TEOGONIA - A PALAVRA, A POESIA
Durante milênios, anteriores à adoção e difusão da escrita, a poesia foi
oral e foi o centro e o eixo da vida espiritual dos povos, da gente que —
reunida em torno do poeta numa cerimônia ao mesmo tempo religiosa,
festiva e mágica — a ouvia. Então, a palavra tinha o poder de tornar
presentes os fatos passados e os fatos futuros (Teogonia, vv. 32 e 38), de
restaurar e renovar a vida (idem, vv. 98-103).
Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o
tempo retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição
e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. A recitação de
cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em
contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o
poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus ouvintes.—Na
solidária colaboração dos homens com a Divindade, o rei-cantor na antiga
Babilônia devia entoar, nas festas de Ano Novo, o poema narrativo de corno
a ordem cósmica divina e humana surgiu prevalecendo sobre as anteriores
trevas amorfas, e por meio desta declamação do canto prover que o novo
círculo do Ano, o novo ciclo do Mundo, tendo retornado a suas fontes
originais, se refizessem de novo no Novo Ano.— Este poder ontopoético que
a palavra cantada teve multimilenarmente nas culturas orais se faz presente
na poesia de Hesíodo como um poder ontofânico. O mundo, os seres, os
Deuses (tudo são Deuses) e a vida aos homens surgem no canto das Musas
no Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor
Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os
Deuses e a vida aos homens. Este poder ontofânico da palavra perdura ainda
hoje em nossa experiência poética e em nossa experiência bem mais vulgar
de temor a certas palavras aziagas. Desde sempre e ainda hoje — e creio que
assim será sempre — o maior encanto da poesia reside no seu poder de
instaurar uma realidade própria a ela, de iluminar um mundo que sem ela
não existiria. Para Hesíodo, este mundo instaurado pela poesia é o próprio
mundo; — por isso certos Deuses monstruosos e terríveis não devem ser
nomeados, são não-nomeáveis (ouk onomastoí, Teog. v. 148), é o domínio
do nefando, o que não deve ser dito (oútiphateión, idem v. 310). Em Hesíodo
as palavras cantadas não são uma constelação de signos abstratos e vazios,
mas forças divinas nascidas de Zeus Pai e da Memória, que sabiamente
fazem o mundo, os Deuses e os fatos esplenderem na luz da Presença, e
implantam, na vida dos homens, um sentido que, com o vigor do eterno,
centra-a e ultrapassa-a.
Neste sentido de que nela está total e vigorosamente encarnado o que é a
maior força de encantamento da poesia ainda hoje e multimilenarmente, a
poesia hesiódica é arcaica, — porque nela mais plena e claramente se
manifesta a arkhé da poesia: o seu poder ontofânico.
JAA TORRANO