Experiências

Na vida, enquanto uns contam o tempo, outros contabilizam experiências. Veja se não é assim. Tomar um café, em várias situações, pode ser apenas sorver o líquido. Mas quando se está numa cafeteria, sentado na mesa em que um dia Sartre (em Paris) ou Fernando Pessoa (em Lisboa) também ali estiveram, aí já não é apenas tomar um café e sim viver uma experiência que, além de gustativa, é também sensorial. Tudo começa ao passar pela frente do local, e aí “o pensamento parece uma conta à toa e como é que a gente voa quando começa a pensar”, transportando a dezenas de anos atrás, com as pessoas sentadas, conversando, ou conspirando, com encontros e desencontros, construções e desconstruções que aconteceram em volta daquelas mesas.

Bem assim é com a leitura de um livro. É sempre uma experiência (aliás, diversas) passar por qualquer um deles. Começa pela história, por vezes comum, por outras inusitada, passando pela música que é apresentada na trama que a pessoa, por saber, cantarola, ou vai à procura no streaming para conhecer; os filmes assistidos pelos personagens, que quem não viu vai se interessar por assistir; as paisagens que se vão construindo e comparando na mente com as que se conhece; tudo isso é uma experiência única, com formulações mentais diversas em cada leitor. A leitura compartilhada de um livro dá a oportunidade dessas percepções serem debatidas em grupo e assim todas as pessoas tirarem proveito das experiências individuais, de forma que o livro lido por um, a partir de seu cabedal, torna-o diferente do livro que o outro leu e até do que o autor escreveu, tal como no conceito de “obra aberta” de Umberto Eco.

Imagine agora a situação em que além da leitura do livro e da discussão da história com outras pessoas, que igualmente o leram, haja também nessa conversa a participação de quem o escreveu. Vivi essa experiência duas vezes recentemente. A primeira foi com o escritor Francisco Antonio Cavalcante, com o livro Um prelúdio para Ilse, uma das leituras do clube Livros da Frederica, do qual participo há algum tempo, com mais dez pessoas amigas. A sua presença trouxe mais luz aos personagens e às suas aventuras, dando um sabor diferente aos saberes acumulados com a leitura do livro.

A mais recente vivência foi com o premiado O pássaro Secreto da paraibana Marília Arnaud, ela que aprecia ouvir a opinião das pessoas sobre a sua obra e das descobertas que faz com esses entendimentos diversos. Algo parecido com Luiz Buñel que se admirava com as críticas aos seus filmes, que acabavam sendo verdadeiros achados para ele, como se fosse uma outra película feita sem a sua direção.

É assim que a história de cada personagem, como ele foi criado e desenvolvido, a intenção que teve o autor, tudo isso é explicitado e se encaixa como peças de quebra cabeça para quem lê após a conversa com a pessoa que o criou. Um exemplo: A escolha do nome do personagem pode não passar apenas de um nome para o desavisado leitor, mas passa a ter outro significado e intenção para o autor. É o caso de Aglaia, protagonista do Pássaro Secreto. Para Marília a sua escolha deixa de ser apenas a de um nome, pois ela remete, associada à trama, às três Graças da mitologia grega, bem como aos pintores renascentistas Boticelli e Rafael Sânzio que as pintaram. É como disse o compositor “uma lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz, lata, pode estar querendo dizer o incontível”. Ou, Paul Auster, em A invenção da Solidão, “a história do fato é destituída de qualquer significação além dele mesmo, ao passo que a história inventada consiste integralmente em significados”.

E assim são as experiências que têm tudo a ver com Vigotsky e seu sociointeracionismo. Mas aí já é outra experiência...

Fleal
Enviado por Fleal em 19/10/2021
Reeditado em 19/10/2021
Código do texto: T7366791
Classificação de conteúdo: seguro