As várias faces de um retrato

O Poeta contava as coisas mais maravilhosas sobre nereidas e seres fantásticos. Ditava estórias cheias de significados despertando em cada indivíduo sentimentos diversos que se difundiram nos espectros mais íntimos de nossa alma. Narrava batalhas memoráveis em que personagens heroicos e covardes se misturavam em enredos cativantes sempre provocando-nos a necessidade de saber mais e mais. Instigava a curiosidade, o sorriso fácil, a lágrima espontânea. Navegava tranquilamente na percepção e reação de seus leitores e ouvintes, realçando os sentimentos mais tênues. Que pessoa formidável! Ao menor contato de sua presença, os olhos de todos já brilhavam esperando a próxima estória fabulosa com que nos enterneceria.

Um dia porém deparou-se com o inevitável. Ao presenciar um ser que, em teoria, só existia em sua criação, mas de carne e osso, foi tomado por um espanto formidável. Boquiaberto, olhos arregalados, mal pôde conter suas emoções. Um frio percorreu seu corpo. Acompanhou com o olhar perplexo o deslocamento daquele ser e naquele mesmo dia comentou pesaroso a todos nós que a partir daquele dia não tinha nada mais para contar, que durante toda a sua vida havia imaginado as palavras mais doces para descrever em perfeições estes seres memoráveis mas agora que havia visto um de fato, não teria mais o que dizer. Apenas obtinham como resposta que a realidade havia se imposto e sobre ela não há o que se divagar..... Isso foi-lhe devastador em sua vida e em sua obra. Seu destino guinou e sua pena calou-se para sempre. O gatilho que disparou seu silêncio estava carregado de racionalismo e seu motivo gerou muita curiosidade e teorias as mais diversas sobre o porquê da decisão do poeta.

Lembro de evangélicos que afirmavam que finalmente o diabo havia saído de seu corpo e ele parara de falar sandices para sua redenção. Uns outros comentavam que ele já se tornara senil e que ele nunca tinha sido mesmo bom da cabeça. Uns críticos de literatura dispararam que o infeliz era apenas um plagiador e que não teria mais acesso à novos materiais. Outros ainda lastimavam com pesar mas se contentavam com o que tinham absorvido. Curiosamente ele, humilde e simplório, passou a ver sua obra de maneira contemplativa. Mal acreditava que tinha criado coisas tão encantadoras absolutamente pasmado que pudesse um dia dizer coisas tão significativas. Continuou fã de sua criação mas não escreveu nem contou nenhuma nova fábula.

Sua história virou um folclore mal compreendido e tirado de contexto até se perder de vez com o tempo. Mas ficou-me uma página marcada, daquelas que um dia retomaria para uma releitura de melhor compreensão. Talvez a experiência me tornasse um dia capaz de um melhor entendimento.

Tantos e tantos anos se passaram e acho que finalmente posso dar meu veredito. Ainda acho que sim, o poeta tinha suas virtudes. Talento não lhe faltava. Certamente não era um copista nem um plagiador. Durante alguns anos um gatilho impelia-o a extravasar tão encantadoramente. Sim, ele devia estar pleno de sentimento. Assim como uma paixão nos deixa radiantes e extremamente criativos, vendo a beleza e a poesia em tudo, de repente, em algum instante, aquilo deixou de fazer sentido e já não era-lhe mais tão especial.

Acho que como um amor platônico, ele fez criar em sua mente um ideal e projetava em fábulas o seu espírito transformado. Tanto como os apaixonados se transformam em seres melhores e se sentem tão especiais, o poeta irradiou todas aquelas sensações presas no seu intimo mesmo que elas não fossem tão grandiosas. Nós mesmos já agimos assim quando nos referimos à aquele nosso amor especial mesmo que a "vítima" não seja lá grandes coisas. Na maioria das vezes não é nada daquilo que imaginamos, mas por outro lado, projetamos de forma que este ser torna-se superdimensionado. Essa cegueira ou ilusão, acaba fazendo, por outro lado, com que pessoas especiais passem desapercebidas e sub valorizadas. De qualquer forma, somos o poeta em plena erupção, em estado puro de criação e profundidade de sentimentos.

O mundo de fato acontece na mente de cada pessoa. Todas suas convicções, entendimentos, pensamentos se desenrolam na realidade que imaginamos. Assim ocorre para os excepcionais, que vivem em seus mundos intransponíveis. "Pessoas normais" vivem dentro de seus enganos e claro, de seus acertos também, mas maleáveis em admitir erros e se redimir. Outros, terraplanistas e negacionistas defendem suas maluquices falaciosas e não mudam de opinião por mais bizarras que forem. Todos nós temos um ponto em que acabamos em um mundo paralelo defendendo excentricidades e profundidades que nos torna chatos, dados a exageros, dramas e aspirais de irracionalidade. Voltando ao poeta, pelo menos nisso, ele poupou-nos de seus conflitos internos mas o perfume de seus pensamentos tinham um gosto de mel.

Provavelmente nós, pobres mortais sem tal expressividade, já tenhamos vivido momentos tão cheios de significados, tão intensos, tão cheios de paixão, de dor e alegria, que se não se forjaram em obras de arte, nos tornaram especiais. Por outro lado, como tudo na vida acaba e se recicla em novas oportunidades, novos amores, novos contatos, novos lugares, logo estaremos vivendo outras experiências. E se, com a superação dessa perda, podemos ainda olhar para trás com gratidão pelo ocorreu, em valorizar aqueles bons momentos curtindo como foi bom, tanto melhor. É como olhar a foto de um ex amor e curtir aquele momento em que o retrato foi tirado, olhar nos seus olhos e dizer a si próprio que aquilo foi mágico. Talvez olhar no olho do seu ex parceiro com compaixão e mesmo se reconhecer que você enfim estava percebendo a relação de CRIADOR E CRIATURA, pois sim, o nosso amor é sempre forjado em nossas ilusões, então.... que momento especial. Você apercebe-se disso e tudo continua bem pois valeu a pena ter vivido aquilo. Da mesma forma então, o Poeta analogamente podia ver sua obra com o encantamento, com nostalgia e sobretudo sobriedade. Talvez no futuro, algo pudesse tocar sua alma novamente e retomasse a necessidade de exalar arte. Que fosse! Independente disso, tudo valerá a pena se vivermos intensamente.

Talvez meu veredito não esteja concatenado com a realidade de nosso Poeta, mas faz sentido dentro do meu mundo nesse momento e você meu caro leito, se tem outra percepção, conte-me por favor. Adoro conhecer mundos novos.

Almeida Ricá
Enviado por Almeida Ricá em 11/10/2021
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