O ECO FEMINISTA EM HELENA SOARES AFONSO

RESUMO: O presente trabalho versa acerca da obra "Ventre Nosso De Cada Dia", de Helena Sores Afonso. Nesse sentido, é analisado o espectro feminista que alguns poemas do livro revelam, seja quanto à luta do gênero feminino pela igualdade de direitos, quanto à busca por respeito em relação à figura da mulher ou mesmo no tocante à liberdade da figura feminina no âmbito social. Logo, objetivou-se trazer à luz esse espectro pelas visões de Constância Lima Duarte, Silvana Mara Santos e Leidiane oliveira, assim como pela de Catarina Cecin Gazele. Ademais, percebe-se que os textos de Helena evocam um eu-lírico extremamente ativo quanto à voz da mulher e da luta contemporânea no sentido de combater a opressão que, mesmo nos dias atuais, assombra a vivência das mulheres no país.

Palavras-Chave: Feminismo; Igualdade; Mulher; Ventre Nosso de Cada Dia.

O eco feminista em Helena Soares Afonso

Diante dos escritos dessa mineira belorizontina, devo confessar que há um soco nas vísceras do machismo, ainda enraizado, infelizmente, na sociedade brasileira. Nesse sentido, já adianta-se que Helena Soares Afonso é filha dos agricultores Aleixo Afonso Ruas e Rita Soares da Silva e, além de escritora, é também atriz, pedagoga, diretora de tearo e pós-graduada em linguística e formação de leitores. Sua carreira literária inicia-se em 2006, com a obra "Infrutescência", logo, em 2014, ela publica "Vulnerabilidade nas Asas", em 2018 "Memórias Atonais", em 2019 "Ventre Nosso De Cada Dia" e, por fim, em 2020, a autora publica os e-books "Flor da Alma", "No Tempo do Olhar" e "Guerreira Invisível" nas versões Kindle. Seguindo a lógica deste breve ensaio, devo aqui frisar que a obra que nos interessa é aquela publicada em 2019: Ventre Nosso de cada Dia, uma vez que é a partir de alguns poemas aí contidos que reverbera-se de forma explícita uma poesia que traça o viés de uma literatura feminista e, por isso mesmo, merece a devida atenção.

De início, então, convoco os leitores à noção do espectro feminista pela voz de Lima Duarte (2003), a qual afirma que o feminismo pode ser interpretado “como todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de grupo” (DUARTE, 2003, p. 152). A partir dessa primeira compreensão, pode-se dizer que o ideal feminista se baseia em três palavras-chave: igualdade, respeito e liberdade; todas essas, claro, tendo em vista a figura da mulher no contexto da sociedade brasileira, a qual, até recentemente, permitia a imperação do poder patriarcal como norteador dos rumos coletivos. Assim, o movimento feminista surge justamente em oposição a paradigmas em que as várias instituições de poder, sejam políticas, religiosas, educacionais, entre outras, eram regidas, em sua esmagadora maioria, por homens. Não diferente, por consequência, via-se tal opressão também no viés literário, uma vez até o início do século XX não se via um prisma conciso de uma literatura feminina, apesar de autoras como Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) e Josefina Álvares De Azevedo (1851-1905) já encenarem revoluções no sentido da valoração da figura feminina perante o coletivo da época (DUARTE, 2003). Ademais, os rumos de uma sociedade mais “evoluída” se seguiram, tendo conquistas, como a criação do “Partido Republicano Feminino” em 1910, o “Voto Feminino” a meados dos anos 30, a criação do “Estatuto da Mulher Casada” em 1962 e o direito à prática do futebol profissional a partir de 1979, segundo dados do site “Futura”. Todas essas conquistas, é preciso dizer, não deviam ser assim caracterizadas, uma vez que a mulher e o homem são figuras igualitárias no senso de humanidade, e por isso mesmo, tais direitos (sendo essa a caracterização mais apropriada) deveriam já há muito tempo terem sido criados ou mesmo universalizada ideia de igualdade entre os gêneros, o que, como se sabe, foi limitada pelas congregações dos homens desde os mais remotos tempos.

Dado esse primeiro pequeno passeio pelo contexto histórico do viés feminista no Brasil é que adentra-se a um dos poemas do livro aqui analisado “Sobre o que Não Mais é”. Nele, o eu-lírico de Helena se coloca no lugar de várias mulheres cujos relacionamentos acabaram não tendo continuidade, havendo, portanto, o fim de tal afeto. Contudo, frisa-se aqui, como é sabido, que vários dos relacionamentos que possuem término, principalmente no Brasil, têm a figura do homem como perseguidor da mulher, visto que esse não aceita o fim da relação, fato que também jaz no poema. Veja-se:

Você não me faz feliz

Eu não te faço feliz

Para de birra

Deixa ir

Vamos inventar outros sonhos

Nada é para sempre

Sinto-me só quando estou com você

Deixa de ser apegado

Não acredite no que fixaram na sua mente (AFONSO, 2019, p. 11).

Esse trecho do poema condiz com a palavra-chave descrita mais acima no texto: liberdade. Ora, até o ano de 1962 a mulher não possuía o direito ao divórcio, pois acreditava-se que ela não podia exercer o seu direito civil do mesmo modo que o homem, ou seja, não possuía os mesmos poderes, sujeitando-se, assim, a uma espécie de prisão matrimonial. Por esse ângulo, afirma (GAZELE, 2005, p. 67) “A população feminina casada não tinha o direito de expressar livremente as suas opiniões, dependentes da aprovação do marido. O quadro era de desalento para as mulheres no início do século XX”. Em contrapartida, após a aprovação da lei nº 4.121/62, (Estatuto da Mulher Casada) a mulher ganhou mais identidade, valor e bem-estar social diante da sociedade, possuindo pleno direito ao trabalho remunerado niveladamente ao exercido por homens, à educação de qualidade, e também o direito ao divórcio sem prejuízo da sua figura social ou dos seus direitos. Assim, no poema, quando a autora fala do desejo de separação mútuo “Deixa ir/ Vá […] Deixa de ser apegado” reverbera-se o discurso da lei citada, numa tentativa do eu-lírico exercer o seu direito como ser humano perante a Constituição. Ademais, vê-se no fim do poema, mais uma vez, essa voz da liberdade, a qual representa o eco do feminismo que deve reverberar até que tal opressão seja, enfim, extinta:

Quero outras coisas agora

Vamos seguir em frente

Desgruda sua alma da minha

É pesado demais para mim

O que busco é leveza (AFONSO, 2019, p. 11).

Outro poema interessante a que se propõe esta análise tem como título “Sobre Suplício”, o qual retoma a noção de respeito, dentre o desejo feminista contemporâneo. Nesse sentido, devo falar primeiramente sobre um aspecto interessante do art. 2° da lei Maria da Penha, assim delineado:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006)

A partir do texto entende-se que a violência deve ser combatida em relação à mulher, assim como a qualquer outra pessoa que exerça os seus direitos como cidadão. Por isso, luta-se para que essa ideia se torne cada vez mais real, praticada e difundida na sociedade, haja vista que o direito, do mesmo modo que os deveres, indubitavelmente, possui a obrigação de fazer parte da consciência dos civis. Porém, contrariando essa lógica, dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelam que de 2000 a 2015 os números de violência contra a mulher aumentaram ou, pelo menos, não diminuíram. Nesse quadro, destaca-se a violência doméstica como a mais recorrente entre as registradas, além do fato de que, em sua maioria, as mulheres agredidas são negras ou adolescentes (IPEA, 2016). Logo, é nesse âmbito que lanço a voz presente no poema citado – “Sobre Suplício” –, que procura, de alguma forma, dizer basta para uma realidade tão alarmante:

Tiro, facada, estrangulamento, execução, sufocamento,

Cárcere, tapa na cara, xingamento, estupro, abuso,

humilhação.

Chega! (AFONSO, 2019, p.14)

O que nota-se na passagem transcrita é o que se vê e se vive na sociedade brasileira, uma vez que são elencados os casos de violência mais recorrentes contra a figura feminina no país. Nesse âmbito, após o eu-lírico expor tudo aquilo que o tormenta – e, deixe-se claro, ele fala isso como mulher extremamente empática – há uma exclamação que representa aquilo a que se propôs a análise deste segundo poema, isto é, o respeito. Assim, a voz que há nesse “chega!” é a que clama respeito, na acepção pura da palavra, visto que já não é mais suportável nem viável que tais problemáticas persistam no país tupiniquim ou em qualquer canto do planeta que possua consciência social crítica e plena. Ademais, no fim do poema, observa-se novamente essa voz que pede respeito:

Todos os dias, Todo tipo de crueldade.

Cessam a respiração.

Em todo lugar.

Cessam a fala.

Mulheres diferentes, com Histórias são dizimadas

para sempre.

Chega! (AFONSO, 2019, p.14)

Como percepção última acerca do trecho lido entende-se que o “suplício” é exatamente esse; que quer uma mulher passeando na rua sem medo, uma mulher que não é objeto domesticado, uma mulher que não é silenciada, uma mulher política, uma mulher jogadora de futebol, enfim, uma mulher que entende-se como sujeito, como humana e como ser social absoluto em seus direitos e obrigações.

Por fim, clamo aqui a última palavra-chave que foi explicitada no início deste texto: igualdade. Visto que é nesse ponto que se encontram uma das maiores lutas do feminismo na contemporaneidade – aquela que quer os mesmos direitos em qualquer espaço social –, torna-se essencial falar sobre os desafios que ainda impedem a concretização desse ideal, isto é, da igualdade, assim como das suas conquistas. Nesse sentido é que cita-se Silvana Santos e Leidiane Oliveira (2010), as quais afirmam que “Historicamente, identifica-se uma maior apropriação pelos homens do poder político, do poder de escolha e de decisão sobre sua vida afetivo-sexual e da visibilidade social no exercício das atividades profissionais” (SANTOS; OLIVEIRA, 2010, p. 2). A partir dessa visão, percebe-se que há uma opressão social em torno na figura feminina que termina por marginalizá-la como alguém à mercê da figura masculina, seja no âmbito educacional, jurídico, esportivo, ou mesmo em qualquer idade. Assim, mesmo nos dias atuais, o que há é uma tentativa de dominação do machismo sobre a mulher, e é exatamente por esse ângulo que revela-se o poema “Por todas Vivas”, em que o eu-lírico de Helena não se rende a essa desigualdade:

Por todas vivas!

Não vamos calar!

Te cuida, seu machista, o mundo será todo feminista!

Machistas, fascistas, golpistas, não passarão!

As que parem bordados e borboletas de todas as cores e

raças estão

Acordando, ocupando seus lugares de poder, de onde

nunca deveriam ter saído (AFONSO, 2019, p. 17).

Na análise do trecho a autora traz a voz que é uma das maiores acepções do feminismo, que é a luta entre os gêneros. Assim, as ameaças são uma resposta ao que por muito tempo ficou enraizado na cultura do país, isto é, o patriarcalismo. Tal conceito pode ser exemplificado como um modo de vida em que o homem é o líder moral e social da convivência familiar, pertencendo à mulher atividades, como “a de procriar, de ser mãe e esposa sob as exigências do casamento monogâmico, cabendo-lhe, como imposição sumária, o espaço do lar” (SANTOS;OLIVEIRA, 2010, p. 2). Porém, as mulheres, assim como a do eu-lírico do poema, estão cada vez mais buscando uma igualdade que deve ser presente numa sociedade plena e idônea, sendo justamente nesse ponto que se impõe a relevância do poema citado, uma vez que ele afirma, sem tremulações vocais que “o mundo será todo feminista”. Outrossim, ao final do poema, se torna mais concisa essa voz:

Todas de mãos dadas por nenhum direito a menos

Com a luta das poderosas o mundo vai re-existir

Elas voltaram pra ficar!

Um mundo mais justo com direitos iguais, elas vão bordar.

Por todas vivas! Não vamos calar! (AFONSO, 2019, p. 17)

Portanto, apesar da opressão que sabe-se ainda existir quanto às relações sociais entre os gêneros, é preciso também dizer das conquistas do feminismo quanto às batalhas travadas. A exemplo disso, veja-se a comemoração do Dia Internacional da Mulher, que é comemorado no dia 8 de março, as conquistas de cargos públicos como de deputadas federais e até mesmo de presidentes, e também a criação de delegacias especializadas, a partir do anos 80, em defesa das mulheres. Todos esses fatos provam que existe um movimento forte que ocorreu e ainda está ocorrendo e que objetiva, como percebe-se no poema, “um mundo mais justo com direitos iguais”.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Helena Soares. Ventre Nosso de cada Dia. Belo Horizonte: sangre Editorial, 2019.

BERNARDES, Thaís. As Conquistas das Mulheres ao Longo da História. Disponível em: https://www.futura.org.br/as-conquistas-das-mulheres-ao-longo-da-historia/. Acesso em: 26 de ago. 2021.

Brasil. LEI MARIA DA PENHA. Lei N.°11.340, de 7 de Agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 13 de dez. 2021.

Brasil. ESTATUTO DA MULHER CASADA. LEI No 4.121, de 27 de Agosto DE 1962. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4121.htm. Acesso em: 13 de dez. 2021.

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. A Violência Contra a Mulher. Brasília: Ipea, 2010.

GAZELE, Catarina Cecin. Estatuto da Mulher Casada: Uma História dos Direito Humano das Mulheres no Brasil. Vitória: UFES 2005.

DUARTE, Contância Lima. Feminismo e Literatura no Brasil. Estudos Avançados, [S. l.], v. 17, n. 49, p. 151-172, 2003. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9950. Acesso em: 21 ago. 2021.

SANTOS, Silvana Mara de Morais dos; OLIVEIRA, Leidiane. Igualdade nas relações de gênero na sociedade do capital: limites, contradições e avanços. Katál, Florianópolis, v. 13 n. 1 p. 11-19 jan./jun. 2010.

Download do PDF disponível em:

https://www.dropbox.com/s/0ldqoec0gc4yody/O%20eco%20feminista%20em%20helena%20Soares%20Afonso.pdf?dl=0

(é só copiar e colar ^,^ )