Poço

dele parte#

Sou um lixo não reciclável. Daqueles jogados na praia. Inútil. Duvidei tanto de tudo que já não sei mais no que acreditar. Duvido da minha própria existência. Existir se destina a que? Encontro refúgio nas palavras. Mas as paredes já não tem mais espaço. A tinta está quase acabando. A história também desaparece. Vou desaparecendo todo dia. Pedaços de mim somem enquanto invento duas luas sobre a cabeça. Uma atmosfera sem gravidade. Orbito em mim como um gás que não se dissipa. Sou um imóvel com camadas de dúvidas. Administro a lucidez com esquisitices. Habito uma trincheira. O bem e o mal estão para além. Desgraço. Sou um poço. Nem eu me aguento. Nem eu me águo. Os aforismos não me consolam. Preciso de uma flor de lótus para usar doses lentas e contínuas. Nelumbo nucifera. Vivo em pouca profundidade. Estou enraizado no fundo lodoso por um rizoma vigoroso. Tenho grandes folhas arredondadas. Estou sustentado acima do espelho de água por longos pecíolos. Os pecíolos sustentam o limbo, geralmente cilíndrico e espiral. Produzo belas flores brancas e muitas pétalas. Sou uma semente longeva. Sou capaz de geminar após 13 séculos. Sou o que muitos já foram. Infames. Posso ser comido cru. Sou embrulhado. Complicado. Nem eu posso comigo. Eu poço.

Severo Garcia
Enviado por Severo Garcia em 04/11/2021
Código do texto: T7378281
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