Para Uma Ontologia da Adolescência

PARA UMA ONTOLOGIA DA ADOLESCÊNCIA

Mário Ferreira dos Santos no início de seu livro “Filosofia e Cosmovisão” fala algo sobre o existir cronotópico, isso é: a existência do Ser no tempo e no espaço. Existência que se difere, por exemplo, da existência das ideias, cujo existir é apenas temporal, visto que não possuem nenhuma espacialidade; e existência que se difere, também, dos corpos matemáticos, que existem no espaço, mas sem nenhuma temporalidade. O Ser da existência, por outro lado, coabita com as ideias e os corpos, banha seus pés em dois mundos: o tempo e o espaço.

Heidegger, por sua vez, fala de um Ser-aí que nasce como se fosse “jogado” ou “parido” no existir cronotópico. Esse Ser que passa a existir quer entender esse mundo que o antecede, quer ser com o mundo e não fora dele. O Ser tem uma existência histórica, geográfica e temporal e sua característica intrínseca é o Ser-no-mundo, é esse relacionar-se com as circunstâncias construídas espaço-temporalmente, dadas no existir cronotópico

É a percepção do Ser, no entanto, que divide o existir cronotópico em duas categorias: o tempo e o espaço. Henri Bergson enxerga tempo e espaço como duas tendências dessa existência cronotópica, duas multiplicidades entrelaçadas, a divisão da cronotopia em duas categorias é uma operação da razão do ser-consciente, ou do ser-humano, que quer entender o mundo, abstraindo-o, em categorias cada vez menores e mais simples. Essa operação da percepção humana, segundo Bergson, incorre inevitavelmente em mistos mal-analisados e em falsos-problemas, incompreensões de si e do mundo.

O ser-humano é consciente, em certo nível, de si e de suas circunstâncias, é um dos únicos (se não o único) ser capaz de contemplar a transitoriedade (a sua mudança, a mudança da sua cultura e as mudanças da natureza). E numa tentativa de controlá-la, de entendê-la, de dar sentido a essa transformação, ele categoriza as etapas da vida, e quanto mais se sente confuso com a transitoriedade mais categorias se fazem necessárias para entender a vida. Ao que parece, quanto mais as relações econômicas e sociais se tornam complexas, menos o ser-humano entende a si mesmo, ao mundo e ao seu Ser-no-mundo.

Isso, na minha opinião, se torna ainda mais evidente com o texto “O Conceito de Transição e o Curso da Vida Contemporâneo”, texto onde Elaine Müller analisa justamente essa construção da temporalidade, que nasce dessa nossa consciência da transitoriedade que categoriza a vida em etapas segundo circunstâncias dadas histórico-geograficamente (isso é: culturalmente).

Elaine se pormenoriza na juventude, essa época determinada como de transição entre fase infante e a fase adulta. A autora percebe essa categorização da vida como sendo um misto mal-analisado, um falso-problema, isso porque as nuances daquilo o que é uma criança ou daquilo o que é um adulto fazem escurecer, como nuvens negras, aquilo o que é um jovem, que está entre essas duas fases mal-definidas. É difícil traçar onde uma fase começa e outra termina, os ritos de passagem dados culturalmente ao que parece, ajudam a identificar essa transição, mas a consciência desses jovens, ou melhor, desses seres, não consegue abraçar a ideia de uma vida dividida em etapas, não consegue perceber sua existência como a sucessão de determinados eventos que marcam o início e o fim de determinadas fases, não. A vida, como afirmou a autora no início de sua pesquisa, é um continuum, a vida é, como diria Bergson, duração. A sensação de transitoriedade não é exclusiva do jovem que se encontra confuso sem conseguir se identificar enquanto infante ou enquanto adulto, a sensação de transitoriedade existe em todos os momentos da vida, a vida em si é transitoriedade, como afirma a autora: “a transição é a vida inteira”.

O intercurso econômico e cultural, no entanto, domina a transitoriedade, busca inscrever a vida em etapas: ter essa idade e fazer essas coisas é ser criança, ter essa outra idade e fazer essas outras coisas é ser adolescente e ter essa outra idade e fazer essas outras coisas é ser adulto. As “coisas” que caracterizam as fases são marcadas por rituais de passagem que querem, porém falham, em delimitar a transição de uma etapa a outra. Não existe uma “mudança” radical de um lugar a outro, existem micromudanças, existe um Ser que difere a si mesmo em mudanças microscópicas no seu intercurso com o Mundo, como Müller aponta ao citar o trabalho de Elsa Ramos e da sua entrevistada, Bruna.

A temporalidade, ao que me parece, se constrói de tal modo que a duração entra em crise, o Ser, no seu intercurso com o mundo, quer estar em um determinado lugar em um determinado momento, lugar e momento muito mal-determinados pelo mundo. Fazer certas coisas é estar nesse lugar de responsabilidade, de adultez, não fazê-las é estar no lugar errado, no lugar do jovem ou da criança. Há uma captura da duração, do entendimento de si, que gera uma identidade frustrada, com sonhos frustrados e uma hiper-preocupação com o horizonte das conjecturas. O lugar de transição que é a adolescência e a juventude são entendidos e construídos como lugares de crise, de modo que a existência que passa por essas etapas é uma existência que inevitavelmente sente essa crise, sem conseguir perceber a riqueza própria que o lugar da transição possui, e sem a contemplação da vida enquanto transitoriedade contínua.