A CABALA E OS SEGREDOS DA BÍBLIA

A TORÁ

A Cabala é uma doutrina que se fundamenta em um sistema de linguagem desenvolvido pelos estudiosos da religião judaica para interpretar os textos sagrados encontrados na Torá, ou seja, a chamada Bíblia Hebraica. [1] Seu objetivo é desvendar os grandes segredos contidos na palavra de Deus, que no entender dos mestres dessa religião, esse formidável monumento literário que os judeus legaram ao mundo, encerra. Para esses estudiosos da religião de Israel, a Torá teria sido escrita em código, utilizando as propriedades que o alfabeto hebraico possui, de concentrar em signos lingüísticos, imagens, sons e valores numéricos, para criar novas palavras, apresentando a cada combinação feita, um significado diferente. Ou como diz Von Rosenroth, na introdução á sua Kabbalah Revelada, “A Bíblia é mais que um simples livro de histórias, que está construído de forma mais elaborada que qualquer outro livro e que contém numerosas passagens obscuras e misteriosas, as quais foram bloqueadas de maneira ininteligível, com uma chave que mantém oculto seu conteúdo. Essa chave é dada precisamente na Qabalah.[2] Assim, a Cabala se fundamenta na idéia de que o alfabeto hebraico constitui uma forma de escrita que vem de um mundo superior ao nosso, pois foi desenvolvida para fins de comunicação entre Deus e os seus agentes, os mestres construtores do universo, assim entendidas as Ordens angélicas surgidas em cada uma das etapas de manifestação da Essência Divina nos quatro mundos da sua ação criadora. Ainda segundo Rosenroth, “a Kabbalah foi delineada por Deus, para um grupo de seletos anjos que formavam uma escola teosófica no Paraíso. Depois da queda, os anjos mais graciosos comunicavam sua doutrina celestial aos filhos desobedientes da Terra, para fortalecer o protoplasma com os significados que assinalariam o caminho de regresso à sua pristina nobreza e felicidade.” [3]

A ideia aqui, como se vê, é a de que a Bíblia, na sua versão escrita, dada a conhecer ao mundo profano, na verdade, é um código cifrado, cujo verdadeiro entendimento só é concedido a poucos iniciados. Para o mundo profano, via de regra, a Bíblia funciona como uma espécie de ordenamento moral, jurídico e religioso, elaborado por um povo muito antigo, e que se pretende tenha tido uma experiência religiosa muito intensa com a natureza e as forças formadoras dos fenômenos sociais. Esse povo é o de Israel, cuja longa saga de ascensões e quedas, de interações com todas as tradições e fatos que formatam a história da humanidade, pode ser considerado como um verdadeiro repertório das experiências humanas, cujas memórias ainda são preservadas e podem ser recenseadas para servir de catecismo para a humanidade.

Mas para o cabalistas, a Bíblia é muito mais que isso. Ela é a própria Constituição do universo. Ou seja, nas suas entrelinhas, ou para dizer melhor, no simbolismo contido na sua gramática estão delineadas todas as leis que regulam a formação cósmica. Quem souber decifrar o código que está contido na Torá conhecerá toda a história passada, presente e futura do mundo, pois ela, segundo ensina essa tradição, já estava toda traçada na Mente de Deus quando Ele resolveu extrapolar a sua Existência Negativa, manifestando uma Existência Positiva.[4]

TIKUN

 

Não é, pois sem motivo, que Israel, desde seus primórdios como nação, é considerada como uma espécie de "maquete" da humanidade autêntica, que supostamente Deus desejaria que se desenvolvesse sobre a terra. Essa ideia ainda subsiste nas tradições da cultura israelita, precisamente nos ensinamentos da Cabala, onde se vê a nação de Israel como o repositório da Vontade de Deus sobre a terra, expressa na ideia do Tikun.

O conceito do Tikun é muito amplo, e na Cabala abarca uma série de sentidos que confere à nação de Israel um papel de infinita importância no destino cósmico da humanidade.

Literalmente, tikun vem do verbo hebraico letaken, que significa reparar ou consertar. Semanticamente essa palavra expressa a função que a nação de Israel desempenha no mundo, ou seja, a de reparação do pecado de Adão, que se consumaria na recondução da humanidade ao seu estado anterior de beatitude, que ela perdeu quando o casal humano foi expulso do Eden. Mas essa palavra também tem outros significados que invadem o campo da filosofia, da moral e da própria escatologia universal. Uma das variantes dessa palavra, a tikun olan, por exemplo, significa o próprio sentido da vida sobre a terra. Ela define os traços positivos que precisamos desenvolver e os traços negativos que devemos superar em nossa personalidade, observando as condições internas e externas que experimentamos em nossas vidas. Por exemplo, se algo não está indo bem em determinada área da nossa vida, isso pode representar um chamado para alguma transformação, seja nas nossas próprias crenças (ambiente interno) ou na forma e lugar em que a gente vive (ambiente externo).

Destarte,quando ocorre essa transformação, a pessoa liberta a energia que está presa no círculo vicioso da sua mente material e as circunstâncias normais que informam toda progressão voltam a fluir. Segundo o Zohar, tudo muda naturalmente e tudo pode ser mudado pela ação do homem. Não existem destinos selados, assim como a inércia absoluta é impossível face às leis que regem a natureza.[5]

Assim, até mesmo situações que consideramos impossíveis de serem transformadas, se atuarmos de forma proativa, nos campos material e espiritual, o universo trará naturalmente uma solução. Parodiando um conhecido ditado popular, se a intenção é positiva e a ação é eficiente, o universo fará o resto.

LINGUAGEM DOS ANJOS

Segundo a tradição cabalística, os “anjos mais graciosos”, no dizer de Rosenroth, ensinaram a Cabala a alguns homens na terra. Esses homens foram escolhidos especialmente por Deus para receber essa sabedoria. Com ela a própria humanidade poderia contribuir para a tarefa de construção do mundo planejado pelo Criador. Daí o termo “Cabala” significar, numa tradução livre, “tradição recebida”, pois o seu conteúdo semântico, inacessível ao vulgo, só pode ser desvendado por alguns iniciados. Nesse sentido ela seria uma espécie de código secreto, uma escrita sagrada, cujo significado não deve ser revelado aos profanos. 

A ideia aqui expressa nos remete a uma antiga tradição presente em todas as disciplinas esotéricas: a de que as verdades sagradas não devem ser do conhecimento do vulgo, por que se forem, elas serão deturpadas. Até mesmo Jesus, a quem se confere a virtude de ter ensinado uma doutrina de fácil entendimento para o homem comum, às vezes não deixava de recorrer a alguns lances esotéricos para dar charme ao seu ministério. [6]

Quanto à Cabala, essa ideia vem da aplicação prática do alfabeto hebraico, cuja estrutura se presta bem ao jogo do simbolismo que está presente em todas as tradições esotéricas. Diz-se que os sons e os valores numéricos desse alfabeto, devidamente combinados, formam palavras e signos que contém as verdadeiras fórmulas que Deus usa para construir o universo. Conhecer cada combinação e seus significados é o grande ensinamento dessa tradição. Daí a Cabala ter desenvolvido uma linguagem própria, cujo entendimento, por parte dos não iniciados nessa disciplina, parece ser inacessível.

Na verdade o que se observa nessa antiga tradição é muito mais a utilização de um sistema de comunicação, próprio das culturas orientais, que apela para o uso frequente de um tipo particular de simbolismos para dar significado aos conteúdos mais profundos da mente humana, que a linguagem cotidiana não consegue representar. Pois é somente através de uma pesquisa que integre as descobertas da ciência na física, na química e na biologia, com a capacidade inata do espírito humano para gerar intuições, que se pode entrar no universo cabalístico com alguma luz que nos permita “sentir” as grandes verdades reveladas por essa tradição. E isso não é qualquer universidade, academia ou curso que ensine, pois que ela está vinculada a uma história, uma tradição e uma crença, que  somente o povo de Israel detém como repertório cultural.

A MAÇONARIA E A CABALA

      É nesse sentido que o conhecimento da Cabala interessa aos maçons, já que a Maçonaria também se vale de uma simbologia muito particular, que é veiculada através de uma linguagem específica. Esse tipo de linguagem, na Idade Média, era a língua dos mestres maçons que construíam as grandes catedrais e também a língua dos alquimistas, dos mestres cabalistas e dos artistas em geral. Eles formavam, nesses antigos tempos, uma comunidade que cultivava um espirito diferente, rebelde, livre da dogmática conformadora que a Igreja impunha á mentalidade medieval. “Todos se exprimiam em argot; tanto os vagabundos da Corte dos Milagres ─ com o poeta Villon á cabeça ─ como os frimasons ou franco-maçons da Idade Média “hospedeiros do Bom Deus”, que edificaram as obras primas que hoje admiramos”, escreve o alquimista Fulcanelli, mostrando a importância desse elemento de cultura na construção do espírito de uma época[7]

E segundo o mesmo autor, essa forma de falar e escrever não era apenas uma brincadeira, um jogo de palavras, mas em tudo isso havia uma verdadeira ciência, uma capacidade inata do espirito humano para expressar verdades sagradas, prodigalizada aos homens pelo próprio Criador, para divulgar sua sabedoria na terra. Porque, fora disso, diz ele, “a soberania que ele possui sobre tudo que vive, perde a sua nobreza, a sua grandeza, a sua beleza e não é mais que uma aflitiva vaidade.”[8]

     É certo que a linguagem tem uma grande importância na estrutura da Cabala, pois esta, enquanto construção lingüística, é baseada em três processos originais de formação de palavras, conhecidos como guematria, notaricom e temura. A guematria consiste em aproximar duas palavras que tem o mesmo valor numérico no alfabeto hebreu. Como nesse alfabeto cada letra corresponde a um número, as palavras formadas com as diferentes letras representam também um determinado valor e um significado, que variam segundo esse valor.

Assim, diversas palavras, formadas com as mesmas letras, podem ter diferentes significados. As letras da palavra Abraão, por exemplo, corresponde ao número 248, que também têm o mesmo valor numérico das palavras misericórdia, piedade, sabedoria, etc. Dessa forma, quando a Cabala se refere á alguém como sendo um “Abraão”, isso significa que esse alguém é sábio, misericordioso, piedoso, etc. Da mesma forma, as letras da palavra escada equivale ao número 130 e corresponde em valor numérico, ás palavras Sinai, subida, ascensão. Assim, subir o Monte Sinai, como fez Moisés, significa ascender até o Senhor. No mesmo contexto estaria, por exemplo, a Escada de Jacó, simbolismo de enorme expressão na cultura maçônica, pois se refere à própria escalada do maçom pelos graus de aperfeiçoamento iniciático do seu rito.

Já o notaricom é uma fórmula que permite construir palavras novas a partir das letras iniciais ou finais de uma frase. Também serve para construir frases inteiras a partir de uma só palavra, à semelhança de um acróstico na arte da poesia. Essa fórmula proporciona aos cabalistas uma imensa profusão de construções linguísticas e um arsenal extremamente rico de interpretações da Bíblia. Com muita propriedade, Rosenroth observa que essa técnica foi manipulada com extrema habilidade pelos cabalistas cristãos para tentar provar aos judeus que Jesus era de fato o Messias das escrituras. Ele dá como exemplo de construção teológica cristã, feita com a técnica do notaricon, uma tese desenvolvida por Prosper Rugers, judeu cabalista que abraçou o Cristianismo e passou a vida tentando converter outros judeus á nova fé. Com a palavra Bereschit, que é a primeira palavra do Gênesis, ele criou várias outras palavras, construindo com elas frases inteiras, para provar aos judeus que essa palavra, que significa “começo” e “criação”, na verdade, se referia a conceitos defendidos pela teologia cristã, ou seja, que a vinda de Jesus já estava prevista nas primeiras frases da Bíblia, que se referem á criação do mundo.[9]

Quanto à técnica denominada temura, esta consiste na substituição de uma palavra, ou letra, por outra, de acordo com as combinações alfabéticas denominadas tsirufim. Temura significa permutação e de acordo com as regras estabelecidas para o uso dessa técnica, uma letra é substituída por outra que a precede ou antecede no alfabeto, para formar uma palavra a partir de outra palavra, distinta tanto em ortografia quanto em significado. Rosenroth nos dá como exemplo de expressões linguísticas formadas pela técnica da temura as palavras ben (filho), ruach (espírito), berackhah (benção), todas obtidas por transposição de letras da palavra bereschit (criação, princípio. [10]

Assim, pelo uso de uma dessas técnicas, ou da combinação entre elas, a palavra hebraica Gan Éden (Jardim do Éden), por exemplo, pode assumir significados diferentes, tais como gouf  (corpo) nefesh (alma), etsem (ossos), daath (ciência), netsah (eternidade) etc.[11]

Destarte, de acordo com esses métodos de construção linguística, há uma Torá que pode ser lida por qualquer pessoa alfabetizada e outra que só pode ser entendida pelos iniciados. É nesta última que está oculta a verdadeira sabedoria (daath), ou seja, aquela ciência que foi transmitida de forma oral á Abraão e confirmada pela transmissão á Moisés, no Monte Sinai, quando Jeová lhe ditou o Decálogo e os demais preceitos contidos no Pentateuco.

É nesse sentido que os Dez Mandamentos escritos nas tábuas da lei e todas as demais prescrições do Deuteronômio, inclusive as estranhas leis sobre higiene e alimentação que fazem parte dos costumes judaicos não são meras idiossincrasias medradas pelo inconsciente de um povo supersticioso e chauvinista, como alguns autores antissemitas propagam. Tratam-se, na verdade, de prescrições ditadas por intuições longamente testadas empiricamente e crenças ancestrais rigorosamente observadas em milênios de prática social e religiosa. Por isso, cada palavra, cada símbolo, cada alegoria, cada parábola, cada nome, na língua hebraica, e por consequência, na doutrina cabalística, tem um significado literal e outro, de natureza iniciática, que encerra um conhecimento de fundo esotérico ou moral. Daí podermos dizer que quem não procurar conhecer os fundamentos da Cabala jamais conseguirá entender, de fato, a Maçonaria, pois esta, em sua essência, é a própria Cabala aplicada ao pensamento ocidental.

 

 

 


[1] A Bíblia hebraica é diferente da Bíblia cristã. Ela contém apenas o chamado Pentateuco (os cinco livros atribuídos a Moisés), os livros de Josué, Juízes, Reis, Rute, Ester e os escritos proféticos, enquanto a Bíblia Cristã, além dos livros acima mencionados, contém não só outros livros proféticos e filosóficos, como também os escritos do Novo Testamento, que são os Evangelhos da vida de Jesus, os Atos dos Apóstolos, e os escritos de Paulo e outros apóstolos.

[2] A Kabbalah Revelada, Editora Madras, 2005. Idem, pg 26

[3]Idem, pg 26

[4] A Cabala expressa a estranha ideia de que Deus, antes da existência do universo tinha uma “Existência negativa”, ou seja, Ele era uma espécie de energia espiritual que não tinha correspondência no mundo real. Em dado momento Ele resolveu se manifestar de forma positiva criando para si mesmo um corpo material, que é o universo. Assim, a Cabala se associa aos conceitos dos filósofos panteístas, para quem Deus é o próprio universo, com suas leis naturais e condições de existência e também a modernas proposições científicas que ensinam que o universo nasceu de uma grande explosão de energia concentrada em um pequeno núcleo, explosão essa denominada Big Bang.

[5] O Sefer Há Zhoar é o livro fundamental da Cabala. Essa é uma distinção fundamental entre a doutrina ensinada pela Cabala e os ensinamentos do Islã. Na doutrina muçulmana existe o conceito chamado MakTub, que significa “está escrito”. Esse conceito ensina que todos os acontecimentos da nossa vida já estavam previstos no nosso destino e que não podemos fugir dessa fatalidade. A Cabala, no sentido inverso, ensina que nosso destino é regulado pelas nossas ações. Quer dizer, pelo livre arbítrio que o homem conquistou ao comer o fruto do conhecimento e tornar-se semelhante aos seres angélicos. Esse conceito foi fundamental no episódio conhecido como Renascença, pois sepultou de vez as antigas crenças que atavam o homem a um destino de eterna miserabilidade, que só podia ser mitigada pela bondade divina. O homem que emergiu dessa nova concepção era o arquétipo grego, herói que dominava a natureza e a tudo conquistava pela força dos seus braços e a sabedoria do seu cérebro.

[6] Os discípulos aproximaram-se dele e perguntaram: "Por que falas ao povo por parábolas?" Ele respondeu: "A vocês foi dado o conhecimento dos mistérios do Reino dos céus, mas a eles não. A quem tem será dado, e este terá em grande quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado. Por essa razão eu lhes falo por parábolas: " 'Porque vendo, eles não veem e, ouvindo, não ouvem nem entendem'.

Neles se cumpre a profecia de Isaías: " 'Ainda que estejam sempre ouvindo, vocês nunca entenderão; ainda que estejam sempre vendo, jamais perceberão.Mateus:13;10;17

[7] Fulcanelli- O Mistério das Catedrais, Ed. Esfinge-Lisboa, 1920

[8] Idem, pg. 25

[9] A Kabbalah Revelada, op.citado, pg. 28. A partir da palavra Bereschit ele deduziu as frases Ben Ruach Ab Shaloshethem Yechad Themim (O Filho, o Espírito, o Pai, Sua Trindade, Perfeita Unidade); Bekori Rashuni Asher Shamo Yeshuah Thaubado (Adorais meu primeiro-nascido, meu unigênito, cujo nome é Jesus).

[10] Idem, pg. 57.

[11] Ibidem, pg. 58.