‘Ninguém nasce herói’, mas nasce LGBTQIA+ e capaz de derrubar o sistema”

Quando consideramos as últimas seis ou sete décadas de manifestações culturais brasileiras, a historiografia das mais diversas formas de Arte escancara que cada vez mais os nossos artistas –literários, cinematográficos, musicais, teatrais, etc.- têm trazido à tona questões relacionadas às orientações afetivo-sexuais e às identidades de gênero. Nessa perspectiva, alguns tópicos constantes nessas produções são a violência, a opressão, o preconceito, a discriminação e todas as adversidades que a população LGBTQIA+ passa devido ao fato de apenas existirem e manifestarem suas identidades. Também pudera: o enfrentamento desses percalços é indissociável da vivência da pessoa pertencente a alguma minoria sexual e que reside em nosso país.

Assim, o romance de Eric Novello, intitulado “Ninguém nasce herói”, foi lançado em 2017 e narra as desventuras de um grupo de jovens amigos queer que vive em um Brasil distópico de um futuro não tão distante. Essa Nação, por sua vez, vive sob a égide de uma ditadura fundamentalista governada por O Escolhido, na qual as minorias sociais são massacradas e as liberdades individuais são ostensivamente cerceadas. Além disso, são abordadas e desenvolvidas, ao longo do romance, várias outras temáticas e problemáticas relativas a uma sociedade ditatorial, demonstrando que o autor não se atém somente aos traços identitários dos indivíduos. Isto denota que o autor quis difundir a ideia de que os atributos sexuais e de gênero deveriam importar apenas às próprias pessoas e que isso nem precisaria ser uma questão motivadora de segregação ou de tantas outras vicissitudes.

Certa passagem do livro “Ninguém nasce herói” descreve uma dolorosa -e, fora da ficção, muito atual- tentativa de homicídio de um jovem transexual cometida em uma rua paulistana pela irascível Guarda Branca –grupo organizado de civis que se encarrega de agredir e assassinar transgressores de quaisquer padrões sociais contrários à maioria dominante e dominadora. O jovem Júnior é auxiliado pelo protagonista da história, Chuvisco, que, acometido por uma empatia instantânea e por uma revolta incomensurável, conseguiu salvá-lo das garras dos preconceituosos, por causa da bravura impulsiva que uma catarse criativa, proveniente da sensação de vulnerabilidade e de indignação extrema, rendeu-lhe. Saindo da literatura, é extremamente triste pensar e saber que várias pessoas brasileiras não têm a chance de contar com a ajuda de um ser tão piedoso como Chuvisco.

Por ser uma obra retrofuturística, são perceptíveis os traços de um passado opressivo, bem como de crimes recentes de nossa República democrática. Por exemplo, a “Operação Tarântula” foi iniciada em 1987, em São Paulo, e aprisionou e violentou centenas de travestis por causa de uma extrema ignorância –e também bastante preconceito- de associar a proliferação da pandemia de Aids com a existência dessas pessoas. Ademais, de acordo com a ONG Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo, ao passo que também é o país que mais consome pornografia que expõe essas pessoas, conforme mostram levantamentos dos próprios sites pornográficos. Essa imensa contradição gera um paradoxo entre o ódio e o desejo, o que desvela uma intensa hipocrisia e a concretização de um triste mecanismo de defesa conhecido como formação reativa. Tal processo seria explicado pelo psicanalista Sigmund Freud, o qual disse que o indivíduo tenta inverter um impulso indesejado –atração sexual por travestis e/ou transexuais-, substituindo-o por um impulso completamente oposto –ódio que gera violência contra esse grupo de pessoas. Será que, dessa forma, a Guarda Branca do universo distópico de Novello também teria esse desejo recriminado?

Esses lastimosos crimes também são noticiados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), a qual veiculou que, no ano de 2020, quase duzentas pessoas desse grupo social foram assassinadas em território nacional apenas por causa do preconceito extremo, mais conhecido como transfobia. Será que no Brasil atual –não distópico- também existe uma Guarda Branca, a qual age sorrateiramente matando as minorias e ainda escapando impune? Será que os agressores reais também são acometidos pela formação reativa freudiana?

Nessa esteira de pensamentos, vê-se que, em 2017 –mesmo ano de lançamento do livro de Novello-, um desses inaceitáveis homicídios repercutiu nacionalmente e tornou-se um símbolo de resistência contra essas barbáries: Dandara dos Santos foi brutalmente assassinada em local público e deploráveis vídeos de suas agressões foram espalhados pela internet. Júnior, por outro lado, teve a sorte de ser encontrado por Chuvisco a tempo de não ter o mesmo fim trágico que Dandara. Mas, mesmo assim, o jovem trans não teria muito sossego a sua frente para exercer a liberdade, uma vez que ele mora em um regime ditatorial, teocrático e extremamente retrógrado.

Tendo em vista que a narrativa do livro imagina um Brasil futurista que, terrivelmente, é muito palpável, cabe a nós tentar entender o porquê de haver tantas pessoas que ainda seguem ideias tão incabíveis, pertencentes ao passado e não condizentes com a atualidade. Conforme a trama de “Ninguém nasce herói” vai se degringolando, esse episódio de agressão contra o personagem Júnior adquire contornos cada vez mais exorbitantes e assustadores. Certa vez, Chuvisco e mais dois amigos, Pedro e Cael, decidiram ir a uma festa secreta destinada ao público LGBTQIA+. Galileia, como o evento era denominado, acontecia em locais abertos e afastados da civilização, para despistar a Guarda Branca e evitar que autoridades do governo do O Escolhido descobrissem. O grupo de amigos, seguindo um princípio de não temerem a manifestação de suas -supostas- liberdades e de não se deixarem intimidar por gente mesquinha e careta, sempre tentava praticar atos subversivos ao sistema truculento que lhes foi imposto.

Nesse mesmo sentido, retomando à realidade brasileira, verifica-se que o documentário “A volta da Pauliceia Desvairada”, apesar de ter sido lançado em 2012, também retrata esse corajoso sentimento demonstrado pelo grupo de amigos de Chuvisco. O filme é um retrato cru, intimista e sincero sobre as festas destinadas à população LGBTQIA+ de São Paulo –mesma cidade em que se passa a trama do romance. A obra cinematográfica demonstra que essas pessoas, assim como a turma de Chuvisco, buscam um escapismo, um porto seguro, um lugar para esquecerem os problemas pessoais causados por uma possível não aceitação familiar e/ou social de suas manifestações identitárias. Por isso, pode-se afirmar que essas pessoas também enfrentam uma Guarda Branca em suas vidas, a qual está personificada em seus familiares inconformados e em civis ultraconservadores que pregam besteiras tão antiquadas que prejudicam as liberdades de seus parentes ou conhecidos.

Entretanto, contrariando o festejo do filme citado, o livro reserva, aos valentes garotos, um destino desolador: a tão temida Guarda Branca localizou a festividade e iniciou um tiroteio brutal contra os jovens que estavam celebrando a diversidade e o amor. Essa sequência do livro remonta ao marco histórico estadunidense conhecido como a Rebelião de Stonewall, que ocorreu no ano de 1969 e em que pessoas marginalizadas se revoltaram contra as constantes prisões de homossexuais e afins que a polícia de Nova Iorque realizava por puro preconceito. Tendo como palco principal o bar Stonewall Inn, esses cidadãos passaram a reivindicar sagazmente os direitos da população LGBT. Em escala global, esse episódio teve uma grande influência no início da luta e da resistência desse grupo social e até hoje é rememorado devido à bravura de seus precursores.

Embora esse movimento social tenha provido vários benefícios à população em questão, ainda é amargo o dissabor ao pensar que tendências governamentais autoritárias ao redor do mundo, como no Brasil, na Hungria e no Egito, estão incitando ódio e preconceito contra essas pessoas e extinguindo alguns direitos outorgados no passado às custas de muito sangue e suor. Dessa maneira, o romance de Novello também serve como um importante alerta em relação aos rumos intolerantes que a nossa Nação vem tomando nos últimos anos. Não podemos esperar que uma Guarda Branca chegue a existir de verdade para, só então, providenciarmos medidas de combate a esse mal. Se relaxarmos e não dermos a devida importância, serão grandes as probabilidades de governos autoritários ascenderem ao poder e decretarem medidas inconcebíveis em uma democracia, assim como aconteceu recentemente no Afeganistão e em Myanmar.

Trazendo o acontecimento de Stonewall para a realidade nacional daquele mesmo período histórico mundial, verifica-se que a Ditadura Militar Brasileira de 1964 também mantinha uma cultura deveras punitivista contra essas minorias sociais. Os militares orquestraram inconcebíveis e sumárias torturas e execuções de pessoas LGBT nos porões do “Departamento de Ordem Política e Social” também conhecido como DOPS -e aqui entre aspas pois o que ele realmente trouxe, ao dissolver liberdades individuais, foi desordem social, não o oposto. Infelizmente, não faltam exemplos da periculosidade e da capacidade belicosa e cruel do povo reacionário e ultraconservador mundial, especialmente do Brasil.

Além disso, é notável que, assim como na São Paulo tomada pelo caos ditatorial da distopia do livro, o Brasil atual também apresenta localidades com níveis mais asseverados de saudosismo a regimes antidemocráticos e de opressão às minorias. Por exemplo, o estado de Santa Catarina tem uma vice-governadora cujo pai, Altair Reinehr, é um professor de História descendente de alemães que -pasmem- é negacionista do Holocausto durante o nazismo de Hitler –regime autoritário que também perseguiu, torturou e executou homossexuais em nome da balela do “puritanismo da raça ariana”. Aliás, esse estado brasileiro também é o que mais concentra células neonazistas do país, além de ter sido o estado que mais votou, no primeiro turno das eleições de 2018, no atual presidente do país. Seria ele, o bendito presidente, O Escolhido mencionado na distopia?

Essa interligação macabra de fatos nos leva, invariavelmente, à pergunta que me fiz durante toda a leitura do romance: quanto falta para, de fato, atingirmos a situação calamitosa apresentada pelo livro? Porém, me dei conta que não seria interessante conhecer esse limite, pois, ao conhecê-lo, já estaríamos mergulhados na putrefação de um governo tirânico. Por isso, devemos viver determinados e focados na luta em objeção a ideais retrógrados e maléficos. Justamente por isso que Eric Novello foi cirúrgico ao redigir, de forma consciente, uma trama muito representativa que, ao invés de cair em clichês baratos de estereotipação dos indivíduos ou de redução a uma mera história romântica e piegas, expõe a labuta e a resistência da comunidade LGBTQIA+, a qual vive à revelia de um sistema político-social que regrediu ao século passado e ficou estagnado em décadas de extenuantes repressões e apagamentos identitários e culturais.

Todavia, toda essa violência relatada, tanto no livro quanto nos momentos históricos não é gratuita ou feita exclusivamente para chocar o leitor desse ensaio. Essas características servem como mais um chamariz de advertência dos perigos reais que estamos passando sob esse desastroso (des)governo brasileiro. Portanto, é perceptível que, apesar da hostilidade sempre presente no livro, o autor nos convida a prospectar um futuro com mais esperança e otimismo, onde nós mesmo somos os encarregados dessa mudança. Esse posicionamento é evidenciado logo na epígrafe do romance, onde ele escolhe a seguinte frase do musicista brasileiro Chico Science para denotar o tom da história: “Um passo à frente e você já não está mais no mesmo lugar”. Chuvisco e seus amigos tentam dar esse passo à frente todos os dias, seja atuando em ONGs de apoio a marginalizados, seja distribuindo livros ilegais a pessoas nas ruas ou tentando salvar sujeitos discriminados de agressões e até mesmo da morte. Sigamos, então, a súplica de Chico Science e os bons exemplos de Chuvisco e sejamos nós também, pois, agentes dessa mudança gradual do frágil paradigma político-social de nossa Nação.