Verdades Céticas - Todo Incognoscível 42
Neste ensaio:
1. Uma vez que à pessoa cética o recurso de recorrer a ‘A’ Verdade é impossível, como ela atribui a verdade (ou qualquer outra avaliação) a respeito de alguma afirmação, conceito, teoria ou assunto?
2. Critérios para a escolha de teorias a partir de um ponto de vista cético.
3. Sintomas de que a teoria não vale o esforço investigação.
INTRODUÇÃO
Ronan, um dos meus companheiros de discussões, sabendo que sou um cético me mandou um meme defendendo o realismo. O meme consistia em dois quadrinhos, no primeiro duas pessoas enxergam o desenho de uma perspectiva diferente, para uma o desenho parece um seis, para a outra parece um nove. Uma interpretação possível desta imagem é de que a verdade é relativa. No segundo quadrinho se repete a imagem, entretanto vista mais de longe. Nela percebemos que antes do símbolo vem “1, 2, 3, 4, 5” e depois do símbolo vem “7, 8”. E a legenda “a verdade não é relativa, quem desenhou o símbolo tinha uma intenção.” Ramon, sabendo que sou um cético, me mandou este meme em defesa da visão realista 1*. No primeiro quadrinho falta contexto para interpretar o símbolo, por isto é impossível dizer se é um seis ou um nove 2*. O segundo quadrinho revela o contexto e, a partir dele, interpretamos a imagem.
Quando conversamos em uma situação muito particular, o entendimento é fácil. Se ao sair da sala de cinema alguém comenta, “Foi surpreendente.” É desnecessário dizer que esta fala se refere ao filme que acabaram de assistir, ninguém vai achar que se está falando de um filme que alguém viu na adolescência ou de um livro que está na moda. Entretanto, caso a fala se refira a alguma outra coisa, então é necessário um contexto, algo como, “O almoço no Tempero Vegano foi surpreendente.” Neste caso apresentar o contexto (o almoço no Tempero Vegano ) situou as pessoas na conversa, caso ficasse ausente haveria confusão, as pessoas fariam a suposição de que a fala se referia ao cinema. O realismo só é possível se desconsiderarmos que algo (ou alguém) interpreta a informação.
Para um realista existem Verdades e a correção de uma sentença, de uma teoria, de um conceito (enfim, qualquer elaboração) se afere em se confrontando com ‘A’ Verdade 3*. No caso do meme, uma hipótese é de que o número é um seis, a hipótese alternativa é a de que o número é um nove. ‘A’ Verdade é de que o número é um seis, como indica ele estar em uma sequência de 1, 2, 3, 4, 5, “6”, 7, 8. Desta maneira a perspectiva realista apresenta “a” Verdade como inequívoca, certeira. Ela pode até ser inacessível ao conhecimento atual, mas existe objetivamente. Considero realista qualquer pessoa que entenda que o confronto com ‘A’ Verdade objetiva é suficiente para decidir a verdade (ou a falsidade) de qualquer afirmação. Para mim (que sou cético) tal recurso (recorrer à Verdade para aferir definitivamente a correção de uma afirmativa) é impossível. Mas se é assim, como decidir que qualquer afirmação é verdadeira? Responderei a esta pergunta comparando com o modelo realista.
O PAR REALISTA
Suponhamos um experimento em que se queira aferir a capacidade de alguém de identificar corretamente se uma foto corresponde a uma determinado objeto. É apresentada uma foto de uma flor e uma flor. O objetivo, a partir de uma perspectiva realista, é identificar se tal foto foi daquela flor. Para a pesquisadora realista a flor é ‘A’ Verdade e a foto é uma afirmação qualquer a seu respeito. Para aferir se a afirmação é verdadeira basta comparar a foto e a flor 4*.
O TRIO CÉTICO EM QUE AS REGRAS SÃO REQUISITADAS PELO CONTEXTO 5*
Eu, um cético, vejo de maneira diferente. Ao invés de reconhecer o par (afirmação x Verdade), reconheço um trio (algo x afirmação sobre este algo x aquilo que avalia a correspondência). No caso tal trio é a 1. a flor, 2. a foto da flor, 3. a pessoa que decide que a foto é daquela flor 6*. É importante notar que as regras para decidir o valor-verdade (bem como para emitir qualquer opinião a respeito da informação) são requisitadas pelo contexto. Mas esta não é a única diferença entre o modelo realista e o modelo cético.
REGRESSÃO AO INFINITO
A grande particularidade deste modelo cético é que cada elemento (a afirmação, aquilo a que a afirmação se refere, aquilo que compara ambas) pode ser destrinchado em um trio semelhante, assim sucessivamente até o infinito. A seguir um exemplo do primeiro passo da regressão ao infinito em cada um dos elementos do exemplo ‘foto x o que avalia a foto x flor’.
A FLOR - O OBJETO DE COMPARAÇÃO
Para uma pessoa cética a flor passa pelo mesmo trio (afirmação x aquilo a que ela corresponde x aquilo que avalia a correspondência). A mera apresentação da flor é carregada de pressupostos e cada um destes pressupostos pode ser questionado. Por exemplo, um pressuposto é o de que a flor existe 7* (quem garante que não é um holograma, ou que quem a vê está na verdade hipnotizado e vendo algo sugerido por quem hipnotiza?). A própria pressuposição “A flor existe” pode ser destrinchada naquele trio. Desta vez temos 1. A flor; 2 O que afere a existência, 3; A existência. E cada um destes elementos também pode ser destrinchado no trio cético e assim sucessivamente infinitamente.
A AFIRMAÇÃO (A FOTO)
Em relação à afirmação (a foto) pode-se aplicar o mesmo trio (afirmação x aquilo a que ela corresponde x aquilo que avalia a correspondência). Será que a foto passou por um processo de edição sofisticado ou será uma foto original? Neste caso a foto, que originalmente era a afirmação, agora passa a ser o objeto de comparação. Ao passo que a afirmação “a foto passou por um processo de edição sofisticado” passa a ser a afirmação cuja verdade será decidida em se comparando com a foto. Já o “algo” que avalia a verdade da afirmação pode ser um programa de computador (uma inteligência artificial) capaz de identificar melhor do que qualquer humano se houve processo de edição. É claro que o processo, para cada elemento deste novo trio, também pode ser dividido em um trio, em um processo que se estende infinitamente.
O QUE AVALIA A CORRESPONDÊNCIA
Em relação a quem avalia a correspondência se aplica o mesmo trio. Para deixar isto bem claro basta colocar a questão deste modo: será que a pessoa é capaz de avaliar que a foto corresponde à flor? Assim temos a afirmação (ela é capaz de avaliar a flor), temos aquilo que a que a afirmação corresponde (no caso a pessoa) e temos quem (ou o quê) avalia a correspondência (digamos, uma neurologista). A neurologista vai avaliar a capacidade da pessoa de aferir a correspondência entre a foto e a flor. Será que no ambiente há luz? Será que ela tem algum distúrbio neurológico que faz confundir uma planta com um animal? Será que ela tem formação suficiente para distinguir se aquilo que é observado é uma flor e ou uma bráctea (como é o caso com a planta bico-de-papagaio)? É claro que após a neurologista decidir a respeito da minha capacidade de distinguir uma flor haverá a necessidade da própria neurologista ser julgada como hábil para me julgar (em um processo que se seguirá infinitamente).
A VERDADE CÉTICA É NECESSARIAMENTE LIMITADA
Caso fosse possível seguir o processo de fundamentação de cada pressuposição implícita em cada afirmação, então seríamos capazes de decidir que determinada afirmação é objetivamente verdadeira (ou seja, poderíamos decidir que alcançamos “a” Verdade). Uma vez que isto é impossível nos restam duas opções: ou paramos a cadeia de fundamentação arbitrariamente em algum ponto (o que correspondem às premissas na lógica, os dogmas na religião, os princípios na ética, os axiomas na matemática 8* ou usamos uma consequência para fundamentar a própria consequência (falácia circular). Oras, isto é justamente o que Godel 9* demonstrou em seu teorema da incompletude. Uma teoria não pode ser simultaneamente consistente e completa (se ela for completa ela usa a falácia circular, portanto é inconsistente) 10*. Embora Gödel estivesse se referindo exclusivamente à matemática, entendo que o argumento da regressão ao infinito (tal qual mostrei neste ensaio) já é suficiente para chegar a esta conclusão a respeito de qualquer teoria. Assim, dentre estas duas opções, com qual ficamos?
FALÁCIA CIRCULAR x INCOMPLETUDE
Um conhecimento completo é aquele que se fundamenta a si mesmo. Oras, se é legítimo aceitar uma conclusão tendo ela mesma como premissa (falácia circular), então é possível dizer qualquer coisa! O que tornaria o próprio pensamento irrelevante. Assim eu descarto a falácia circular - e este é o motivo pelo qual recuso a fundamentação de conceitos a partir da metafísica. Minha opção é pela incompletude, inclusive entendo que esta abordagem é consistente com a percepção de que o conhecimento sempre pode ser aperfeiçoado (afinal de contas, não é completo!).
INCOMPLETUDE
Uma vez que tenhamos recusado um conhecimento que seja premissa de si mesmo, nos sobra apenas o conhecimento incompleto. Aqui no meu quarto, onde escrevo, tenho acesso apenas a uma pequena amostra de informações. Sob a luz que chega nesta manhã cada objeto aparece com determinadas cores, entretanto apenas uma pequena fração da luz que é refletida chega aos meus olhos e uma fração ainda menor chega à minha atenção. É possível que hoje algum mosquito tenha passado no meu campo visual, mas que eu não o tenha visto devido a estar concentrado na escrita. O mesmo se dá com conceitos e teorias, na minha cabeça (como na de qualquer pessoa) já se passaram incontáveis hipóteses, teorias, conceitos, idéias, sonhos, já li muitos livros, vi muitos filmes, conversei com muitas pessoas, experimentei muitas emoções. Mas apenas uma fração extremamente pequena delas estou experimentando agora. Uma vez que é impossível acessar todo meu conhecimento e toda a informação que chega a mim preciso de critérios, regras para escolher aquilo que vou acessar 11*.
CONTEXTO
Como decidir qual arcabouço teórico (ou conceito) dentre os infinitos possíveis vou recorrer para interpretar as experiências que estou vivendo agora? Através do contexto, ele vai determinar quais conceitos vou buscar para a tarefa que estou realizando no momento. No caso do meme que Ronan me apresentou o primeiro dado foi o desenho do círculo com um tracinho, a ele foi atribuído o valor ‘seis’ para uma pessoa e o valor ‘nove’ para outra pessoa, cada uma atribuindo o valor de acordo com a própria perspectiva. Desta maneira o ângulo em que cada pessoa observa o símbolo faz parte do contexto de cada uma delas. A questão se resolveu apresentando mais contexto, ao mostrar diversos números em uma sequência encaixamos o símbolo como um ‘seis’, uma vez que se encaixa no contexto mais específico. Poderíamos supor ainda uma situação estapafúrdia onde o símbolo original era um 9, mas que alguém veio e desenhou a sequência de um a oito para confundir. Para esta conclusão precisaríamos de mais evidências, ou seja, precisaríamos de um contexto mais detalhado, mais informativo. Até mesmo o próprio contexto se sujeita à regressão ao infinito, este é mais um motivo para impossibilidade de determinar ‘A’ Verdade da afirmação. Entretanto, com os dados que temos (de que o símbolo está dentro de uma sequência de um a oito) é possível afirmar que o símbolo em questão é um seis! O que nos traz à questão, como criar o arcabouço conceitual (como teorias) que reconheçam uma uma afirmação como “verdadeira” ou “falsa”, ou mesmo como “incrível”, “boba”, “redundante”... enfim, como desenvolver teorias que permitam um output pertinente? Como não se deixar enganar por uma circunstância irrelevante (como o ângulo que observamos o símbolo) e como nos concentrar na circunstância relevante (a sequência de símbolos de 1 a 8)?
ARCABOUÇO ROBUSTO
Imagine um jogo em que independentemente do que você faça o resultado é o mesmo. É o caso do jogo Jackpot: uma pessoa coloca uma moeda, aperta a alavanca e, caso apareçam três imagens iguais, um prêmio em dinheiro sai como uma enxurrada da máquina. Independentemente do que a pessoa faça a taxa de sucesso dela permanecerá igual. Não tem como ela pressionar a alavanca com mais força ou com uma cadência diferente e, com isto, aumentar sua taxa de sucesso. Neste caso o arcabouço teórico é extremamente robusto: é impossível apertar errado. Assim, é impossível aprender como evitar o erro. Ainda assim, quem joga aprende: aprende que se usar o relógio de determinada maneira ela terá mais chances de ganhar, aprende que sair de casa por determinado caminho terá sorte… enfim, a pessoa traça relações de causa/consequência que não alteram o sucesso em suas jogadas.
ARCABOUÇO FRÁGIL
Imagine, por outro lado, um jogo em que qualquer mínima diferença implica um erro. Como é o caso de um jogo de tênis de mesa. Uma alteração na empunhadura ou na velocidade da raquetada e a bola voa para fora da mesa. Cada chance (cada raquetada) apresenta risco de erro. Ou seja, o arcabouço é frágil e permite o aprendizado. Diferentemente do Jackpot, quem treina muito se sairá muito melhor do que quem acabou de começar a jogar. E este é exatamente o objetivo de Popper ao elaborar sua proposta de demarcação da ciência: delimitar o que qualifica uma teoria a fazer previsões que possam ser conferidas empiricamente. Nelas é possível identificar 1) se a teoria proíbe determinado acontecimento 2) conferir se o acontecimento infringiu a proibição da teoria. Caso isto aconteça temos um caso que falseia a teoria. O falseamento de uma teoria só é possível a alguém que entenda a teoria 12* e, caso tal falseamento seja replicável (ou seja, excluindo erros mecânicos, técnicos ou fraudes) há um forte argumento de que tal teoria não é a mais adequada para explicar determinados fenômenos. Assim, caso exista outra teoria falseável que explique tais fenômenos é o momento de considerar se ela é a mais adequada (em detrimento da teoria que falhou).
CIÊNCIA DE POPPER: ARCABOUÇO MAIS FRÁGIL POSSÍVEL
Popper, em seu excelente ‘A Lógica da Pesquisa Científica’ propôs uma maneira de elaborar um arcabouço tão frágil quanto possível (embora a palavra ‘frágil’ seja de Nassim Nicholas Taleb). Popper defende que quanto mais uma teoria proíbe, mais oportunidades ela tem de se mostrar errada. O objetivo de Popper é distinguir o conhecimento que se assemelha a uma jogada de tênis de mesa (em que qualquer erro é identificável) do conhecimento que é semelhante a Jackpot - em que, por ser impossível identificar um um erro torna-se impossível aprender com o erro. A proposta de Popper usa como ferramenta para identificar o erro a arena empírica. No Jackpot a pessoa aprende, mas tal aprendizado não altera seu desempenho no jogo (após ganhar um grande prêmio usando a roupa verde a pessoa pode aprender que verde dá sorte). A proposta de Popper é excelente, entretanto a fragilidade que ele propõe à ciência depende da empiria (experimentos, observações). Recurso inacessível a diversos campos de conhecimento.
CAMPOS DO CONHECIMENTO EM QUE A EMPIRIA NÃO SE DÁ DIRETAMENTE
No caso de uma construção lógica ou matemática é impossível recorrer à experiência para provar que a teoria está incorreta: se uma gota de água escorrendo no vidro encontrar outra gota elas se tornam uma grande gota. Este caso de 1 + 1 = 1 não refuta a regra aritmética de que 1 + 1 = 2. Da mesma maneira, a construção das regras da validade de uma pesquisa científica (como o critério de demarcação da ciência de Popper) não podem ser negadas empiricamente: a astrologia (que atribui as características das pessoas às coordenadas do nascimento) não obedece o critério de demarcação de Popper, mas isto não invalida a teoria do Popper. O mesmo se dá com a filosofia em geral. Nestes casos, em que é impossível se valer diretamente de resultados empíricos para distinguir um erro, como devemos escolher determinadas teorias?
CONHECIMENTO FRÁGIL
Minha sugestão é extrapolar tanto quanto possível a proposta de Popper para o conhecimento em geral. Ou seja, ao elaborar teorias deixar claro as relações entre os conceitos, explicitar a lógica da teoria. Escrever sempre da maneira mais didática possível de maneira a tornar qualquer elaboração criticável. A crítica desempenha na filosofia o papel que os experimentos desempenham na ciência. O que sugere que devemos escolher as teorias que sofrem menos críticas, em que menos falhas são encontradas. Curiosamente não é o caso, frequentemente teorias sem qualquer crítica são as piores escolhas possíveis.
CRITÉRIO DE ESCOLHA DE TEORIAS
Poderia se supor que sempre preferiríamos uma teoria com menos críticas, quem sabe teorias perfeitas! Tal como mostrei neste ensaio é impossível uma teoria completa e consistente. É inaceitável uma teoria completa, pois isto implica em uma teoria em que uma conclusão é premissa para si mesma. A falácia circular é a morte da racionalidade, pois aceitá-la permite dizer qualquer coisa a partir de qualquer coisa. Outro perigo (que anda de mãos dadas com o da teoria completa) é o de teorias que de tão complicadas é impossível dez pessoas terem a mesma interpretação sobre elas. De maneira que as críticas necessariamente são sob as interpretações de segundas ou terceiras pessoas. Situação em que o conhecimento se torna místico, insondável para qualquer outra pessoa além de para si mesmo. (Cada pessoa julga que chegou à Verdade, mas tal “Verdade” nunca é a mesma que outras pessoas chegaram). Situação interessantíssima como obra de arte, mas que recuso como teoria filosófica ou científica. Tais teorias (tanto as insondáveis como as completas) são impermeáveis a críticas, tal qual no Jackpot é impossível atribuir o erro de maneira pertinente. Se o nosso único critério para a escolha de uma teoria for ter poucas críticas pertinentes, então escolheríamos as teorias místicas. Assim, o primeiro critério para a escolha de uma teoria é sua clareza, é a possibilidade de sofrer críticas (buscar ser como tênis de mesa, evitar ser como Jackpot). As críticas que a teoria recebe são importantes, mas mais importante é a possibilidade de receber críticas.
A TRANSPARÊNCIA DE UMA TEORIA
TEORIA ELABORADA DE MANEIRA QUE POSSA SER FALSEADA
Entendo que o objetivo do livro ‘A Lógica da Pesquisa Científica’ é determinar o que é uma teoria transparente, a teoria de Popper é consistente com a perspectiva cética, assim defendo suas orientações. Entretanto sua utilidade se restringe a uma situação muito específica: quando a escolha por uma teoria (em detrimento a outras) se dá em uma disputa que se resolve no campo da observação empírica 13*
RELAÇÕES EXPLÍCITAS
O primeiro sinal de que uma teoria é clara é sua simplicidade. Uma teoria que é explícita em suas relações lógicas pode ser criticada com facilidade. É exatamente a mesma orientação que Popper dá na ‘Lógica da Pesquisa Científica’. Entretanto, a exigência de que a teoria seja construída de maneira que possa ser falseada com evidências empíricas diretas é descartada no caso da filosofia. O falseamento a partir da experiência se dá, no caso da filosofia, apenas de maneira indireta, a partir das críticas de quem entende a teoria. Mas como são as relações explícitas?
TAMANHO DA CADEIA DE SE/ENTÃO
Entre uma teoria com uma curta cadeia de causa/consequência e uma com uma longa cadeia de causa/consequência a de curta cadeia de causa/consequência é a mais simples (portanto, preferível). Entre uma teoria que diga x -> y (‘x’ leva a ‘y’) e uma teoria que diga a -> b -> c -> d -> e -> f (‘a’ leva a ‘b’ que leva a ‘c’ que leva a ‘d’ que leva a ‘e’ que leva a ‘f’) a primeira teoria é mais simples 14*. Caso ‘x’ seja pertinente e ‘y’ seja irrelevante apenas uma relação de se/então entra em questão. No segundo caso, caso ‘a’ ocorra e ‘f’ não ocorra, cinco relações de causa e efeito entram em ação. Como decidir qual delas falhou? Quando uma teoria com uma relação de causa/efeito é curta é mais fácil decidir o que trouxe a inconsistência. Ao passo que com grandes cadeias de causa/efeito a chance de atribuirmos o erro a um elemento equivocado é grande. Assim, em princípio, uma teoria com uma cadeia de causa/consequência menor é mais adequada.
QUANTIDADE DE CAUSAS
Por motivo semelhante uma teoria que traça muitas causas a uma consequência
(a + b + c + d +e) -> f
é mais complicada que uma teoria que atribua apenas uma causa a uma consequência.
a -> f
Na primeira teoria é difícil atribuir a relação entre as causas, como elas se relacionam entre si e em que intensidade cada uma contribui para uma consequência. A dificuldade em atribuir o erro é a oportunidade para o misticismo (atribuir relações de se/então da mesma maneira que quem joga Jackpot atribui). Na segunda teoria é muito mais fácil identificar o erro. Entretanto é impossível a priori (antes de conhecer cada teoria em particular) decidir por uma ou por outra. Pode acontecer da teoria mais confusa ser a mais pertinente. Inelizmente entender em profundidade cada teoria demanda muito tempo e esforço. Por conta disso vou apresentar aqui alguns sintomas de confusão que levam ao misticismo (lembrando que é impossível descartar uma teoria a priori 15*) com o intuito de ser um critério no sentido de entender qual teoria tem mais chance de ser pertinente, portanto a que vale a pena investigar primeiro.
SINTOMAS DO MISTICISMO
O primeiro sintoma da teoria confusa que leva ao misticismo é a divergência de interpretações a respeito da mesma obra. Caso uma teoria seja antiga e diversas pessoas assumam interpretações diferentes e mutuamente incompatíveis, isto é sinal de que a teoria é confusa e difícil de ser criticada. Se tais teorias incompatíveis são criticáveis, por que elas persistem existindo? Outro sintoma do misticismo é a necessidade da genealogia do conceito. A necessidade de chamar um autor para atribuir o sentido preciso do conceito é sintoma de que tal conceito não é claro. Um terceiro sintoma do misticismo é a impossibilidade de definir o conceito. Caso seja possível explicar em poucas páginas um conceito a partir de definições aceitas pelo público em geral, isto é sintoma de que o conceito não é místico. Por outro lado, caso seja impossível definir um conceito em menos de mil páginas, isto é sintoma de misticismo 16*.
IMPOSSÍVEL REJEITAR UMA TEORIA A PRIORI
Infelizmente é impossível descartar qualquer teoria a priori e qualquer sintoma, ou mesmo conjunto de sintomas, não são suficientes para descartar a teoria. Só é possível descartá-la a entendendo e em confronto com outros sistemas de crenças mais básicos. Entretanto, temos uma vida limitada (vivemos apenas algumas décadas) e temos diversos interesses que concorrem com os interesses filosóficos (família, descanso, vícios, trabalho) e é impossível a cada um de nós entrar na minúcia de cada sistema filosófico. Devido a minhas restrições, minha opção é dedicar pouco tempo a sistemas filosóficos cheios de sintomas de misticismo. Quando os examino é apenas pela exigência do debate com amigos - nunca por interesse próprio. Inclusive percebo que os sistemas místicos são bem mais populares que os sistemas simples, talvez devido ao pouco rigor lógico que impõe 17*.
CONCLUSÃO
Proponho que o modelo realista é aquele em que é possível confrontar “a” Verdade (objetiva e inequívoca) com qualquer afirmação para decidir se tal afirmação é verdadeira, no que chamo de ‘par realista’. Tal modelo só é possível desconsiderando que algo (ou alguém) faz a tal avaliação. Em contraposição a este modelo defendo o trio cético. Nele temos 1. uma afirmação; 2. aquilo a que ela se refere e 3. quem faz a correspondência entre ambas. As regras para a aferência se dão a partir do contexto. O ceticismo se dá devido ao reconhecimento de que cada elemento do trio está carregado de pressuposições, cada uma das quais pode se sujeitar novamente ao trio cético em uma cadeia infinita (regressão ao infinito).
Uma vez que é impossível seguir infinitamente temos duas opções, ou justificamos uma consequência com ela mesma (falácia circular) ou reconhecemos que o conhecimento é incompleto. Recuso a falácia circular porque se a aceitarmos se torna legítimo dizer qualquer coisa (tornando o próprio pensamento irrelevante). Assim me sobra reconhecer o conhecimento como incompleto. Uma vez que o conhecimento é necessariamente incompleto é impossível provar qualquer coisa objetiva e inequivocamente. Reconhecer a incompletude do conhecimento leva ao ceticismo. Uma vez que é impossível recorrer a ‘A’ Verdade para decidir por um conhecimento como escolhemos quais os conceitos e teorias vamos adotar?
A proposta de Popper para a ciência é compatível com o ceticismo, assim ela é recomendável. Entretanto, a exigência de usar as experiências como fonte direta para decidir por uma teoria é inaplicável para a filosofia. Assim a proposta de Popper (em uma versão enfraquecida) se apresenta como uma boa opção: da mesma maneira que na ciência, tornar explícitas as relações lógicas entre os conceitos. Entretanto, quem faz o papel dos experimentos, no sentido de falsear a teoria são as pessoas, a partir de suas críticas. O que nos leva a um paradoxo, pode acontecer de uma teoria cheia de críticas pertinentes ser melhor do que uma teoria sem crítica nenhuma.
Isto acontece porque o primeiro critério para rejeitar uma teoria não são as críticas que ela recebe, mas a possibilidade de que receba críticas. Teorias muito confusas podem se tornar místicas, assim impermeáveis a críticas. É impossível, entretanto, descartar uma teoria como confusa antes de conhecê-la em alguma profundidade. Entretanto, existem alguns sintomas de que uma teoria é confusa e mística:
1. Correntes de pensamento que seguem um mesmo autor, entretanto que recusam mutuamente as conclusões das correntes alternativas (se a crítica é possível, por que uma corrente de pensamento não elabora uma crítica que a outra corrente aceita?);
2. Impossibilidade de definir o conceito de maneira que diversas pessoas tenham o mesmo entendimento.
3. Impossibilidade de definir algum conceito em poucas páginas.
4. Necessidade de chamar a genealogia de um conceito para atribuir o sentido a ele. O sentido correto de determinado conceito só pode ser entendido se seguirmos corretamente a sua cadeia de ancestralidade.
É necessário advertir que é impossível descartar uma teoria a priori. Mesmo que todos os sintomas do misticismo se encontrem em uma teoria, não há necessidade lógica de que ela seja equivocada. Desta maneira a única forma de optar por uma teoria é conferir a partir de outros sistemas de crenças mais fundamentais (que cada um de nós possui). Entretanto, é impossível analisar todas as teorias em profundidade, assim minha opção é buscar aquelas que aparentemente são simples, claras e que permitem serem criticadas (ou seja, que se permitem serem negadas ou aperfeiçoadas).
OBSERVAÇÕES
1* Quanto devemos considerar a intenção de quem elaborou uma obra para a sua interpretação? Em uma poesia, em um filme, em uma música, em um quadro abstrato, em um teorema matemático, em uma tese de doutorado, em uma lei, em uma escultura, em um utensílio… quanto devemos levar em conta a intenção de quem criou o símbolo? Este é um tema que foge a este ensaio e é abordado por Nelson Goodman em Linguagens da Arte.
2* E eu vou além, vou extrapolar o meme: o símbolo poderia ser um ‘g’, poderia ser um desenho abstrato, poderia ser uma marca feita sem intenção alguma, poderia ser a letra de algum alfabeto alienígena… enfim, as possibilidades são infinitas. Não há porque se restringir às possibilidades apresentadas no quadrinho.
3* Até aceito a existência ‘A’ Verdade objetiva. Entretanto entendo que ela não corresponde a nenhuma sentença ou conceito, pois qualquer divisão implicaria em uma imposição subjetiva por parte de uma cognição e, portanto, seria subjetiva. Já o Todo é impossível de ser concebido, daí o conceito ‘Todo Incognoscível’.
4* Cada corrente realista busca ‘A’ Verdade ao seu próprio modo. Para Bertrand Russel ‘A’ Verdade estava no mundo observável e é acessível a partir da descrição de seus átomos. Para Platão ‘A’ Verdade está no mundo das ideias. De maneira que, para que o exemplo que apresento fosse similar ao caso platônico apresentaríamos a pintura de uma flor ideal (esta seria ‘A’ verdade) e a flor observada é remeteria à realidade da flor (cuja pintura é uma aproximação).
5* Acho perfeita a definição usada na ciência da computação, contexto é o conjunto mínimo de dados usados para a execução da tarefa em processamento.
6* Aquilo que que avalia a correspondência não precisa ser uma pessoa. Por exemplo, um pardal (aquela câmara que dá multa) afere qual a velocidade acima do permitido por lei. Caso o valor verdade seja ‘verdade’ ela envia uma multa.
7* A pressuposição “a flor existe” poderia ser substituída por uma completamente diferente, algo como, “a flor é a mesma que do começo do experimento”. Também é interessante notar que quanto mais vezes damos o passo adiante na regressão ao infinito, menos intuitivos passam a ser os cenários com os quais lidamos.
8* Premissas, axiomas, dogmas e princípios são sintomas da incompletude (são o ponto em que desistimos da regressão ao infinito). Entretanto, não são os únicos limites para a regressão ao infinito, pois as próprias regras do pensamento se sujeitam aos limites da investigação.
9* No meu entender a argumentação de David Hume já é suficiente para decidir em favor do ceticismo. A tentativa de Russel era fadada ao fracasso porque é impossível provar qualquer Verdade sem incorrer na incompletude (parar a regressão ao infinito em algum momento) ou na falácia circular. Ainda assim seu esforço foi muito interessante, pois através dela os argumentos de David Hume vieram a tona matematicamente (com o teorema da incompletude de Gödel).
10* “Qualquer teoria efetivamente gerada capaz de expressar a aritmética elementar não pode ser tanto consistente quanto completa. Em particular, para qualquer teoria formal consistente e efetivamente gerada que prova certa verdade da aritmética básica, existe uma afirmação aritmética que é verdade, mas não demonstrável na teoria (Kleene 1967, p 250).”
https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoremas_da_incompletude_de_G%C3%B6del
11* Tais regras são tanto para selecionar dentre a infinidade que está dentro de mim (conceitos, lembranças, teorias) como para selecionar dentre a infinidade que está fora de mim (cheiro e gosto do mingau, cores do teclado e dos monitores do computador, sons da Amy Whinehouse que escuto enquanto escrevo, tensão da minha bunda sobre a cadeira que me sustenta, o vento que me chega do ventilador às minhas costas).
12* Da mesma maneira que na ciência, em um jogo só é possível perceber um erro se conhecemos suas regras.
13* A opção de usar o critério de demarcação de Popper (para definir o que é ciência) é extremamente importante no debate atual, pois alguns grupos defendem que a partir da ciência é justificável ao Estado obrigar pessoas a alguma ação. Por exemplo, a obrigatoriedade de tomar vacina apenas seria aceita se a ciência aceitar que uma vacina previne alguma doença (como o coronavírus). Suponho que a definição de ciência de Popper seja recusada por quem acredita que o Estado deve ter uma grande participação nas escolhas individuais, pois aquilo que é considerado ciência por Popper é extremamente restrito. De qualquer modo, a disputa do termo “ciência” não interessa para este ensaio. Apenas defendo que a proposta de Popper é interessante para a construção de conhecimento pertinente a partir de bases céticas.
14* Nelson Goodman apresenta um argumento muito interessante contra esta acepção de de simplicidade: é possível em a -> b -> c -> d -> e -> f chamar “b -> c -> d -> e” de j. Assim teríamos a-> j -> f. Maneira de elaborar que joga para debaixo dos panos a complicação. De maneira oposta, também é possível dissecar o se/então de x -> y de maneira a torná-lo muito mais extensa (qualquer dúvida voltar ao parágrafo ‘O trio cético’). Assim teríamos algo como x -> i -> j -> k -> l -> y (sendo que o potencial para inserir causa/consequência entre x e y é infinito). Este é um problema impossível de ser resolvido a priori, sem entrar no mérito da teoria em particular. Entretanto, para tais casos o ponto de partida é considerar a relação de causa/consequência tal qual a pessoa que elaborou a teoria a apresentou ou, em caso de conceitos bem estabelecidos, aceitá-los tais como consagrados pelo uso.
15* Embora seja impossível descartar qualquer teoria a priori, a exigência de que conheçamos uma teoria antes que a descartemos é demasiadamente onerosa. Imagine o caso de alguém que ao escolher a religião que quer seguir passe a estudar profundamente todas as religiões existentes antes de decidir por uma. Tal pessoa ficaria imobilizada. Assim, infelizmente e por motivos práticos devemos decidir por teorias de maneira positiva (apenas porque elas fazem sentido para nós passa a ser aceita). É claro que, como céticos, devemos ter a consciência de que sempre pode se apresentar uma teoria mais pertinente do que aquela que aceitamos.
16* Facilmente posso explicar conceitos como ‘Falácia dos custos afundados’ em uma página, de maneira que qualquer pessoa com alguma familiaridade com economia entenda. Ou explicar o teorema de Bayes em um vídeo de 10 minutos em que qualquer pessoa que domine a matemática do segundo grau entenda (mesmo que precise ver o vídeo mais de uma vez). Tais pessoas terão um entendimento extremamente semelhante entre si, não haverá nenhuma necessidade de chamar a genealogia dos conceitos ou os autores que os definiram primeiro. Assim, tais conceitos podem ser considerados transparentes.
17* A partir de um sistema em que as relações de se/então não estão muito bem estabelecidas, quando muitas “se” podem levar ao mesmo “então” , quando há longas cadeias de se/então, enfim, em sistemas complicados e confusos se torna difícil identificar um erro. Desta forma se torna possível atribuir se/então de maneira muito mais livre (com poucas restrições lógicas).