Verdade, Pós-verdade e a Pandemia Sars-CoV-2.

A construção do conhecimento está intimamente relacionada ao pensamento crítico, através da reflexão racional baseada em teorias já existentes que podem ajudar a refletir sobre a realidade atual. (CIZOTI; CARTONI, 2016 p.13).

Nesse contexto, ao nos depararmos com novas situações ou realidades profissionais, é imprescindível o uso da ciência, que está fundamenta na verdade. Mas o que é a verdade?

A busca pela verdade baseada na razão (lógica) tem seu início com os filósofos conhecidos como pré-socráticos, que buscavam romper as explicações apoiadas em mitos, usando como base o logos (razão), no intuito de estabelecer explicações a respeito da natureza (Ibidem, 2016 p.17).

Mas foi Sócrates através do uso da maiêutica (parto, em grego), no sentido de “dar a luz” a novas idéias através da razão, questionando as idéias pré-concebidas,que fundamentou a verdade como resultado do distanciamento da realidade atual, que ele chamou de “mundo sensível”, que é o transitório e atual, para o “mundo das idéias”, que é inteligível e calcado da razão (Ibidem, 2019 p.29).

É intrigante pensarmos como o questionamento e contraposição de idéias com o intuito de colocar a verdade em um campo nebuloso, a ponto de confundir outras pessoas, remetem também ao período socrático. Na ágora (praça pública) que era o palco para os debates que ocorriam nas Cidades-Estados e onde decisões importantes sobre a governabilidade eram tomadas, os sofistas (pensadores dotados alta performance retórica, baseadas no conhecimento, mas não necessariamente, na verdade), usavam sua eloqüência fundamentada no pensamento de que a verdade era relativa, dependendo de onde o homem se colocava perante a realidade (Ibidem, 2016 p.26).

Esses fatos históricos nos parecem ainda muito atuais em nosso cotidiano, quando trocamos os sábios da Ágora, para o palco mais comum de nossa atualidade, que são as redes sociais, onde todos se tornaram “sofistas”, dotados da “verdade” em suas proposições colocando novamente a verdade baseada em evidências em área nebulosa.

O acesso a informação, sobretudo a partir do século XXI, através da popularização da internet proporcionou um salto nos conteúdos publicados na web (SILVA; LUCE; SILVA FILHO, 2016).

Junto com a expansão do acesso a informação através dos meios digitais, há uma crise de confiança do jornalismo, que embora tenha se afastado do alinhamento político, estreitou os laços com a área econômica através de reportagens sensacionalistas e duvidosas. (OLIVEIRA; MARTINS; TOTH, 2020). No que tange a ciência, ela permanece produzindo dentro dos muros das Universidades com baixa capacidade de contribuições para resolução de problemas sociais, em um debate epistemológico que pouco contribui para a vida cotidiana popular e com tendências políticas, fato que propiciou um afastamento e descrença da própria ciência (IBIDEM, 2020).,

Na composição desse cenário, em 2018, segundo o relatório da News Report, 57% dos brasileiros se informavam através da rede social Facebook (SILVA; LUCE; SILVA FILHO, 2016). Esse fato remete a um problema, que foi mais explícito com a eleição de Donald Trump, que são os modos de operação dos algoritmos do Facebook. O feed de notícias, que é o local onde aparecem as publicações na página do usuário, são compilados de forma que as publicações e postagens ali vinculadas, estão diretamente ligadas aos conteúdos que o usuário posta ou curte em outras publicações, levando a uma “bolha de informação”, ou seja, ele acaba entrando em contato somente com os conteúdos que ele possivelmente acredita, fato que pode desencadear até mesmo um extremismo de pensamento (ARAÚJO, 2017).

Esses elementos são ingredientes extremamente importantes no jogo de interesses políticos e na disseminação de “meias verdades”, mentiras e fake news, que são sinônimos de pós-verdade. No que tange ao termo fake news que foi traduzido livremente para a língua portuguesa do Brasil, como notícia falsa, ganhou popularidade internacional, sobretudo a partir das eleições presidenciais estadunidenses de Donald Trump (BRISOLA; BEZERA, 2018 apud (SOUSA JUNIOR; RAASCH; SOARES, 2020). Embora especificamente esse último termo tenha controvérsias sobre seu significado específico, há um consenso que é uma deturpação da verdade (FERREIRA; LIMA; DE SOUSA, 2021).

Em 2016, segundo o dicionário inglês Oxford, que define o termo pós-verdade (post-truth em inglês), como “(...) relacionando ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal”, foi a palavra que mais se destacou, com aumento em seu uso em 2000% no período. Vale ressaltar que esse termo foi utilizado a primeira vez em 1992. (SILVA; LUCE; SILVA FILHO, 2016).

No contexto da pandemia causa pelo agente Sars-CoV-2, conhecido popularmente como coronavírus, a recapitulação histórica aqui mencionada dá indícios que a discussão sobre o manejo da pandemia seria um campo fértil para a disseminação de pós-verdades, sobretudo por motivos políticos ou mesmo por falta do pensar crítico da população, que ao divulgar inverdades, traz sobre si própria o mal. Como agravante, a ciência ainda não dava conta de apontar a verdade, ou seja, posição clara sobre a etiologia, tratamento e cura da doença, por não haver tempo hábil para isso.

Hoje, após mais de um ano do inicio da pandemia decretada em março de 2020 pela OMS (Organização Mundial de Saúde), vemos os embates que desde o começo permeiam as discussões de como se proteger do vírus e da doença.

Em 30 de janeiro de 2020 a BBC News tinha em sua página principal da língua portuguesa o seguinte destaque: “Coronavírus e sopa de morcego? Teoria de conspiração e fake news se espalham com avanço de surto. ” A reportagem descreve vídeos que circulavam nas redes sociais associando a gênese da contaminação através do consumo de morcegos realizados por chineses; um possível golpe da China, produzindo o vírus e colocando em circulação para propiciar a produção de vacinas e consequente lucro, entre outras “teorias conspiratórias” todas amplamente difundidas nas redes sociais, mas até hoje, sem nenhuma comprovação (BBC NEWS BRASIL, 2020).

Souza Junior e colaboradores (2020), afirmam que a disseminação das fake news sobre a COVID-19 tomaram conta das redes sociais tão rapidamente quanto a disseminação da doença a nível mundial. Em suas pesquisas apontam que a disseminação sutil de mentiras travestidas de verdade são potencializadas por pessoas de pensamento preguiçoso e por determinados grupos, que obtém vantagens políticas e econômicas.

Expandindo as conseqüências da discussão em tela, Ferreira e colaboradores (2021) definem a expansão das fake news no mundo, principalmente nos meios digitais, como uma infodemia, que vem causando pânico e terror pela disseminação de especulações e notícias falsas a respeito da COID-19 que pode ter como consequência “enfraquecer a verdade, manipular a massa e frear a eficácia das campanhas e iniciativas de caráter positivo (FERREIRA, LIMA; DE SOUZA, 2021).

É nesse emaranhado de verdades e pós-verdades que existe a linha tênue entre o bem e o mal, implícito entre os que são ignorantes pelo fato de não terem sido instruídos ao longo dos anos e os que tem interesses escusos para proveito próprio.

Olhar com cuidado para todas essas questões pode ajudar a nos posicionarmos longe das mentiras e consequentemente ao lado da verdade e do bem.

REFERENCIAS

DA COSTA SILVA FILHO, Rubens; SILVA, Leila Morás; LUCE, Bruno. Impacto da pós-verdade em fontes de informação para a saúde. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, v. 13, p. 271-287, 2017. Disponível em: https://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/view/892/665. Acesso em: 10/03/2021

DE SOUSA JÚNIOR, João Henriques et al. Da Desinformação ao Caos: uma análise das Fake News frente à pandemia do Coronavírus (COVID-19) no Brasil. Cadernos de Prospecção, v. 13, n. 2 COVID-19, p. 331, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/nit/article/view/35978/20912.

Acesso em: 15/03/2021.

ARAÚJO, Willian Fernandes. As narrativas sobre os algoritmos do Facebook: uma análise dos 10 anos do feed de notícias. TESE DOUTORADO. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017 [publicação online]. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/157660/001020105.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso: 13/03/2020.

FERREIRA, João Rodrigues Santos; LIMA, Paulo Ricardo da Silva; DE SOUZA, Edivanio Duarte. Desinformação, infodemia e caos social: impactos negativos das fake news no cenário da COVID-19.

Em Questão, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 30-58, jan/mar. 2021 Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/EmQuestao/article/view/102195/59076. Acesso em: 13/03/2021.

CIZOTO, Auxiliadora Sonelize; CARTONI, Daniela Maria. Ética, Política e Sociedade. Londrina: Editora Educacional S.A, 2016, 276p.