O homem artificial (ou uma anedota dos civilizados)

O homem artificial, eis, amigos, o resumo da obra do invasor. Tirou do habitante original, que convivia em harmonia com a natureza, e impôs, por métodos e práticas mercantis, novas, e civilizadas, maneiras de matar a natureza. Nossas raízes foram arrancadas e jogadas no leito do rio, e com ele tudo secou. Aprendemos o preço caro da vida. Nos tornamos homens artificiais; perdemos nossa essência, viramos robôs numa engrenagem que não cessa a produção. Produção de dores e sofrimentos. Nos tornamos robôs, nas ações, e parafusos, no mecanismo produtivo da mercadoria. O tempo escasso, sem tempo para o sorriso e o abraço amigo, em nome de uma eficiência que definha o corpo em busca da beleza, não repõe a juventude hedonista que não espera o amanhã. Carpie die, carpie die. Eis o mantra. Eis a meta.

Nós mesmos, sem reação, nos tornamos a própria mercadoria. Acordamos, após uma mal dormida noite de sono, e, como o gado em direção ao abatedouro, caminhamos ao ponto de ônibus que nos levará a fábrica. Comemos a fuligem dos carros. Respiramos fumaça como se ao fim do dia, a paga pela dedicação desmedida, nós, os que, ao custo da busca pela felicidade, ela, também, desejada desmedidamente, pudesse nos chegar, qual o beija flor no florido jardim. Cegos, não vemos a névoa que encobre o sol. Nem sabemos mais se existe sol.

Desfiguramos nossas faces ante à vitrine do shopping. Sentimos, ao som do sino que badala na distante Igreja, tão distante que ao púlpito, sem mesuras, sobem homens auto-nomeados apóstolos. Homens que, em nome de alguma divindade estranha aos preceitos humanos, aplaudem medidas contrárias à vida.

Não nos incomoda a desfaçatez dos terapeutas, eles, igualmente parafusos nessa engrenagem moedora de carne, apoiados nos seus excêntricos diplomas, como o traficante, porém, liberados porque homens de bem, traficam remédios e sonhos em noites inclaras.

O homem artificial abandonou-se na moenda, como a cana ao engenho, e tudo, e sem forças, incapaz de resistir, entrega-se, qual o barco a deriva em mar revolto, a espera do choque iminente.

Comemos a fuligem dos carros misturada a nossa, tão cara e pobre de nutrientes, comida que sacia a fome ao mínimo para que nos mantemos vivos para a próxima jornada. A fumaça das fábricas e dos escapamentos, expelida como benção sobre os pecadores que o padre manipula após a homilia, avança sobre nossos pulmões. A respiração se enfraquece. Faltam músculos para impulsionar o próximo passo.

Ao derredor, como se tudo fosse sonho, aspiramos as boas maneiras sem saber quem nos espera. Não. Não nos tornamos o exemplo perfeito. Reagimos a cada encontro como se já soubéssemos o desfecho. Matamos a criança que um dia fomos. Envelhecemos tão rápidos que medimos o tempo pelo que produzimos, não pelo que vivemos.

Homens artificiais, eis amigos, o resultado da nossa evolução. O velho pajé, com lágrimas nos olhos e a bíblia na mão, como um ancião cansado, desce do púlpito. E sob os olhares dos fiéis, estes, calados e sem reação, o velho ancião, naquela noite chuvosa saiu e deixou para trás os incrédulos olhares dos fiéis.