Da relevância do Espaço Público

É verdade que não faltam relatos que ilustram os desmandos e abusos dos senhores. Eu sei, porque trago as cicatrizes, que o sofrimento, por mais irrelevante que queiram fazer crer, não cessa só com o perdão. O perdão, essa dádiva que só aos santos se pode recorrer, também, como recurso para que o Outro esqueça o acontecido, pode, por parte desse, ser sinal de magna humanidade, porém, perdoar não é esquecer.

Buscar reparo, não é vingança. Assim, quem, de sã consciência, negaria que esse assunto viesse ocupar os espaços públicos? Aliás, o que é e o que significa Espaço Público?

Pode-se dizer, para fins argumentativos, que Espaço Público é o local onde se conflitam interesses e opiniões. É o local, sem dono, mas só ocupante, onde se estabelece, formal ou informalmente, tácita ou explicitamente, modus de relações e convivência. Por isso mesmo, o espaço público torna-se a arena onde se digladiam opiniões. Então, requer que se traga para o espaço público o assunto que muitos preferem evitar, além de ser uma postura anacrônica, revela, antes de se se posicionarem os debatedores, total negação da importância do Espaço Público e da reinterpretação da história como perspectiva de entender, para perdoar, os abusos e arbitrariedades cometidas.

Negar o espaço público, como necessidade primeva de se colocar assuntos incômodos, e por vezes, escamoteados, interdita a possibilidade de buscar ( para não exercer o mero libelo acusatório) e seguir as linhas que costuram esse tecido acabado da história. Fazer o debate da história, como um tecido costurado sem a participação dos interessados, será o mesmo que ir ao mercado e deixar que o dono faça nossas compras de acordo com seu gosto e apetite. Certamente alguma coisa não será do nosso gosto. E nesse caso, temos a prerrogativa de voltarmos ao estabelecimento e trocar o que não nos interessa. Mas com a História não é assim.

A história, entendida como o registro de fatos e suas implicações sociais, políticas e sociológicas, para ficarmos somente no seu aspecto que aqui nos interessa, requer acuidade. Propor que se revisite essa construção discursiva, posto que história é discurso, significa trazer à mesa a necessidade de se propor outra perspectiva que, não neguemos, tem em sua origem dar voz àqueles que a história conhecida, a história do dominador, a história oficial, negou significado. Negou existência, porque negou-lhe voz, àquele sobre quem se falou e se fala.

Silenciar, frente a necessidade, para que a voz dominante não seja a única ser ouvida, posto que, já o é, não deve ser a postura mais adequada, e, tampouco, a mais correta. Para tanto, nenhum esforço será necessário. Ao passo que para romper esse obstáculos, tudo terá que ser feito; a começar pela superação, e ampliação, das redes que se cristalizaram como mecanismos de diálogo para o necessário debate.

O que nos conduz e nos coloca frente ao já mencionado e importante tema sobre a relevância do Espaço Público.

Pois sim. É no espaço público, e somente nele, que os atores e os aspectos que ensejam a relevância do debate, sem as amarras e, pertinentes, desconfianças que qualquer questionamento, às escondidas, ou entre quatro paredes, mesmo que acadêmicas, trazem. Abrir o debate sobre e no espaço público, considerado seu carácter cristalino, reforça a premência e o acerto da decisão. É no espaço público, e não noutro lugar, que gatos são gatos, e não lebres, quanto às escuras.

É sob a luz do Sol que se vislumbra o horizonte. Chegar a ele sem vendas nos olhos, sem recorrer a atalhos que escondem os becos sorrateiros da desfaçatez, somente às claras é que o horizonte se torna possível. Assim, e não por outro modo, é que, reforçamos, o domínio do espaço público, isto é, inserir e inserir-se, sem desejo de posse, se torna, até antes do debate, o espaço, por excelência, o lugar do acontecimento. Acontecer, significa dar sentido e existência. Também, quer dizer, digladiar sob o comando da razão, e não por outro meio, para que o Acontecimento não pereça no próprio ato.

Dar ao Espaço Público, a relevância que ele merece, assim como, instituí-lo de significado transformador, como prenúncio de novos, vindouros e aguardados tempos, é revesti-lo de emoções iguais a espera de um filho.

Daí, e não poderá ser de outra maneira, que ao espaço público deve-se dar tratamento para que sua existência, como a um filho, não seja ameaçada, sob pena de perecimento, o que, como a perda de um filho, representará a perda da possibilidade de existência e de acontecimento.

É verdade que não faltam relatos que ilustram os desmandos e abusos dos senhores. Eu sei, porque trago as cicatrizes, talvez, e só talvez, começar o debate pelo significado da cicatriz, possa trazer à tona sinais de que as feridas precisam ser tratadas, mais do que denunciar práticas que desumanizaram o humano. E é nesse instante que se necessitará, como quem necessita do pedagogo para que esse o conduza ao caminho do conhecimento, também, para se curar as feridas, se necessitará do debatedor. Noutras palavras, nada acontecerá se não for dentro do Espaço Público e sem um interlocutor. O interlocutor, àquele a quem se dirige a palavra e dele se esperam respostas, é quem, considerada sua posição privilegiada, poderá, se não dar, mas, ao menos contribuir, para a superação e entendimento do acontecido. O monólogo, mais do que um exercício solitário, impulsiona mecanismos mentais que, via de regra, não satisfazem o entendimento. O monólogo, quando desconsidera a participação de um interlocutor, incorre no mesmo erro de querer se sobrepor à visão contrária. Igualmente, contribuiu para a eliminação do Espaço Público e a relevância do seu significado.