no preço do dólar.

2* A quantidade de dinheiro criada é uma função em relação à quantidade de dinheiro que o banco empresta. Vamos supor que o banco empresta 80% do valor que cada pessoa deixa na conta corrente. Vou chamar o total na conta corrente de CC, e o tanto que o banco empresta de E. Assim o valor criado é CC/(1 - E) Ou seja, o valor criado é CC/(1- 0,8). Ou seja, a quantidade de reais existente será CC/0.2, o que é a mesma coisa que CC vezes . Em outras palavras, no caso do banco emprestar 80% e todo mundo que pegar o dinheiro depositá-lo no banco a quantidade de dinheiro será 5 vezes o que era originalmente. Portanto para cada um real depositado outros quatro são criados.

Para quem quiser se aprofundar no tema:

https://www.fgv.br/rae/artigos/revista-rae-vol-38-num-1-ano-1998-nid-46483/

Gostaria de ainda de frisar que é impossível saber a quantidade de ativos no mundo, mas que ela é extremamente maior do que o PIB no mesmo período. Como mensurar um ativo que foi criado há dez anos atrás e que ninguém, exceto seu dono, sabe que existe. Por exemplo, o colar de ouro que está na família há gerações (algo bem comum na Índia).

Além disso, como os ativos não possuem uma amarra metafísica a algum bem, eles podem ser valorados livremente. Por exemplo, é perfeitamente possível que o valor dos bitcoins seja superior ao PIB mundial.

3* O que leva à armadilha na qual o Banco Central dos EUA se encontra atualmente. Para manter a liquidez, isto é, para manter o dólar com o mesmo poder de compra de quando dívidas antigas foram feitas o FED precisa estimular muito empréstimos - e ele mesmo precisa emprestar. Entretanto, aumentar os empréstimos aumenta a fragilidade. No caso específico, os juros do FED estão negativos (a dívida não tem custo para o Estado). Neste cenário ele pode emprestar mais. Mas a dívida se torna tão alta que, caso ocorra uma pequena elevação dos juros a dívida se tornará impagável.

https://www.youtube.com/watch?v=9_ejxKPWxDU&list=PLYKCQERMgWPhA6meSmwyvB9ipU1M_RiTJ

4* Tive a clareza representada pelo problema do pagamento das dívidas através da teoria do milkshake de Brent Johnson. Digamos que a empresa Casas Bahia contraia um empréstimo num contexto de euforia em que foram criados (pelo multiplicador bancário) 3 reais para cada um dos que foi criado impresso. Depois de alguns anos ocorre uma crise financeira e os bancos passam a emprestar muito menos (com medo de calote). Além disso, outras dívidas foram pagas ou foram abandonadas (calote). Neste caso, todo aquele dinheiro que foi criado através do multiplicador bancário desaparece e a Casa Bahia deve pagar sua prestação que está expirando. Neste caso, como existem menos (pois existem menos reais criados por empréstimos) a sua dívida se tornou mais cara reais (com menos reais cada um deles vale mais, seguindo a lei da oferta/demanda). Desta maneira será extremamente caro para a Casa Bahia honrar seus compromissos.

https://www.goingdeepwithaaron.com/podcast/brent-johnson

5* - Até mesmo Mises usa o conceito de “sistema capitalista” e o faz de maneira consistente com sua própria teoria. Entretanto tal conceito foi popularizado por Marx e a maioria das pessoas o entende em uma perspectiva marxista, portanto recuso o conceito ‘sistema capitalista’ (como recuso todos os conceitos de Marx).

Repare, de acordo com a perspectiva marxista, é possível atribuir a responsabilidade da crise ao “sistema capitalista”. Mas o que é isto? É tudo, tanto o mercado quanto Estado. Ao recusar o termo “sistema capitalista” é possível rastrear a responsabilidade do acúmulo das fragilidades ao Estado que orienta os bancos e os protege das consequências de seus atos.

Porque o conceito de classe de Marx confunde ao invés de esclarecer

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7319138

O preço do trabalho

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7362109

Juros, o que são

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7282827

6* A USDT como ameaça ao bitcoin.

https://www.youtube.com/watch?v=4pPPploUtYA

https://www.youtube.com/watch?v=WPpwR7aTCkk

7* Os títulos da Bitfinex são em grande medida títulos chineses. Uma vez que um dos motivos para se comprar USDT é o uso para o comércio entre os EUA e a China faz sentido ter títulos facilmente conversíveis para a moeda chinesa.

8* Quem mostrou que o sistema, ao salvar um banco, incorpora sua fragilidade, foi o Nassim N. Taleb - sinceramente não sei em qual livro, suponho que tenha sido no ‘Antifrágil’. Também vi ele se posicionando desta maneira em vídeos no youtube.